Tem gente que vem ao mundo a
passeio, outros, a serviço. E ele vivia assim, à paisana. Era um indivíduo
descartável e nunca fizera o menor esforço. Malhar, só na academia, para
garantir o êxito dos amassos noturnos no seu ponto de encontro predileto, as
boates, onde costumava caçar seu objeto preferido: mulher. Mulher loira, claro.
Seu jeito era meio distraído durante
o dia porque gastava toda a energia à noite, nos agitos. Sua expressão era meio
aérea e seu sorriso, completamente sintético. Marcava presença na classe jovem
que frequentava pelo seu nada original nick name: "boy". Aliás, ele
considerava-se um dos melhores frutos da era da informática: o gato virtual.
Nada de contatos verdadeiros. Não tinha mesmo muitos neurônios disponíveis para
desenvolver sua inteligência emocional. Seu melhor trunfo era a memória, medida
em gigabytes e equipada com um eficiente kit multímidia. Um gato de plástico
motorizado. Tinha um carro do ano com um equipamento de som de última geração.
Presente do pai.
Fazia cursinho de inglês, presente
da madrinha. "How are you? Fine, thanks". "Cool".
Estudava Ciências da Computação numa faculdade privada paga por meio de um
rateio feito entre os irmãos mais velhos sem o menor desajuste financeiro. Um
garoto de plástico com roupas de marca. Presentes de uma gatinha
"shopping-maníaca", que sonhava com o seu amor eterno.
"Morena", a menina, até estudiosa. Mas muito pé no chão. O
"boy" não aguentava. Papo cabeça. Politicamente correto. Música
gospel. Só mesmo apertando o "delete". Que alívio. Preferia suas
batatinhas loiras fritas e hambúrgueres de carne, muita carne. Boy. Fazia
palavras cruzadas nível moleza e era adepto do discman. Principalmente nas
viagens. Uma viagem inesquecível? o primeiro passeio com seu novo e moderno
tênis da onda. Pisando em terra firme com seus pés de plástico tamanho 42. Seu
maior sonho era um mundo com meias descartáveis. Vida para as meias de algodão
do tipo "one way". Liberdade perfumada para dentro dos dedos. Se
alguém quiser lavar meias que lave. Que cara de plástico!
Outro dia, na sua aula de inglês
reclamou com o "teacher" que não tinha tempo para fazer o dever de
casa, o "home-work", porque estava frequentando a academia
regularmente, já que o importante, em sua opinião, era poder ficar sempre orgulhoso
de não ter nenhuma dobrinha no abdome sob as suas camisetinhas tipo "mamãe
olha como estou forte"..."Mother", sou um garoto de plástico bem
forte!
E assim seguia nosso ilustre
personagem, em sua existência perfeitamente descartável, de shopping em
shopping, de boate em boate, até que um dia, ficou totalmente derretido por uma
garota! Isso não fazia parte do seu roteiro de vida, baseado em técnicas
yuppies e neurolinguísticas... não, não fazia. Pois aconteceu. Só o amor
constrói. Ou destrói. Sob a sua cara-máscara de plástico totalmente derretida,
havia um complexo de inferioridade estrutural, que o fez ficar trancado em casa
durante quatro longas semanas, período suficiente para deixar crescer seus
cabelos raspados à máquina zero a cada sete dias. Seus cabelos eram negros, sua
pele cor de azeviche, aquela vida de plástico era um verdadeiro mito, mito de
uma democracia racial. Junto com seus cabelos, cresceram algumas idéias... e em
noites de insônia sua mente formulara algumas perguntas: quem sou eu? para onde
vou? Meu nome é Maurício? Por que me chamam de Mauricinho?
O garoto ficou atordoado e decidiu
investigar sua certidão de nascimento. Leu: Nome: Augusto de Oliveira. Cor :
Parda. Junto com a certidão de nascimento havia um álbum de fotografias com uma
foto de casamento de seus pais. Um casal negríssimo, sem dúvida. Filho de
peixe... Augusto. Ficou frente ao espelho do banheiro um longo tempo. Seus
olhos refletiam uma expressão bastante dura. Cara de pau. Sem máscara ele até
que não era tão estranho. Parecia gente. Parecia com tanta gente. Com toda a
população do Brasil, esse país que também usa uma máscara de plástico para
disfarçar a cara de pau que lhe permite vez em quando esquecer que está aqui a
maior população negra fora da África.
(Ilustração: Elisha Ongere - bringing good news -
we can fly)
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