quarta-feira, 21 de dezembro de 2022
POR QUE O SUCESSO DA MULHER AMEAÇA O HOMEM?, de Chimamanda Ngozi Adichie
A pessoa mais qualificada para liderar não é a pessoa fisicamente mais forte. É a mais inteligente, a mais culta, a mais criativa, a mais inovadora. E não existem hormônios para esses atributos. Tanto um homem como uma mulher podem ser inteligentes, inovadores, criativos. Nós evoluímos. Mas nossas ideias de gênero ainda deixam a desejar.
Não faz muito tempo, ao entrar num dos melhores hotéis na Nigéria, um segurança na porta me parou e fez umas perguntas irritantes: Nome? Número do quarto da pessoa que eu visitava? Eu conhecia essa pessoa? Poderia provar que era hóspede do hotel e mostrar a minha chave? Ele automaticamente supôs que uma mulher nigeriana e desacompanhada só podia ser prostituta. Uma nigeriana desacompanhada não pode ser hóspede e pagar por seu quarto. Um homem pode entrar no mesmo hotel sem ser perturbado. Parte-se da premissa de que ele está lá por uma razão legítima — aliás, por que esses hotéis não se preocupam mais com a procura por prostitutas do que com a oferta aparente?
Em Lagos, não posso ir sozinha a muitos bares e casas respeitáveis. Mulher desacompanhada não entra. É preciso estar com um homem. Amigos meus, homens, costumam ir a baladas e acabam entrando de braço dado com mulheres desconhecidas — a uma mulher desacompanhada só resta pedir “ajuda” para entrar no recinto.
Sempre que vou acompanhada a um restaurante nigeriano, o garçom cumprimenta o homem e me ignora. Os garçons são produto de uma sociedade onde se aprende que os homens são mais importantes do que as mulheres, e sei que eles não fazem por mal — mas há um abismo entre entender uma coisa racionalmente e entender a mesma coisa emocionalmente. Toda vez que eles me ignoram, eu me sinto invisível. Fico chateada. Quero dizer a eles que sou tão humana quanto um homem, e digna de ser cumprimentada. Sei que são detalhes, mas às vezes são os detalhes que mais incomodam.
Não faz muito tempo, escrevi um artigo sobre o que significa ser uma jovem mulher em Lagos. Um conhecido disse que havia muita raiva no texto, que eu não deveria ter me expressado com tanta raiva. Mas eu não via razão para me desculpar. É claro que eu estava com raiva. A questão de gênero, como está estabelecida hoje em dia, é uma grande injustiça. Estou com raiva. Devemos ter raiva. Ao longo da história, muitas mudanças positivas só aconteceram por causa da raiva. Além da raiva, também tenho esperança, porque acredito profundamente na capacidade de os seres humanos evoluírem.
Percebi cautela no tom do sujeito, e sabia que seu comentário sobre a minha raiva tinha a ver não só com o artigo, mas também com minha personalidade. A raiva, o tom dele dizia, não cai bem em mulheres. Uma mulher não deve expressar raiva, porque a raiva ameaça. Tenho uma amiga americana que substituiu um homem num cargo de gerência. Seu predecessor era considerado um “cara durão”, que conseguia tudo; era grosseiro, agressivo e rigoroso quanto à folha de ponto.
Ela assumiu o cargo, e se imaginava tão dura quanto o chefe anterior, mas talvez um pouco mais generosa — ao contrário dela, ele nem sempre lembrava que as pessoas tinham família. Em poucas semanas no emprego, ela puniu um empregado por ter falsificado a folha de ponto — exatamente como seu predecessor teria feito. O empregado reclamou com o gerente sênior, dizendo que ela era agressiva e difícil. Os outros funcionários concordaram. Um deles, inclusive, disse que tinha achado que ela traria um “toque feminino” ao ambiente de trabalho, mas que isso não acontecera. Não ocorreu a ninguém que ela estava fazendo a mesma coisa pela qual um homem teria recebido elogios.
