sábado, 5 de novembro de 2016
... LAGES, de Paulo Setúbal
Adeus, São Paulo! Adeus,
salões e clubes! Adeus, amigos e noitadas! Adeus, meu querido e triunfante
escritório de advocacia. Adeus, esforço e trabalho e vitórias da minha
mocidade! Lá foi tudo água abaixo... Ia eu de novo, com as mãos abanando, recomeçar
a minha vida em terra estranha, longe do meu Estado, numa cidadezinha que eu
nunca vira, boca de sertão, perdida rusticamente entre píncaros de serra.
Amarguei no meu coração, com muito fel, esse estraçalhamento dos meus sonhos.
Como é desesperadora, amigo, a revolta dum coração materialista. Dum coração
que não crê em Deus. Dum coração que põe a sua única mira em ambições e gozos
da terra. Eu conheci de perto, naquela hora, essa revolta. Eu a vivi. Por isso,
no vaporzinho que me levava a Florianópolis, a todo momento, como um
estribilho, eu exclamava, irritantemente, aos companheiros de travessia:
... Crime absurdo,
O crime de nascer. Eu
espio-o, vivendo.
Maldita a vida que promete e
falta!
Que mostra o céu
prendendo-nos à terra,
Que dando as asas não
permite o voo.
* * *
... Lages foi uma surpresa
para mim. Cidade pequena, é certo, mas cidade graciosa, pitorescamente aninhada
num espigão de morro, com gentes boas e acolhedoras, e, sobretudo, novidade
saborosa para quem vinha do sul, com as suas grandes estâncias de gado, e a sua
vida gauchesca tão colorida e típica, que é um dos encantos do Brasil rural.
Vivi em Lages dois anos. Dois anos em que conheci de perto os usos daquelas
paragens, em que percorri, no meu macho gateado, aquelas coxilhas ondeantes e
sem termo; em que bebi na cuia tosca, por bombas de prata, o chimarrão fervente
e amargo que corria a roda de boca em boca. Muita vez, por aquelas vastas
campanhas povoadas de gadaria, assisti à lida brava dos rodeios, com os peões
de bombacha e chiripá, chapéu de barbicacho amarrado no queixo, disparando
fogosamente atrás de reses desgarradas, - laça! laça! - enquanto as armadas
feitas rodopiavam no ar e a cachorrada se arremetia, furiosa e ladrando, no
rastro das fujonas.
Quando eu cheguei a Lages, a
gripe espanhola já havia andado por lá e devastado o quanto pôde. Morrera muita
gente. Eu, por acaso, mal me instalei, fiquei sendo o único advogado formado da
terra. Fui, sem delongas, procurado para tratar de alguns inventários. Entrei
com o pé direito no foro. Tratei dos inventários, fui feliz, ganhei fama. A
partir daí não me faltou mais serviço. A minha estrela, não há negar, era
realmente propícia. Em São Paulo ou em Lages, pouco importa, ela sempre luzia.
