terça-feira, 19 de março de 2013

GAROTO DE PLÁSTICO, de Cristiane Sobral







Tem gente que vem ao mundo a passeio, outros, a serviço. E ele vivia assim, à paisana. Era um indivíduo descartável e nunca fizera o menor esforço. Malhar, só na academia, para garantir o êxito dos amassos noturnos no seu ponto de encontro predileto, as boates, onde costumava caçar seu objeto preferido: mulher. Mulher loira, claro.

Seu jeito era meio distraído durante o dia porque gastava toda a energia à noite, nos agitos. Sua expressão era meio aérea e seu sorriso, completamente sintético. Marcava presença na classe jovem que frequentava pelo seu nada original nick name: "boy". Aliás, ele considerava-se um dos melhores frutos da era da informática: o gato virtual. Nada de contatos verdadeiros. Não tinha mesmo muitos neurônios disponíveis para desenvolver sua inteligência emocional. Seu melhor trunfo era a memória, medida em gigabytes e equipada com um eficiente kit multímidia. Um gato de plástico motorizado. Tinha um carro do ano com um equipamento de som de última geração. Presente do pai.
Fazia cursinho de inglês, presente da madrinha. "How are you? Fine, thanks". "Cool". Estudava Ciências da Computação numa faculdade privada paga por meio de um rateio feito entre os irmãos mais velhos sem o menor desajuste financeiro. Um garoto de plástico com roupas de marca. Presentes de uma gatinha "shopping-maníaca", que sonhava com o seu amor eterno. "Morena", a menina, até estudiosa. Mas muito pé no chão. O "boy" não aguentava. Papo cabeça. Politicamente correto. Música gospel. Só mesmo apertando o "delete". Que alívio. Preferia suas batatinhas loiras fritas e hambúrgueres de carne, muita carne. Boy. Fazia palavras cruzadas nível moleza e era adepto do discman. Principalmente nas viagens. Uma viagem inesquecível? o primeiro passeio com seu novo e moderno tênis da onda. Pisando em terra firme com seus pés de plástico tamanho 42. Seu maior sonho era um mundo com meias descartáveis. Vida para as meias de algodão do tipo "one way". Liberdade perfumada para dentro dos dedos. Se alguém quiser lavar meias que lave. Que cara de plástico!

Outro dia, na sua aula de inglês reclamou com o "teacher" que não tinha tempo para fazer o dever de casa, o "home-work", porque estava frequentando a academia regularmente, já que o importante, em sua opinião, era poder ficar sempre orgulhoso de não ter nenhuma dobrinha no abdome sob as suas camisetinhas tipo "mamãe olha como estou forte"..."Mother", sou um garoto de plástico bem forte!

E assim seguia nosso ilustre personagem, em sua existência perfeitamente descartável, de shopping em shopping, de boate em boate, até que um dia, ficou totalmente derretido por uma garota! Isso não fazia parte do seu roteiro de vida, baseado em técnicas yuppies e neurolinguísticas... não, não fazia. Pois aconteceu. Só o amor constrói. Ou destrói. Sob a sua cara-máscara de plástico totalmente derretida, havia um complexo de inferioridade estrutural, que o fez ficar trancado em casa durante quatro longas semanas, período suficiente para deixar crescer seus cabelos raspados à máquina zero a cada sete dias. Seus cabelos eram negros, sua pele cor de azeviche, aquela vida de plástico era um verdadeiro mito, mito de uma democracia racial. Junto com seus cabelos, cresceram algumas idéias... e em noites de insônia sua mente formulara algumas perguntas: quem sou eu? para onde vou? Meu nome é Maurício? Por que me chamam de Mauricinho?

O garoto ficou atordoado e decidiu investigar sua certidão de nascimento. Leu: Nome: Augusto de Oliveira. Cor : Parda. Junto com a certidão de nascimento havia um álbum de fotografias com uma foto de casamento de seus pais. Um casal negríssimo, sem dúvida. Filho de peixe... Augusto. Ficou frente ao espelho do banheiro um longo tempo. Seus olhos refletiam uma expressão bastante dura. Cara de pau. Sem máscara ele até que não era tão estranho. Parecia gente. Parecia com tanta gente. Com toda a população do Brasil, esse país que também usa uma máscara de plástico para disfarçar a cara de pau que lhe permite vez em quando esquecer que está aqui a maior população negra fora da África.



(Ilustração: Elisha Ongere - bringing good news - we can fly)



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