Outra amiga minha, também americana, trabalha com publicidade e tem um belo salário. Só há duas mulheres em sua equipe: ela e uma outra. Certa vez, numa reunião, ela disse que se sentira menosprezada por sua chefe, que havia ignorado seus comentários e elogiara um dos homens que havia emitido uma opinião parecida com a dela. Ela queria se posicionar e enfrentar a chefe, mas ficou quieta. Depois da reunião, foi chorar no banheiro e me ligou para desabafar. Ela não disse o que pensava para não parecer agressiva. Deixou o ressentimento ferver em banho-maria.
O que me impressiona — em relação a ela e a várias outras amigas americanas — é o quanto essas mulheres investem em ser “queridas”, como foram criadas para acreditar que ser benquista é muito importante. E isso não inclui demostrar raiva ou ser agressiva, tampouco discordar.
Perdemos muito tempo ensinando as meninas a se preocupar com o que os meninos pensam delas. Mas o oposto não acontece. Não ensinamos os meninos a se preocupar em ser “benquistos”. Se, por um lado, perdemos muito tempo dizendo às meninas que elas não podem sentir raiva ou ser agressivas ou duras, por outro, elogiamos ou perdoamos os meninos pelas mesmas razões. Em todos os lugares do mundo, existem milhares de artigos e livros ensinando o que as mulheres devem fazer, como devem ou não devem ser para atrair e agradar os homens. Livros sobre como os homens devem agradar as mulheres são poucos.
Dou uma oficina de escrita em Lagos e uma das jovens que participa do grupo me disse que um amigo lhe havia prevenido de não prestar atenção no meu “discurso feminista” — sob pena de absorver ideias que destruiriam seu casamento. Essa é uma ameaça — a destruição de um casamento, a possibilidade de acabar não se casando — levantada contra as mulheres na nossa sociedade com uma frequência muito maior do que contra os homens.
A questão de gênero é importante em qualquer canto do mundo. É importante que comecemos a planejar e sonhar um mundo diferente. Um mundo mais justo. Um mundo de homens mais felizes e mulheres mais felizes, mais autênticos consigo mesmos. E é assim que devemos começar: precisamos criar nossas filhas de uma maneira diferente. Também precisamos criar nossos filhos de uma maneira diferente.
O modo como criamos nossos filhos homens é nocivo: nossa definição de masculinidade é muito estreita. Abafamos a humanidade que existe nos meninos, enclausurando-os numa jaula pequena e resistente. Ensinamos que eles não podem ter medo, não podem ser fracos ou se mostrar vulneráveis, precisam esconder quem realmente são — porque eles têm que ser, como se diz na Nigéria, homens duros.
No ensino médio, quando um garoto e uma garota saem juntos, o único dinheiro de que dispõem é uma pequena mesada. Mesmo assim, espera-se que ele pague a conta, sempre, para provar sua masculinidade. (E depois nos perguntamos por que alguns roubam dinheiro dos pais...) E se tanto os meninos quanto as meninas fossem criados de modo a não mais vincular a masculinidade ao dinheiro? E se, em vez de “o menino tem que pagar,” a postura fosse “quem tem mais paga”? É claro que, por uma questão histórica, em geral é o homem quem tem mais dinheiro. No entanto, se começarmos a criar nossos filhos de outra maneira, daqui a cinquenta, cem anos eles não serão pressionados a provar sua masculinidade por meio de bens materiais.
Mas o pior é que, quando os pressionamos a agir como durões, nós os deixamos com o ego muito frágil. Quanto mais duro um homem acha que deve ser, mais fraco será seu ego. E criamos as meninas de uma maneira bastante perniciosa, porque as ensinamos a cuidar do ego frágil do sexo masculino. Ensinamos as meninas a se encolher, a se diminuir, dizendo-lhes: “Você pode ter ambição, mas não muita. Deve almejar o sucesso, mas não muito. Senão você ameaça o homem. Se você é a provedora da família, finja que não é, sobretudo em público. Senão você estará emasculando o homem.” Por que, então, não questionar essa premissa? Por que o sucesso da mulher ameaça o homem?
(Sejamos todos feministas, tradução de Christina Baum)
(Ilustração: Aurélia Durand - Deux Reines - 2018)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário