quinta-feira, 27 de agosto de 2009

VÉSPERA, de Manoel de Andrade











Quatorze de março

mil novecentos e sessenta e nove.

É preciso…é imprescindível denunciar o compasso ameaçador destas horas,

descrever esta porta estreita que atravesso,

esta noite que me escorre numa ampulheta de pressentimentos.


Um desespero impessoal e sinistro paira sobre as horas…

O ano se curva sob um tempo que me esmaga

porque esmaga a pátria inteira…


Nossas canções silenciadas

nossos sonhos escondidos

nossas vidas patrulhadas

nossos punhos algemados

nossas almas devassadas.


Pelos ecos rastreados dos meus versos

chegam os pretorianos do regime.

Alguém já foi detido, interrogado, ameaçado

e por isso é necessário antecipar a madrugada.


E eis porque esse canto já nasce amordaçado

porque surge no limiar do pânico.

Meu testemunho é hoje um grito clandestino

meus versos não conhecem a luz da liberdade

nascem iluminados pelo archote da esperança

para se esconderem na silenciosa penumbra das gavetas.


Escrevo numa página velada pelo tempo

e num distante amanhecer

é que o meu canto irá florescer.


Escrevo num horizonte longínquo e libertário

e num tempo a ser anunciado pelo hino dos sobreviventes.

Escrevo para um dia em que os crimes destes anos puderem ser contados

para o dia em que o banco dos réus estiver ocupado pelos torturadores


Contudo, nesta hora, neste agora

o tempo se reparte pra quem parte

e um coração se parte nos corações que ficam…

O amanhecer caminha para desterrar os nossos gestos

para separar nossas mãos e nossos olhos

e nesta eternidade para pressentir o que me espera

já não há mais tempo para dizer quanto quisera.


Tudo é uma amarga despedida nesta longa madrugada

e neste descompassado palpitar,

contemplo meus livros perfilados de tristeza

retratos silenciosos de tantas utopias,

bússolas, faróis, retalhos da beleza.

Aceno a Cervantes, a Lorca, a Maiakovski

mas só Whitman seguirá comigo

nas suas páginas de relva

e no seu canto democrático.

Contemplo ainda os pedaços do meu mundo

nos amigos do penúltimo momento

nas lágrimas de um benquerer

na infância de minha filha

e nesse beijo de adeus em sua inocência adormecida.


Nesta agonia…

neste abismo de incertezas…

abre-se o itinerário clandestino dos meus passos.

De todos os caminhos

resta-me uma rota de fuga, outras fronteiras e um destino.

Das trincheiras escavadas e dos meus sonhos,

restou uma bandeira escondida no sacrário da alma

e no coração…

um passaporte chamado… liberdade.





(Cantares)


(Ilustração: Goya)






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