domingo, 2 de agosto de 2009

HONRA LAVADA, de Cármen Rocha







É uma história de 1945. Passou-se aqui em Três Lagoas. É verdade e dou fé.

Todas as manhãs a Maria Fumaça apontava detrás do morro e vinha apitando longamente.

Fazendo uma curva fechada, vinha rangendo até parar na estaçãozinha da praça.

Três Lagoas é uma cidadezinha pacata com uma só pracinha, onde todos os acontecimentos da cidade aconteciam – é lógico.

Naquele dia, entretanto, tudo foi diferente.

O trem chegou um pouquinho mais cedo e tão silenciosamente quanto possível, e isso quebrou a mesmice das pessoas que estavam, e apenas estavam, na praça.

Era bem cedo e nós tínhamos vindo com a charrete para fazer as compras do mês – o pesado – e iríamos ficar por ali, olhando, bisbilhotando...

Estávamos portanto, sentados à sombra das árvores e apreciávamos a igrejinha, os tico-ticos-do-serrado, as nuvens; com preguiça, fazendo hora até que o armazém abrisse.

Por isso, continuávamos parados, olhando aquele trem silencioso deslizando, entrando sorrateiro cidade adentro. Os fatos fluíram como se fossem um cinema ao ar livre.

O trem parou. O foguista mal respirava, com as mãos erguidas e o susto nos olhos. Saltou um homem cabeludo, de barbas compridas, que correu para sua casa ao lado, empunhando um Colt 38.

Por um lado entrava na casa um homem furioso com um revólver carregado; por outro, aos trambolhões, saía um jovem rosado, só de ceroulas, carregando num braço um monte de roupas, e um par de borzeguins no outro. Saiu feito um foguete, reto, em direção ao jardim da praça para cortar caminho. Mas as sebes recém-aparadinhas estavam em seu caminho. Elas tinham formato de torre de castelo, que ele ora pulava, ora roçava, o que mais o afogueou. Em seu encalço, em seguida, vinha o barbudo. Seus olhos saíam da órbita e ele chiava feito boi bravo.

Ouviu-se um tiro e mais quatro. No terceiro, já se viu, derrubado no chão pedregoso, o pobre rapaz. O perseguidor alcançou-o, descarregou mais uma meia-dúzia no mínimo, na nuca do traidor. Rápido como chegou, retornou suado e resfolegante para sua casa, ao lado da estação.
No chão, estirado, restou o rapaz, não tão corado, mas vermelho inteiro. Suas roupas espalhadas pela terra.

Na casa do homem traído, juntou o povo – para escutar a berraria que explodia do quarto, e, da janela, viam-se voar roupas, espelho, cadeiras, travesseiros e até uma imagem de São Benedito. Foi tudo se acalmando e ouviam-se agora só murmúrios, sussurros e beijinhos.

O defunto também recebeu visitas, mas foi por pouco tempo; cansados de sua imobilidade, um cinto aqui, uma calça ali, foram se dispersando. Então ficou só, não fossem umas poucas moscas teimosas. E sozinho esfriou.

Ao voltarmos à praça para esperar a charrete, resolvemos tomar um café para espairecer. Entramos no único bar da praça. Estava muito animado. Na rodinha do balcão, o chefe de polícia, o sargento, o assassino e vários amigos do copo.

- Pois é – terminava o matador – comigo é assim – tirava a espuminha de cerveja dos beiços.

Bateram tim-tim.

Apoiado por todos, os chifres podados, o caneco no balcão, suspirou:

- É, dei duro para defender a honra da minha Mariazinha, coitada!

E a honra de Mariazinha e a de todos ficou lavadíssima, em sangue e cerveja.



(Sabor de Ambrosia)


(Ilustração: Aaron Coberly)




Nenhum comentário:

Postar um comentário