quinta-feira, 9 de outubro de 2014
SUICÍDIO NA GRANJA, de Lygia Fagundes Telles
Alguns se justificam e se
despedem através de cartas, telefonemas ou pequenos gestos — avisos que podem
ser mascarados pedidos de socorro. Mas há outros que se vão no mais absoluto
silêncio. Ele não deixou nem ao menos um bilhete?, fica perguntando a família,
a amante, o amigo, o vizinho e principalmente o cachorro que interroga com um
olhar ainda mais interrogativo do que o olhar humano, E ele?!
Suicídio por justa causa e
sem causa alguma e aí estaria o que podemos chamar de vocação, a simples vontade
de atender ao chamado que vem lá das profundezas e se instala e prevalece. Pois
não existe a vocação para o piano, para o futebol, para o teatro. Ai!... para a
política. Com a mesma força (evitei a palavra paixão) a vocação para a morte.
Quando justificada pode virar uma conformação, Tinha os seus motivos! diz o
próximo bem informado. Mas e aquele suicídio que (aparentemente) não tem
nenhuma explicação? A morte obscura, que segue veredas indevassáveis na sua
breve ou longa trajetória.
Pela primeira vez ouvi a
palavra suicídio quando ainda morava naquela antiga chácara que tinha um
pequeno pomar e um jardim só de roseiras. Ficava perto de um vilarejo cortado
por um rio de águas pardacentas, o nome do vilarejo vai ficar no fundo desse
rio. Onde também ficou o Coronel Mota, um fazendeiro velho (todos me pareciam
velhos) que andava sempre de terno branco, engomado. Botinas pretas, chapéu de
abas largas e aquela bengala grossa com a qual matava cobras. Fui correndo dar
a notícia ao meu pai, O Coronel encheu o bolso com pedras e se pinchou com
roupa e tudo no rio! Meu pai fez parar a cadeira de balanço, acendeu um charuto
e ficou me olhando. Quem disse isso? Tomei o fôlego: Me contaram no recreio.
Diz que ele desceu do cavalo, amarrou o cavalo na porteira e foi entrando no
rio e enchendo o bolso com pedra, tinha lá um pescador que sabia nadar, nadou e
não viu mais nem sinal dele.
Meu pai baixou a cabeça e
soltou a baforada de fumaça no ladrilho: Que loucura. No ano passado ele já
tinha tentado com uma espingarda que falhou, que loucura! Era um cristão e um
cristão não se suicida, ele não podia fazer isso, acrescentou com impaciência.
Entregou-me o anel vermelho-dourado do charuto. Não podia fazer isso!
Enfiei o anel no dedo, mas
era tão largo que precisei fechar a mão para retê-lo. Mimoso veio correndo
assustado. Tinha uma coisa escura na boca e espirrava, o focinho sujo de terra.
Vai saindo, vai saindo!, ordenei fazendo com que voltasse pelo mesmo caminho, a
conversa agora era séria. Mas pai, por que ele se matou, por quê?! fiquei
perguntando. Meu pai olhou o charuto que tirou da boca. Soprou de leve a brasa:
Muitos se matam por amor mesmo. Mas tem outros motivos, tantos motivos, uma
doença sem remédio. Ou uma dívida. Ou uma tristeza sem fim, às vezes começa a tristeza
lá dentro e a dor na gaiola do peito é maior ainda do que a dor na carne. Se a
pessoa é delicada, não aguenta e acaba indo embora! Vai embora, ele repetiu e
levantou-se de repente, a cara fechada, era o sinal: quando mudava de posição a
gente já sabia que ele queria mudar de assunto. Deu uma larga passada na
varanda e apoiou-se na grade de ferro como se quisesse examinar melhor a
borboleta voejando em redor de uma rosa. Voltou-se rápido, olhando para os
lados. E abriu os braços, o charuto preso entre os dedos: Se matam até sem
motivo nenhum, um mistério, nenhum motivo! repetiu e foi saindo da varanda.
Entrou na sala. Corri atrás. Quem se mata vai pro inferno, pai? Ele apagou o
charuto no cinzeiro e voltou-se para me dar o pirulito que eu tinha esquecido
em cima da mesa. O gesto me animou, avancei mais confiante: E bicho, bicho
também se mata? Tirando o lenço do bolso ele limpou devagar as pontas dos
dedos: Bicho, não, só gente.
