terça-feira, 23 de janeiro de 2018
O LACRAU, de Antonio Callado
Na mão de Jupira o vestido novo de Herinha, que a modista boliviana acabava de trazer – vestido do churrasco, tinha sido apelidado –, de mocinha, pedido pela menina para a festa, feito de fresca seda chinesa, de contrabando, trêmula, creme, friso encarnado na barra da saia, gola de renda. Na prova da costureira, apenas alinhavado, o vestido já criava uma Herinha nova, diferente, que apenas guardava uma certa semelhança andrógina como o quase menino que vagava pela cidade carregando no ombro um macaquinho que, por sua vez, carregava uma mochila.
Mas agora, os olhos se virando, com frequência para dentro, Herinha mal olhava o vestido, perdia o mundo de vista, pois ninguém faz promessa de olho aberto e a vida de Herinha era toda ela uma oração de achar perdidos, uma prece a S. Longuinho ou – e aqui Jupira se arrepiava – ao lacrau. Porque, cada dia mais, o lugar certo de encontrar Herinha era o fundo do fundo quintal, para lá do limite do engradado das cobras, para lá da sombra das mangas e dos sabiás, além da área chamada paizinho, num devaneio entre os escorpiões. A culpa, achava Jupira, em mais de um sentido e sobretudo no sentido inicial, era sua, só sua, pois contara a Herinha, embora sem maiores detalhes, uma história que tinha para a menina interesse até biográfico mas que ainda era, para a mãe, perigosa, ativa: a história de como tinham sido elas duas picadas pelo lavrado, arpão da cauda requintada e peçonhenta que se enrosca feito um arabesco por cima do lacrau.
Ela com Herinha na palhoça do posseiro amigo, companheiro de luta, uma choça onde se escondera na esperança de ver o noivo, que ainda não conhecia a filha, onde não o veria, mas onde, isto sim, quase tinha deixado a menina que dele ficara, morta sobre a esteira, por cima do jirau baixo, no chão de terra batida.
Se o noivo não tinha vindo, algum outro ser, em compensação viera, alguma reorganização, feita no escuro, de matérias decompostas, sob uma pedra limosa, dentro de algum tronco esfarinhado, borbulhante de vermes, para ferrar e depositar, de madrugada, como um latejante ovo, na nádega de Herinha, o inchaço, o vergão.
O médico, tardo, só chegou de tarde num cavalo tordilho, tinha Jupira dito a Herinha, ao contar a história, para fazer sorrir a menina tensa, concentrada no que ouvia. Apesar de pensar que era tudo gente posseira, sem eira nem beira, o médico encantou os olhos com a menina, misturou, à boa aspiração profissional médica de operar milagres, o desejo de apagar, da carinha bonita, o sofrimento: mas precisava saber, para saber o soro a empregar, que picada era aquela que enfebrava Herinha, que escuma, que baba. Ele voltava, sem falta, mas tratassem de encontrar o peçonhento, mandou – e começou a revista dentro do fogão de barro, dos bambus do sopapo da parede, do baú de guardados, dos mourões, do sapé do teto. Como um bando de formigas carregadeiras apareceu a vizinhança azafamada, fuçando terreno em volta da casa e grotas próximas, as mulheres trazendo a Jupira panelas de água quente, panos, caldos e mezinhas, enquanto Herinha se revolvia na esteira, ardendo em febre ao ponto de secar compressa fria na testa, os grandes, doces olhos, rolando pela primeira vez nas órbitas feito estrelas extraviadas.
E Jupira tinha vivido então aquilo que, ao narrar a história, chamava, sorrindo, o grande momento maternal, em parte para desarmar, em quem quer que a ouvisse, mas sobretudo em Herinha, qualquer noção de que tinha tido uma revelação, sofrido uma possessão. Acentuava e insistia que apenas descobrira, no seu desamparo, deslocada do seu ambiente, simplificada, descarnada em maternalidade, o meio mais lógico de lidar com a crise, com a aflição, só isso.
Tinha mandado embora, a saber, um velho que em geral pedia comida, ou esmola, mas que quando havia doença aparecia, curandeiro repentino, apoiado num bordão de peregrino e guiado por um curumim; as velhas rezadeiras, que debulhavam terços dizendo as contas em voz cada vez mais alta, prontas para carpir a morta, quando houvesse; os vizinhos em geral, que, cansados de cavucar os cantos e desvãos, em busca do bicho que atacara a menina, esperavam alguma coisa, a morte, ou quem sabe um café.
Depois de assim se despojar de todos, Jupira, como se soubesse o que fazer e apenas esperasse que a hora soasse e a solidão se cumprisse, despojou-se também das roupas, de tudo que vestia e usava, das alpercatas ao brinquinho de ouro, até que fiquei, ela contava, nua em pelo, nuinha, e assim me deitei no chão de erra ao lado da cama de Herinha e palavra que rezei, eu que nunca tinha rezado na minha vida, ou pelo menos fechei os olhos e falei, falei não, rezei mesmo o que me vinha à cabeça, e aí é que vem o que é mais difícil de explicar mas que no momento era o que se apresentava, era o natural: minha reza não podia ser reza igual à de quem reza em geral, quer dizer, reza a Deus, ao princípio bom e certo das coisas, que mantém seres e corpos no seu lugar respectivo, as estrelas, por exemplo, em suas órbitas, e os olhos das crianças também.
Eu tinha ali era que atrair o outro, não é mesmo, o contrário, nua, quieta, sozinha e fechada a Deus, caso ele existisse – e no momento eu não queria ofender nada nem ninguém – para que o contrário, o adversário viesse ao meu encontro, eu como coisa nua, entregue. A ele eu rezava, ao adversário, já que se tratava de bicho, fosse lá qual fosse, de maldade e peçonha, bicho de desfazer o feito, de apodrecer o são, bicho de sombra, do outro reino. Me dirigi ao inimigo com aquele calafrio de maleita que dá na gente quando a sinceridade do que a gente diz, ou reza, é apaixonada, falei com o contrário vibrando toda, os dentes, os ossos, nua, só.
E foi aí que ele saiu da toca dele onde acho que me escutou até me acreditar e me ferrou também como tinha ferrado Herinha e no meio da dor do ferrão dele enterrado na minha coxa, por dentro, na sombra, peguei ele palpitante, apertei, quebrei ele na mão e guardei e quando veio o médico mostrei a ele e ele viu, então, o lacrau.
Agora, mirando a filha absorta, que, quando inquieta, infeliz, buscava, talvez por culpa dela e da sua história, a companhia de lacraus, Jupira se perguntava, ainda uma vez, se não errara contando a Herinha o conto daquela noite na choça do posseiro, já que esse conto antigo, ela sentia obscuramente, a obrigara a contar um dia à filha o segundo conto do lacrau, a segunda parte, que a Quinho também não queria contar, a história da segunda nudez nas trevas, do segundo leito onde os dois tinham se espojado – era bem isso – até um fundo cansaço e imobilidade que tinha sido não um fim honroso de luta, como no conto um, mas, simplesmente, uma rendição, uma entrega. Ao lacrau.
Assim, Jupira revivia na carne o caso, os dois casos do lacrau, a treva e a nudez de ambos tornadas, respectivamente, mais densa e mais nua pelo contraste com a friagem do vestido de seda que tinha na mão, trêmula e creme.
(Sempreviva)
(Ilustração: Francisco Brennand - Lacrau; 1980)
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