sexta-feira, 6 de agosto de 2010

A RELIGIÃO E A SEXUALIDADE. de Vicente Ferreira da Silva








A experiência do sexo, o valor e a amplitude de seu poder, tem uma universalidade maior do que em geral julgamos. Ainda estamos e sempre permaneceremos essencialmente naquela fase protohistórica do universo de Hesíodo, em que o real se cindia na díada solitária de Urano e de Gaia, do masculino e do feminino originários. Uma interpretação do fenômeno complexivo do sexo remete-nos entretanto para uma percepção das forças criadoras e imperativas da sexualidade, na própria dinâmica do processo histórico e histórico-divino. Não só em corte especial vemos a realidade polarizar-se nos gametas insondáveis da geração, como também a própria cavalgada do tempo seria regida pelo fluxo e refluxo de divindades femininas ou masculinas, ginecocráticas ou androcráticas. Como sabemos, foi Bachofen que, de forma exaustiva e fundamentada, assentou a teoria da alternância temporal dos princípios sexuais-divinos, que condicionam as épocas históricas. Para ele, como para outros filósofos românticos, o sexo, a dualidade das forças criadoras, não estaria somente em nós, circunscrito à anatomia e fisiologia da animalidade, como também e principalmente seria uma característica universal do Ser, uma díada cósmica que se particulizaria no caso especial do ser humano. O sexo seria portanto uma força transcendente e omnicompreensiva, uma complementaridade de perspectivas essencial à ordem das coisas. Neste sentido poderíamos citar Platão, quando afirma num de seus diálogos que não é a terra que imita a mulher, mas a mulher que imita a terra. É a vida determinável e fecundável da terra, da Telus Mater, que num de seus avatares é a Mulher. Mas o corpo do homem, que nasce do ventre da Terra, como forma empírica ligada ao ventre, também pertence ao seu domínio de ação. Por isso os gregos chamavam aos homens Demetrici. Em nossos dias, o escultor G. Moore, em obras de grande fascínio, vem exprimindo a verdade patética desta relação, ou melhor, desta inclusão. O tema da mãe e do filho repete-se como uma obsessão na escultura de Moore, revestindo-se das formas mais imprevistas. Os abrigos de Londres, durante um bombardeio, abrem-se, em seus desenhos, como ventres preservadores de uma inumerável humanidade intrauterina. Os mineiros também vivem e subjazem nesse envoltório sombrio e acolhedor. Mas é principalmente em suas esculturas côncavos-convexas que a maternidade transcendente se revela em toda a sua plenitude. Na arte de Moore, a mulher geradora é uma forma estática e incomovível, cujos membros inúteis para o movimento se entrelaçam como os ramos de uma árvore ou como raízes preensoras. O filho está sempre colado à mãe, como se não pudesse ultrapassar jamais sua condição de fato. Sinal de um destino, de uma inclusão numa órbita de acontecimentos. A Gaia primordial ressurge para reger os amantes da Noite e da Vida em sua expressão suprapessoal e tumultuária. Há um sentido religioso na temática do escultor inglês e na matéria sólida trabalhada por suas mãos sentimos o eco da afirmação rilkeana: "Der Schoss ist alles", o Ventre é tudo.



(Revista Diálogo - 1955)


(Ilustração: Henri Moore - draped reclining mother and baby)


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