sexta-feira, 1 de junho de 2018

UM HUMANO VERDADEIRO, de Norman Spinrad





Com um grande gemido de metal fatigado e um sibilar de vapor escapando, o transporte de Gormond fez uma parada no pátio sujo da estação de Pormi, com apenas três horas de atraso: uma façanha bastante respeitável, nos padrões borgravianos. Uma miscelânea de criaturas vagamente humanoides desceu do vapor, exibindo a habitual variedade borgraviana de peles, membros e maneiras de andar diferentes. Restos de comida do piquenique mais ou menos permanente que aqueles mutantes haviam feito durante a viagem de doze horas, prendiam-se às suas roupas grosseiras e, na maioria, puídas. Um odor azedo de mofo acompanhava aquele grupo palrador de espécimes heterogêneos, que atravessava às pressas o pátio enlameado, dirigindo-se para o abrigo de cimento aparente que servia como terminal. 

Finalmente, surgiu no vagão do vapor uma figura de surpreendente e inesperada nobreza: um humano verdadeiro, na plenitude de sua virilidade, alto, poderosamente construído. Seu cabelo era louro, a pele clara e os olhos azuis e brilhantes. Sua musculatura, estrutura óssea e presença eram perfeitas em todos os detalhes e a túnica azul justa estava limpa e em bom estado. 

Feric Jaggar mostrava em cada centímetro o genótipo humano puro que de fato era. Só por isso suportou aquele contato íntimo e prolongado com o populacho de Borgravia: os quase-humanos não tinham outro remédio a não ser reconhecer sua pureza genética. O olhar de Feric colocou os mutantes e híbridos nos seus respectivos lugares, onde se mantiveram. 

Feric levava tudo o que possuía numa bolsa de couro, que carregava sem esforço, permitindo-lhe evitar completamente a passagem pela estação imunda e tomar diretamente a Ulm Avenue, que levava, passando pela apinhada cidadezinha da fronteira, à ponte sobre o Ulm, pelo caminho mais curto possível. Hoje ele iria finalmente deixar para trás as tocas de coelho borgravianas e reclamar seu direito inato como um humano genotipicamente puro e um helder, com uma árvore genealógica sem mácula, cuja origem remontava a doze gerações. 

Com o íntimo repleto de pensamentos sobre seu objetivo de fato e de espírito, Feric estava em condições de ignorar quase completamente o espetáculo sódico que assaltou seus olhos, ouvidos e narinas tão logo entrou na avenida de terra batida que levava ao rio. Ulm Avenue era pouco mais eu uma vala lamacenta entre duas fileiras de barracões rústicos construídos, na maior parte, de madeira mal aplainada, bambu e chapas de aço enferrujadas. Não obstante, essa trilha singularmente inexpressiva era evidentemente o orgulho e a alegria dos habitantes de Pormi, pois as fachadas daqueles edifícios imundos estavam ornamentadas com toda espécie de inscrições pomposas e ilustrações primitivas, anunciando as mercadorias neles existentes, em sua maioria produtos locais, ou objetos que eram o refugo da civilização superior do outro lado do Ulm. Além disso, muitos comerciantes haviam montado barracas na rua, oferecendo frutas apodrecidas, verduras de mau aspecto e carne coberta de moscas. Esses alimentos fétidos eram apregoados a plenos pulmões, visando às criaturas que apinhavam a rua, as quais, por sua vez, incorporavam-se ao barulho barganhando com malícia e estrépito. 

O cheiro rançoso, o rouco vozerio e a atmosfera totalmente insalubre fizeram Feric lembrar da grande área da praça do mercado de Gormond, a capital borgraviana, onde o destino o havia confinado durante anos. Quando criança, fora poupado do contato íntimo com os arredores do bairro nativo. Quando jovem, tivera muito trabalho e gastos não pequenos para evitar aqueles locais da maneira mais viável. 

Claro, nunca lhe fora possível evitar a visão dos diferentes mutantes que ocupavam cada conato ou buraco de Gormond e a mistura genética em Pormi não parecia nem pouco menos degradada com relação à prevalente na capital da Borgravia. A pele do populacho das ruas de Pormi, como em Gormond, era uma incrível colcha de retalhos de mutações híbridas. Peles Azuis, Homens Lagartos, Arlequins e Rostos Vermelhos eram minoria. Pelo menos podia-se dizer que essas criaturas produziam filhos da sua própria espécie. Mas prevalecia toda espécie de mistura: as escamas de um Homem Lagarto poderiam estar tingidas de azul ou púrpura, em vez de verde. Um Pele Azul poderia ter o mosqueado de um Arlequim. A fisionomia cheia de verrugas de um Homem Sapo poderia ter um matiz rosado. 

