segunda-feira, 23 de junho de 2014
A CASA MATERNA, de Vinícius de Moraes
Há, desde a entrada, um sentimento de tempo na
casa materna. As grades do portão têm uma velha ferrugem e o trinco se oculta
num lugar que só a mão filial conhece. O jardim pequeno parece mais verde e
úmido que os demais, com suas palmas, tinhorões e samambaias que a mão filial,
fiel a um gesto de infância, desfolha ao longo da haste.
É sempre quieta a casa materna, mesmo aos
domingos, quando as mãos filiais se pousam sobre a mesa farta do almoço,
repetindo uma antiga imagem. Há um tradicional silêncio em suas salas e um
dorido repouso em suas poltronas. O assoalho encerado, sobre o qual ainda
escorrega o fantasma da cachorrinha preta, guarda as mesmas manchas e o mesmo
taco solto de outras primaveras. As coisas vivem como em prece, nos mesmos
lugares onde as situaram as mãos maternas quando eram moças e lisas. Rostos
irmãos se olham dos porta-retratos, a se amarem e compreenderem mudamente. O
piano fechado, com uma longa tira de flanela sobre as teclas, repete ainda
passadas valsas, de quando as mãos maternas careciam sonhar.
A casa materna é o espelho de outras, em
pequenas coisas que o olhar filial admirava ao tempo em que tudo era belo: o
licoreiro magro, a bandeja triste, o absurdo bibelô. E tem um corredor à
escuta, de cujo teto à noite pende uma luz morta, com negras aberturas para
quartos cheios de sombra. Na estante junto à escada há um Tesouro da juventude
com o dorso puído de tato e de tempo. Foi ali que o olhar filial primeiro viu a
forma gráfica de algo que passaria a ser para ele a forma suprema da beleza: o
verso.
Na escada há o degrau que estala e anuncia aos
ouvidos maternos a presença dos passos filiais. Pois a casa materna se divide
em dois mundos: o térreo, onde se processa a vida presente, e o de cima, onde
vive a memória. Embaixo há sempre coisas fabulosas na geladeira e no armário da
copa: roquefort amassado, ovos frescos, mangas-espadas, untuosas compotas,
bolos de chocolate, biscoitos de araruta - pois não há lugar mais propício do
que a casa materna para uma boa ceia noturna. E porque é uma casa velha, há
sempre uma barata que aparece e é morta com uma repugnância que vem de longe.
Em cima ficam os guardados antigos, os livros que lembram a infância, o pequeno
oratório em frente ao qual ninguém, a não ser a figura materna sabe por que,
queima às vezes uma vela votiva. E a cama onde a figura paterna repousava de
sua agitação diurna. Hoje, vazia.
A imagem paterna persiste no interior da casa
materna. Seu violão dorme encostado junto à vitrola. Seu corpo como que se
marca ainda na velha poltrona da sala e como que se pode ouvir ainda o brando
ronco de sua sesta dominical. Ausente para sempre da casa materna, a figura
paterna parece mergulhá-la docemente na eternidade, enquanto as mãos maternas
se fazem mais lentas e as mãos filiais mais unidas em torno à grande mesa, onde
já agora vibram também vozes infantis.
(Ilustração: Riccardo Mantovani)
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