Só gente? — eu perguntei a
mim mesma muitos e muitos anos depois, quando passava as férias de dezembro
numa fazenda. Atrás da casa-grande tinha uma granja e nessa granja encontrei
dois amigos inseparáveis, um galo branco e um ganso também branco mas com
suaves pinceladas cinzentas nas asas. Uma estranha amizade, pensei ao vê-los
por ali, sempre juntos. Uma estranhíssima amizade. Mas não é a minha intenção
abordar agora problemas de psicologia animal, queria contar apenas o que vi. E
o que vi foi isso, dois amigos tão próximos, tão apaixonados, ah! como
conversavam em seus longos passeios, como se entendiam na secreta linguagem de
perguntas e respostas, o diálogo. Com os intervalos de reflexão. E alguma
polêmica mas com humor, não surpreendi naquela tarde o galo rindo? Pois é, o
galo. Esse perguntava com maior frequência, a interrogação acesa nos rápidos
movimentos que fazia com a cabeça para baixo, e para os lados, E então? O ganso
respondia com certa cautela, parecia mais calmo, mais contido quando abaixava o
bico meditativo, quase repetindo os movimentos da cabeça do outro mas numa aura
de maior serenidade. Juntos, defendiam-se contra os ataques, não é preciso
lembrar que na granja travavam-se as mesmas pequenas guerrilhas da cidade logo
adiante, a competição. A intriga. A vaidade e a luta pelo poder, que luta! Essa
ânsia voraz que atiçava os grupos, acesa a vontade de ocupar um espaço maior,
de excluir o concorrente, época de eleições? E os dois amigos sempre juntos.
Atentos. Eu os observava enquanto trocavam pequenos gestos (gestos?) de
generosidade nos seus infindáveis passeios pelo terreiro, Hum! olha aqui esta
minhoca, sirva-se à vontade, vamos, é sua! — dizia o galo a recuar assim de
banda, a crista encrespada quase sangrando no auge da emoção. E o ganso mais
tranquilo (um fidalgo) afastando-se todo cerimonioso, pisando nas titicas como
se pisasse em flores, Sirva-se você primeiro, agora é a sua vez! E se punham
tão hesitantes que algum frango insolente, arvorado a juiz, acabava se metendo
no meio e numa corrida desenfreada levava no bico o manjar. Mas nem o ganso com
seus olhinhos redondamente superiores nem o galo flamante — nenhum dos dois
parecia dar maior atenção ao furto. Alheios aos bens terreirais, desligados das
mesquinharias de uma concorrência desleal, prosseguiam o passeio no mesmo
ritmo, nem vagaroso nem apressado, mas digno, ora, minhocas!
Grandes amigos, hem?,
comentei certa manhã com o granjeiro que concordou tirando o chapéu e rindo,
Eles comem aqui na minha mão!
Foi quando achei que ambos
mereciam um nome assim de acordo com suas nobres figuras, e ao ganso, com
aquele andar de pensador, as brancas mãos de penas cruzadas nas costas, dei o
nome de Platão. Ao galo, mais questionador e mais exaltado como todo discípulo,
eu dei o nome de Aristóteles.
Até que um dia (também
entre os bichos, um dia) houve o grande jantar na fazenda e do qual não
participei. Ainda bem. Quando voltei vi apenas o galo Aristóteles a vagar
sozinho e completamente desarvorado, os olhinhos suplicantes na interrogação, o
bico entreaberto na ansiedade da busca, Onde, onde?!... Aproximei-me e ele me
reconheceu. Cravou em mim um olhar desesperado, Mas onde ele está?! Fiz apenas
um aceno ou cheguei a dizer-lhe que esperasse um pouco enquanto ia perguntar ao
granjeiro: Mas e aquele ganso, o amigo do galo?!
Para que prosseguir, de
que valem os detalhes? Chegou um cozinheiro lá de fora, veio ajudar na festa,
começou a contar o granjeiro gaguejando de emoção. Eu tinha saído, fui aqui na
casa da minha irmã, não demorei muito mas esse tal de cozinheiro ficou
apavorado com medo de atrasar o jantar e nem me esperou, escolheu o que quis e
na escolha, acabou levando o coitado, cruzes!... Agora esse daí ficou sozinho e
procurando o outro feito tonto, só falta falar esse galo, não come nem bebe, só
fica andando nessa agonia! Mesmo quando canta de manhãzinha me representa que
está rouco de tanto chorar.
Foi o banquete de Platão,
pensei meio nauseada com o miserável trocadilho. Deixei de ir à granja, era
insuportável ver aquele galo definhando na busca obstinada, a crista murcha, o
olhar esvaziado. E o bico, aquele bico tão tagarela agora pálido, cerrado. Mais
alguns dias e foi encontrado morto ao lado do tanque onde o companheiro
costumava se banhar. No livro do poeta Maiakóvski (matou-se com um tiro) há um
verso que serve de epitáfio para o galo branco: Comigo viu-se doida a anatomia
/ sou todo um coração!
(Invenção e Memória)
(Ilustração: Dürer - melancolia)
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