As mutações mais comuns, para a maioria, tinham um resultado igual apenas porque duas dessas catástrofes genéticas na mesma criatura acabam frequentemente num feto incapaz de subsistir. Muitos dos comerciantes de Pormi eram anões de uma espécie ou de outra – corcundas, cobertos de pelos escuros e duros, de cabeça ligeiramente pontuda, apalermados, muitos com mutações epidérmicas secundárias – incapazes de um trabalho mais pesado. Numa cidadezinha como aquela, os mutantes mais secretos estavam menos em evidência do que se estivessem no que passava por uma metrópole borgraviana. Todavia, à medida em que abria caminho à força de cotoveladas, Feric viu três Cabeças de Ovo, com seus crânios quitinosos e despidos brilhando, avermelhados, ao sol quente, e roçou num Cara de Papagaio. Esta criatura rodopiou ao toque de Feric, estalando seu enorme bico ósseo numa indignação que cessou quando viu de quem se tratava. 

Então, naturalmente, o Cara de Papagaio baixou seu olhar sonolento, modificou a atitude, batendo os dentes obscenamente modificados e murmurou, de maneira apropriadamente humilde: 

- Me perdoe, Homem Verdadeiro. 

De sua parte, Feric não fez o menor gesto de agradecer à criatura e continuou rapidamente a andar pela rua, com o olhar fixo à frente. 

Contudo, algumas dezenas de metros rua acima, uma sensação flutuante familiar adejou suavemente dentro da cabeça de Feric, trazendo-lhe realmente descanso, pois uma longa experiência lhe ensinara que aquela aura psíquica era uma indicação clara de que um Dominador estava no local. Bem clara, aliás, pois quando Feric examinou a fileira de barracões à sua direita, seus olhos confirmaram a proximidade de um Dom e a configuração da ascendência foi sem dúvida a mais sutil que encontrara até então. 

Cinco barracas se alinhavam na rua, dirigidas por três anões, um mestiço Pele Azul-Homem Sapo, com a pele azul cheia de verrugas, e um Homem Lagarto. Todas essas criaturas ostentavam a ausência de expressão e o olhar mortiço característicos dos mutantes, aprisionados numa configuração ascendente prolongada. Nas barracas havia carne, frutas e verduras, num asqueroso estado de adiantada putrefação, que deveria torná-los inteiramente inutilizáveis, mesmo dentro dos padrões borgravianos. Não obstante, hordas de mestiços e mutantes amontoavam-se em torno das barracas, comprando os alimentos apodrecidos a um preço inflacionário, sem pechinchar muito. 

Só a presença de um Dominador nas vizinhanças podia justificar esse comportamento. Gormond estava profusamente infestada dessas monstruosidades, visto que eles, naturalmente, preferiam as grandes cidades, onde as vítimas abundavam. Que uma cidadezinha como aquela estivesse infestada, era uma indicação clara para Feric de que a Borgravia está ainda mais sob a influência de Zind do que ele imaginara. 

Seu impulso imediato foi parar, descobrir o Dom e torcer o pescoço do monstro. Porém, após um momento de reflexão, achou que libertar alguns desgraçados e inúteis mutantes de uma configuração ascendente só iria atrasar sua tão longamente esperada partida daquela cloaca que era a Borgravia. Assim sendo, continuou a andar. 

Finalmente a rua acabou e começou uma trilha dentro de um bosque insalubre de pinheiros raquíticos, agulhas avermelhadas e troncos retorcidos, cobertos de rachaduras. Apesar dessa paisagem não poder ser considerada exatamente uma cena de beleza, era certamente uma pausa bem-vinda, depois da turbulenta vileza da própria cidade. Logo depois, o caminho desviou-se levemente para o norte e começou a acompanhar a margem sul do Ulm. 

Chegando ali, Feric parou para olhar a parte norte, além das vastas águas calmas do rio, que demarcava aquele trecho da fronteira entre a pústula que era a Borgravia e a Alta República de Heldon. Na margem oposta do Ulm, os carvalhos majestosos e genotipicamente puros do Bosque Esmerada bordejavam simetricamente a margem norte do rio. Para Feric, aquelas árvores geneticamente puras saindo do solo rico e não contaminado de Heldon, condensavam o que era a Alta República numa Terra por outro lado misturada e degenerada. Assim como o Bosque Esmeralda era uma floresta de árvores geneticamente puras, Heldon, por sua vez, era uma floresta de homens geneticamente puros, levantando-se como uma paliçada contra as monstruosidades mutantes dos montes de lixo genéticos que cercavam a Alta República. 

Assim que andou mais um pouco pela trilha, a ponte sobre o Ulm se tornou visível: um gracioso arco de pedra lavrada e aço cromado pintado, produto evidente do artesanato superior de Heldon. Feric apressou o passo e em breve pôde notar com satisfação que Heldon havia obrigado a canalha borgraviana a aceitar a humilhação de uma fortaleza alfandegária no lado deles da ponte. O edifício preto, vermelho e branco cavalgava a entrada da ponte e fora pintado com as cores de Heldon em vez de usar uma bandeira adequada, mas para Feric ele ainda proclamava orgulhosamente que nenhum quase-homem teria permissão para contaminar um centímetro sequer do puro solo humano. Enquanto Heldon se conservasse geneticamente puro e rigorosamente adstrito às leis de pureza racial, continuaria a esperança de que a Terra pudesse, outra vez, ser unicamente propriedade da raça humana verdadeira. 



(O sonho de ferro; tradução de José Sanz) 



(Ilustração:  Hieronymus Bosch - A Violent Forcing Of The Frog)



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