quarta-feira, 23 de maio de 2012
UM ESPÍRITO FORTE, de Valentim Magalhães
O bonde vinha quase vazio, como
todos os que descem dos arrabaldes à tarde. Os raros passageiros distraíam-se
da monotonia da viagem, fumando silenciosamente, olhando para as janelas,
conversando, a espaços, devagar.
A tarde era tristonha; ameaçava
chuva.
Ao atravessar uma rua, o bonde parou
para deixar passar um enterro. O defunto era rico; diziam-no as bambinelas e os dourados do coche, os
cavalos, que iam cobertos por grandes redes pretas, e os quatro gatos pingados,
que trotavam à retaguarda.
Era enorme o acompanhamento. Os
carros desfilavam a passo, com um grande vagar tedioso e melancólico; viam-se
dentro pernas estiradas, de calças pretas, e caras barbadas, de sujeitos com
grave compostura de quem faz um tempo a seu dever e a digestão do jantar.
— Agora aqui ficamos nós empatados! resmungou o cocheiro, sentando-se de lado
sobre a folha da plataforma.
— Aquele é mais feliz do que nós; não acha? — perguntou ao seu vizinho de
banco um dos passageiros.
— Homem, não sei… respondeu o outro.
— Não, tem que saber. Aquele já não sente mais nada. É mais feliz, portanto, do
que nós.
— Uhm!… Sei lá! e o beiço lhe descaiu ao peso da dúvida.
— Então, que ideia faz o senhor da morte? inquiriu o provocador da conversa.
Era um sujeito de magnífica
aparência. Gordo, rosado, forte, fisionomia fresca, exuberando a boa alegria da
saúde. Vestia com apuro; a sua gravata espaventosa, presa em um pequeno lagarto
de esmeraldas e rubis, fazia um contraste extremamente gracioso com o seu
cavanhaque negro, mesclado de fios de prata. E os seus olhos pardos, de uma
bela transparência cristalina, espetavam a terrível pergunta, com a impavidez
percuciente de um bisturi, na cara do vizinho.
Era este um velhinho miúdo, pálido e
encolhido, olhar poltrão, nos cantos da boca um jeito de desconsolo
choramingas, barba maltratada, muito branca. Por cima desta cabeça miserável,
um grande chapéu alto, pelado e seboso; abaixo dela, um guarda-chuva
fenomenalmente hidrópico, de alpaca esverdinhada; o qual, encobrindo-lhe todo o
corpo, parecia encabar-se na cabeça do referido sujeito, fazendo-o apresentar
por este modo a fantástica aparência de um guarda-chuva extraordinário — com
cabeça de homem.
— Não sei, meu senhor, não sei;
respondeu a « cabeça do guarda-chuva », piscando os olhos timidamente.
— Pois eu vou-lhe explicar o que é a morte; tornou o outro, achegando-se ao
vizinho. E continuou:
— O senhor já viu uma lamparina? Pois bem. Enquanto tem azeite, a chama
alimenta-se e ilumina; depois que ele acaba, a luz desaparece, apaga-se a
lamparina. Para onde foi a luz? Sumiu-se, evaporou-se. Não é assim? Pois, meu
amigo, a vida é como a lamparina: um belo dia falta-nos azeite e esta luz, este
gás, a quem os filósofos chamam — alma… pfff! Foi-se! Fica apenas o pavio
esturricado e mal cheiroso, — um pouco de carne inanimada e fria. Ora aí tem o
que é a morte — concluiu o filósofo, com um pequeno gesto de soberano desdém.
— Pois sim, meu senhor; mas o que me mete medo é a passagem! — replicou o
guarda-chuva com voz tremida, e nos seus olhos humílimos passou uma faísca de
terror.
— A passagem?… Que passagem, seu…?
— Sabugosa, para o servir.
— Que passagem, seu Sabugosa?
— Ora! a passagem desta para a outra vida… Deve doer.
— Qual! fez o outro, encolhendo os ombros, e riscou um fósforo para acender o
charuto. Está vendo este fósforo? — E mostrava-lhe o pequeno palito de madeira que
uma flamazinha azulada ia consumindo. — Vai ardendo, ardendo… Agora é que dói,
porque tem luz e a luz vai queimando a madeira. Para apagar é um instante, e
tão rápido que não dá tempo para doer. Olhe: pfff! — e apagou o fósforo. Viu?
Agora o que resta? Um pedacito de pau carbonizado! E atirou-o fora com filosófico
desprezo.
— Uhm! Sei lá, meu senhor. Nada! Tenho medo. — E o Sabugosa tremeu todo,
da copa da cartola à biqueira do guarda-chuva.
— É um engano; é o que parece aos espíritos fracos, como o senhor. Olhe, eu lhe
explico, seu…
— Sabugosa, um seu criado.
— Pois eu lhe explico, seu Sabugosa. E achegou-se cruelmente ao outro, que
ainda mais se resumiu por trás do guarda-chuva.
E pôs-se a lhe falar a meia voz, com
vivacidade, gesticulando, acendendo e apagando fósforos.
Os carros do préstito fúnebre
continuavam a desfilar. O cocheiro do bonde aborrecia-se, debruçado sobre a manivela
travada.
Perguntei a um dos meus vizinhos de
banco se conhecia por acaso os dois interessantes personagens daquele estranho
dialogo. Conhecia o filósofo, "o espírito forte".
Era um rapaz abastado, marido de uma
bela mulher e pai de duas crianças loiras, adoráveis.
Um folião desabusado e feliz, ao
qual a vida sorria constantemente com os seus sorrisos mais frescos e mais
vermelhos.
Quanto ao Sabugosa, deu-me outro
passageiro algumas informações.
Era um pobre diabo, menos diabo que
pobre. Para este jamais a vida sorrira. Ao contrário: perseguia-o sempre com
arreganhos assustadores e dentadas tigrinas. Um famoso caipora. Fora rico:
— a quebra dos bancos reduzira-o à míngua. Era viúvo, e dos seis filhos
que tivera apenas um lhe restava, e este mesmo estava no hospício dos
alienados.
Ultima informação: o desgraçado
vivia de um emprego na Empresa Funerária!
O "espírito forte"
continuava a filosofar sinistramente. O Sabugosa estava lívido; suava-lhe o
nariz; tremiam-lhe os beiços; os olhos tinham a expressão terrivelmente
desorientada de uma náufrago da Medusa.
— Já sei, meu senhor. Tem toda a
razão; mas enquanto ela não vem, é melhor conversar sobre outra cousa…
— Poltrão! A morte é um sono, seu Sabugosa.
— Sim senhor; já sei…
— Ora imagine o senhor que se deita uma noite, como costuma; mas que, em vez de
acordar no dia seguinte, como também costuma, amanhã por exemplo, não acorda,
nem amanhã nem nunca mais. Imagine…
Um pavor súbito sacudiu
violentamente o "guarda chuva"…
O derradeiro carro do cortejo
acabava de passar.
(Vinte contos e fantasia)
(Ilustração: Canato - o leão de
Nemeia)
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