domingo, 16 de outubro de 2022
O CIÚME DA PRIMEIRA ESPOSA, de Chinua Achebe
— Conta para a gente uma história — pediu Obiageli a sua mãe, Ugoye. Na realidade, fora Nwafo quem mandara a irmã dizer isso.
— Contar uma história para vocês, com todos esses utensílios sujos por aí?
Nwafo e Obiageli imediatamente puseram-se a trabalhar. Eles afastaram o pequeno pilão para esmagar pimenta, puseram-no emborcado e colocaram os recipientes menores na prateleira de bambu. A própria Ugoye mudou no candeeiro a mecha de luz já quase gasta por uma nova, tirada de um maço mergulhado em óleo de palma num caco de barro.
Ezeulu comera toda a ceia que Ugoye preparara para ele. Isso faria qualquer mulher muito feliz. Mas, num compound(*), havia sempre algo para estragar a felicidade da gente. No caso de Ugoye, esse algo era a esposa mais velha do marido, Matefi. Fosse o que fosse que Ugoye fizesse, o ciúme de Matefi jamais a deixava em paz. Se ela cozinhava uma refeição modesta na sua própria cabana, Matefi dizia que estava matando de fome seus filhos para comprar braceletes de marfim. Se matasse um galo, como fizera esta noite, Matefi dizia que ela estava procurando as boas graças do marido. Claro que ela nunca dizia nenhuma dessas coisas na cara de Ugoye, mas todos os seus fuxicos mais cedo ou mais tarde chegavam aos ouvidos da mulher mais nova. Esta noite, quando Oduche estava temperando o galo num fogo alto, Matefi andara para cima e para baixo, pigarreando.
Depois que o aposento fora todo limpo, Nwafo e Obiageli estenderam uma esteira e sentaram-se ao lado do banco baixinho da mãe.
— Qual história vocês querem ouvir?
— A história de Onwuero — respondeu Obiageli.
— Não — disse Nwafo —, essa não, nós já a ouvimos muitas vezes. Conte aquela do...
— Está bem — interrompeu Obiageli. — Conte a do Eneke Ntulukpa.
Ugoye a procurou em sua memória e, após alguns minutos, encontrou o que buscava.
Era uma vez um homem que tinha duas mulheres. A mais velha tinha muitos filhos, e a mais moça, apenas um. Mas a mulher mais velha era invejosa e traiçoeira. Certo dia, o homem e sua família foram trabalhar na roça. Essa roça ficava na fronteira entre a terra dos homens e a terra dos espíritos. Qualquer pessoa que fosse trabalhar naquela redondeza deveria apressar-se para sair ao pôr do sol, porque, assim que caísse a noite, os espíritos chegariam para trabalhar em seus próprios campos de inhame. (Obiageli chegou mais perto de sua mãe.) O homem e suas mulheres e filhos trabalharam até que o sol começou a se pôr. Rapidamente eles juntaram suas enxadas, facões e cestas e partiram para casa. Mas, ao chegar em casa, o filho da segunda mulher descobriu que havia deixado sua flauta na roça e disse que ia voltar para buscá-la. Sua mãe implorou para que não fosse, mas ele não lhe deu ouvidos. Seu pai avisou-o de que seria morte certa, mas ele não lhe deu atenção. Quando se cansaram de suplicar ao filho que não fosse, deixaram-no ir.
Ele passou por cima de sete rios e atravessou sete florestas antes de chegar à roça. Quando chegou perto, viu os espíritos inclinados sobre seus roçados, plantando inhames-fantasmas. (Obiageli aproximou-se ainda mais da mãe.) Todos eles ficaram de pé quando o menino se aproximou e o olharam, zangados.
— Ei, menino humano! — vociferou o líder dos espíritos. — O que você quer? — Ele falava pelo nariz. — Você nunca ouviu dizer que nós estamos circulando a essa hora?
— Eu vim buscar a flauta que esqueci embaixo daquela árvore morta.
— Flauta? Você a reconhecerá, se a vir?
O menino disse que sim. Então, o líder dos espíritos apresentou-lhe uma flauta que brilhava como um metal amarelo.
— É esta?
O menino respondeu que não. Então ele apresentou outra flauta, que brilhava, branca, como a “noz da água do céu”.
— É esta? — o espírito perguntou, e novamente o menino disse que não.
Finalmente ele apresentou a flauta de bambu do menino, e o menino sorriu e disse que sim.
— Pegue-a e toque para nós.
O menino pegou a flauta da mão do espírito e tocou esta canção:
Terrível espírito, incontestado Senhor da noite sobre estas terras!
Meu pai me avisou que a morte aguardava
Os homens que se aventuravam aqui muito tarde; Por favor, meu filho, por favor, espere até de manhã!
Chorava a minha mãe. Mas sua advertência
Perdeu-se. Pois como poderia eu
Ficar acordado e esperar pela madrugada
Enquanto minha flauta na umidade e no orvalho
Jazia esquecida e abandonada!
Os espíritos ficaram encantados com a canção e houve um ho-ho-ho geral pelos seus narizes. (Obiageli e Nwafo riram muito, pela maneira com que sua mãe fazia ho-ho-ho, mexendo a cabeça de um lado para outro.)
O líder dos espíritos trouxe duas panelas, uma grande e uma pequena. Ambas as panelas estavam completamente seladas.
