sábado, 25 de agosto de 2012
O HÓSPEDE, de Lúcio de Mendonça
Ele aí está, que o diga o Oliveira,
aquele rapagão de bigode louro e olhar azul, que viajou como caixeiro de
cobranças, "cometa", e hoje é repórter. Por sinal que foi a última
viagem de cobrança que fez, e de tão horrorizado mudou de vida e profissão. Foi
ele mesmo quem me referiu o caso. Aqui o dou pelo custo, sem nada meu.
Ao cair de uma tarde chuvosa de
março, chegava o cobrador, extenuado e faminto, a uma vendola à beira da
estrada, da longa estrada fastidiosa, pelos campos, que vai de Alfenas ao
Machado, no sul de Minas.
Junto à venda havia a casa de
morada, pequena, tosca e suja, dum velho casal português, que ali se fixara e
vendia os produtos da pequena lavoura, cultivada nas suas terrinhas, e os
furtos trazidos à noite pelos escravos da vizinhança. Pousada, não era costume dar-se ali;
Alfenas ficava a uma légua, e os donos da casa diziam despachadamente que
aquilo não era hospedaria. Mas, com o Oliveira, o caso era especial: trazia já
as suas oito léguas bem puxadas e uma fome de carrapato, e depois, com tanta
carga d'água, não havia meio de continuar viagem. Pediu pousada e ceia, pagando
eu - acrescentou.
- Ceia, arranja-se-lhe - disse o Zé Manuel, o taverneiro velho; lá a
cama é que está mais difícil, que não recebemos hóspedes para dormir.
E com o olhar consultava a mulher, a
mulheraça, anafada e pachorrenta, aboborada para dentro do balcão.
- Não, por isso não seja - opinou
ela; dá-se-lhe o quarto do Jequim...
- Bem lembrado - concordou o
vendeiro; - temos ali assim um quarto agora desocupado, que é o de nosso rapaz,
que anda por fora; lá para o Carmo do Rio Claro; tem cama e colchão, que é o
preciso para dormir... Se lhe serve...
- Serve, serve - aceitou logo o
Oliveira. - E deem-me alguma coisa que se coma; estou morto de fome!
Enquanto se punha a janta,
desarretou a besta, guardou os arreios no quarto que lhe destinaram, contíguo à
saleta da frente e com janela para a estrada; levou o animal ao pasto, um
pastinho fechado, muito perto; e voltou para cuidar de si.
Antes, porém, de sentar-se à mesa,
onde já fumegava o feijão com couves e a canjiquinha, pediu que lhe trouxessem
uma peneira.
- Uma peneira! ora essa!
- É cá para uma precisão!
Trouxeram-lha, e ele então sacou do
bolso das calças um maço de dinheiro em papel, uma bolada de notas úmidas da
chuva que apanhara, e estendeu pelo crivo da taquara as cédulas grandes, de
duzentos, de cem, de cinquenta mil réis, uma boa meia dúzia de contos. Passou a
peneira para a ponta da mesa a que não chegava a toalha, e entrou a servir-se
da ceia no prato de louça azul, com a colher de ferro.
Ao levar à boca uma colherada,
surpreendeu à porta da saleta o olhar aceso com que lhe comiam o estendal das
notas, a velha portuguesa, que o servia, e o marido, que entrava com uma
garrafa de vinho.
Tão cobiçoso era o olhar de ambos,
que coou na alma do rapaz um frio de medo e um clarão de pressentimento. Logo,
ali mesmo, resolveu acautelar-se, arrependido da imprudência de ter mostrado
tanto dinheiro.
Acabando de cear, declarou que muito
cedo, ao romper do dia, seguia para Alfenas, e por isso deixava paga a
hospedagem; deram-lhe a boa-noite e recolheu, com uma vela de sebo, ao quarto
do Joaquim.
Mal se viu só, tratou de ajuntar as
notas que espalhara na peneira, tornou a enfiá-las no bolso, e apenas a casa
sossegou em silêncio, ali por volta da meia-noite, saltou pela janela com os
arreios e a mala à cabeça, foi ao pastinho fechado, selou a besta e tocou para
a cidade, ao belo clarão da lua que despontava.
Nem bem se perdera ao longe o
estrupido da besta que levava o cobrador, quando novo tropel de animal soou no
terreiro da venda; era outro cavaleiro, que saltou do lombilho abaixo e em três
tempos desarreou o cavalo em que veio e com um chupão nos beiços apinhados
tocou-o para o campo.
- Diacho! minha janela aberta! -
murmurou consigo. - Melhor! entro sem precisar bater e acordar os velhos a esta
hora.
E, agarrando-se com o braço direito
ao peitoril da janela, saltou para dentro, levando na outra o lombilho, o
baixeiro e o freio, e logo tornou a fechar a janela, que o frio não era graça.
À alta madrugada, quando começava a
amiudar o canto dos galos, dois vultos, cautelosos, sorrateiros, surdiram do
interior da saleta da frente; um deles, o mais alto impeliu de manso a porta,
apenas cerrada, e penetrou no quarto.
Da cama, ao fundo, ouvia-se a
respiração compassada e forte de um bom sono ferrado. Aproximou-se o vulto,
guiado pelo resfolegar do que dormia e pela tênue claridade que vinha da
saleta, onde o outro vulto, agachado e trêmulo, sustentava e velava com a mão
encarquilhada um candeeiro de azeite.
Súbito, no silêncio da habitação,
soaram, soturnas, repetidas, machadadas rápidas, uma, duas, três, muitas,
regulares a princípio depois desatinadas.
- Anda! traze a luz! - estertorou
uma voz estrangulada.
Entrou no quarto o outro vulto, a
velha gorda, com a candeia acesa.
Apenas a luz bateu na cama, numa
horrível massa de roupas e carnes ensanguentadas, dois gritos sufocados
misturaram o seu horror:
- O Jequim!!!
- O filho!! O meu rapaz!!
Fora, na estrada deserta, voejavam
os bacuraus, como almas penadas.
(Horas do bom tempo, 1901.)
(Ilustração: Mia Makila)
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