Eu dei de trabalhar sem tréguas. E de ganhar dinheiro com fartura. Mas o
dinheiro vinha e ia-se. Ia-se para onde? Ia-se água abaixo, sem mãos a medir,
para o jogo. Sim, meu amigo, para o jogo. Porque em Lages, é preciso que você o
saiba, eu aprendi a jogar. Tive por lá a paixão torturante das cartas. Naquela
cidadezinha cravada em um cocoruto de serra, boca do sertão, para onde
confluíam de toda a parte compradores de gado e tropeiros de mulas, jogava-se
rijo e caro. E eu joguei rijo e caro. Joguei como um dementado. Quanta noite,
entreverado àqueles boiadeiros e àqueles tropeiros em meio àquela gente
abrutada, de botas altas e trabuco à cinta, mas que usava grandes anéis de
brilhantes no dedo e trazia maços de dinheiro no cintão de couro, quanta noite,
Deus meu, quanta apaixonada e vergonhosa noite não varei eu - um poeta! - com
as cartas na mão, dentro de tascas enfumaçadas e malcheirosas, a topar paradas
grossas nas bancas de nove e de primeira. E aquelas ardentes noites de
jogatina, noites asperamente emocionais em que, num só lanço, apostava eu, às
vezes, o ganho inteiro de uma demanda, aquelas ardentes noites findavam sempre
por patuscadas sórdidas em casebres de chinas abomináveis. Aí, sob telheiros
esburacados, eu, no meu aturdimento, os tropeiros e os boiadeiros no seu
desperdício, ficávamos faustosamentre a cear latas de sardinhas portuguesas e a
beber copázios de champagne Moet et Chandon (sacrilégio!) na companhia nauseante
daquelas mulherinhas de estrada, analfabetas, que vestiam uns amarfanhados
vestidos de babado e avivavam a cara com um hediondo encarnado de papel de seda
vermelho. Onde andava, àquelas horas, o noviço do Carmo? Onde o filho católico
de uma velha católica? Não sei. Sei apenas que vivi dois anos assim. Dois anos,
brutais e materiais, que embotaram fundamente a minha sensibilidade. Não tinha
mais outra aspiração na vida, outro sonho, a não ser a mesquinharia de ganhar
dinheiro. Só dinheiro. Dinheiro às mancheias, dinheiro a rodo, dinheiro e, com
o dinheiro, chafurdar-me deliciado na torpeza daquela vida solta. E tão materializado
andava, tão longe de Cristo, tão vazio de cousas altas, que, no meu
chafurdamento, se me afigurava como um pesadelo, cousa irreal, o ter tido a
fraqueza de, outrora, em dias idos, haver entrado em uma igreja, ajoelhado
devotamente diante de um altar, rezado, confessado, comungado. Como aquele
passado se me exsurgia ridículo e vexador! Como eu havia sido pueril! Como eu
havia sido carola! E me constrangia, e me sentia terrivelmente envergonhado e
mesmo humilhado, só em pensar nessas (como dizia) asnices de minha vida. O
mundo, para mim, naquela quadra, era exclusivamente um lugar de alegrias e de
prazeres. Aquele mundo, de que ouvira falar tão gravemente, lugar transitório,
lugar de sofrimento e de provação, através do qual, pela aceitação humilde e risonha,
o homem atinge a um outro mundo, que é aquele mundo superior, alto, eterno,
onde esplende a Beleza Perfeita, isso não tinha o menor significado para o meu
coração esterilizado e tonto. Isso, para mim, naquela quadra, não passava de
baboseira de uma religião de tristes. Sim, meu amigo, essa religião que conduz
ao aprimoramento moral, às delicadezas de consciência, aos escrúpulos sutis, à
elevação e ao regeneramento do caráter, religião que, arrancando-nos do lodo e
da sordícia, nos dá o anseio alevantado da perfeição e nos propele
grandiosamente para o Infinito, essa religião eu a cognominava pedantescamente
- formigazinha arrogante e cego que eu era - a religião dos tristes, dos
vencidos, dos fracassados, dos místicos e dos devotos.
E o mundo, bem se compreende
o mundo, para a minha materialidade de então, não era aquele mundo de
sofrimento e dor, sofrimento abençoado que depura e dor feliz que resgata, de
que a religião falava. Não! Era, bem ao contrário, era isso sim, um mundo
amorável de deleites e de encantamentos. E eu não queria outra felicidade, nem
cobiçava outra ventura, senão a de atolar-me nesses deleites e nesses
encantamentos. E tais deleites e tais encantamentos, oh, a miséria de um
coração sem Deus! residiam para mim, naquele momento, em jogar nove com
boiadeiros em tascas enfumaçadas e em beber champagne com chinas que botavam
encarnado na cara. Lastimosa e risível natureza humana... Foi assim, contudo,
foi assim, com o coração vazio, tão impuro, que afinal deixei Lages e tornei de
novo para esta minha cidade de São Paulo. Tornei para a cidade a mais dura, a
mais fria, a mais materialista do Brasil, mas, com tudo isso, a cidade mais
ardorosamente enternecida desta minh'alma de tatuiano caipira, neto boêmio de
bandeirantes aventureiros.
(Confíteor, capítulo
XVIII, 1937)
(Ilustração: Cézanne -
the players)
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