— Escolha uma dessas — disse ele ao menino.
Este escolheu a pequena.
— Quando você chegar em casa, chame sua mãe e seu pai e quebre a panela na frente deles.
O menino agradeceu-lhes.
— No caminho de casa, se você ouvir “dum-dum”, corra para dentro do mato, e quando ouvir “jam-jam”, volte para a estrada.
No caminho, o menino ouviu “dum-dum” e correu para o mato. Depois, ele ouviu “jam-jam” e voltou para a estrada. Atravessou os sete rios e as sete florestas e finalmente chegou no compound de seu pai. Chamou o pai e a mãe e quebrou a panela na frente deles. Imediatamente o lugar ficou cheio de todas as coisas boas: metal amarelo, panos e veludos, comidas de todas as espécies, dinheiro, vacas, cabras e muitas outras coisas de valor.
A mãe do menino encheu uma cesta de presentes e mandou para a mulher mais velha do marido. Mas esta, cega de inveja, recusou o presente. Não entendia por que devia ser insultada com um reles presente, quando tudo que tinha a fazer era enviar um de seus filhos para conseguir a mesma coisa.
Na manhã seguinte, ela chamou o filho e lhe disse:
— Traga sua flauta, nós vamos até a roça.
Não havia trabalho para eles fazerem na roça, mas ficaram por ali até o cair do sol. Então ela disse para o filho:
— Vamos para casa.
O menino pegou a flauta, mas a mãe bateu-lhe na cabeça.
— Menino bobo — disse. — Você não sabe esquecer sua flauta? (Obiageli e
Nwafo riram novamente.)
Então o menino deixou ficar sua flauta. Eles atravessaram sete rios e sete florestas e finalmente chegaram em casa.
— Agora você vai voltar para buscar sua flauta!
O menino chorou e protestou, mas sua mãe empurrou-o para fora e disse-lhe que na cabana não caberiam os dois, até que ele voltasse da roça com o presente dos espíritos.
O menino passou pelos sete rios e pelas sete florestas e chegou ao local onde os espíritos estavam trabalhando.
— Hmm! Hmm! — fungou o menino com repugnância. — Eu engasgo com o fedor dos espíritos!
O rei dos espíritos perguntou-lhe o que ele tinha vindo fazer.
— Minha mãe me mandou buscar minha flauta. Hmm! Hmm!
— Você é capaz de reconhecer a flauta, se você a vir?
— Que raio de pergunta é essa? — perguntou o garoto. — Quem é que não vai reconhecer sua flauta quando a vir? Hmm! Hmm!
Então o espírito mostrou-lhe uma flauta brilhando como metal amarelo e o menino disse que era a dele.
— Pegue-a e toque-a para nós — pediu o espírito.
— Eu espero que você não tenha cuspido dentro dela — disse o garoto, secando a boca com as costas das mãos. Depois, ele tocou sua canção:
Rei dos espíritos ele fede
Hmm hmm
Velho espírito ele fede
Hmm hmm
Jovem espírito ele fede
Hmm hmm
Mãe espírito ela fede
Hmm hmm
Pai espírito ele fede
Hmm hmm
Quando terminou, os espíritos estavam silenciosos. Então, o líder deles trouxe duas panelas, uma grande e outra pequena. Antes que uma palavra saísse de sua boca, o menino tinha pulado em cima da grande.
— Quando você chegar em casa, chame sua mãe e seu pai e quebre esta panela diante deles. No caminho, se você ouvir “dum-dum”, corra para dentro do mato, e quando você ouvir “jam-jam”, saia de novo.
Sem parar para agradecer, o menino pegou a panela e foi embora. Num certo ponto do caminho, ao ouvir “dum-dum”, ficou na estrada olhando de um lado para outro, a fim de saber o que era. Depois, ouviu “jam-jam”, e entrou no mato.
Passou os sete rios e as sete florestas e finalmente chegou em casa. Sua mãe, que estivera esperando por ele do lado de fora da cabana, ficou feliz quando viu o tamanho da panela.
— Eles disseram que eu devia quebrá-la diante de você e de meu pai.
— O que tem o seu pai a ver com isto? Por acaso foi ele quem o mandou ir lá?
Ela levou a panela para dentro de sua cabana e fechou a porta. Depois, encheu cada buraquinho da parede, de modo que nada pudesse escapar para a mulher mais moça de seu marido. Quando tudo estava pronto, quebrou o pote. Lepra, varíola, bouba e moléstias piores sem nomes e toda a espécie de abominações encheram a cabana e mataram a mulher e todos os seus filhos.
Quando amanheceu, como não houvesse sinais de vida na cabana, o marido arrombou a porta e espiou lá dentro. Essa espiadela foi mais do que suficiente. Ele lutou com as coisas que forçavam para sair e acabou por conseguir fechar a porta de novo. Mas, nessa altura, algumas das doenças e abominações já haviam escapado e se disseminado pelo mundo. Felizmente, as piores — aquelas que não têm nome — ficaram trancadas dentro da cabana.
Nota:
(*) Compound: conjunto de habitações onde mora uma família, geralmente cercado ou murado.
(A Flecha de Deus; tradução de Vera Queiroz da Costa e Silva)
(Ilustração: Darlington Ike - the sound of joy and gratitude)
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