segunda-feira, 8 de novembro de 2021
CONSCIÊNCIA NEGRA PARA FEMINISTAS BRANCAS, de Marília Moschkovich
“Uma senhora de algumas posses em sua casa”: Debret (1823). Eu achava que esta pintura não era sobre mim.
Desde cedo entendi o que era o racismo. Filho de uma mãe um tanto racista, numa família racista de negros, mulatos e descendentes de espanhóis, meu pai — de pele bem branca, olhos azuis e cabelo bem cacheadinho — fazia questão de pontuar que todos eram iguais e se horrorizava com o racismo. Minha mãe, nascida de uma mistura de europeus diversos e indígenas, sempre reforçava atitudes anti-racistas e criticava abertamente indivíduos e comportamentos discriminatórios. Quando comecei a me envolver em movimentos sociais, na adolescência, descobri o movimento negro e suas mais do que legítimas reivindicações. Demorei quase 26 anos, porém, muitos deles na militância, para entender que talvez meu papel nessa luta seja mais óbvio (e muito mais difícil) do que eu imaginava: me reconhecer branca e entender o significado concreto da branquitude; entender-me, sim, como uma pessoa racializada como somos todas as pessoas no Brasil e muito provavelmente no mundo.
Quando nascemos, nós, pessoas de pele e fenótipo socialmente lido como “brancos” (que vou chamar apenas de “brancos”, pra facilitar a leitura) somos ensinados que existem pessoas negras. Somos ensinados que essas pessoas têm a pele diferente da nossa. Em todas as formas de transmissão de cultura — escola, televisão, conversas em família, entre outros — a cor da nossa pele nunca é tratada como uma questão. É como se não tivéssemos cor. Nesse pensamento está baseada a expressão “pessoa de cor”, que pressupõe que nós brancos e brancas não temos cor. Ao que o movimento negro no Brasil costuma genialmente responder: “pessoa de cor? de que cor?”.
Sem perceber, passamos a vida acreditando verdadeiramente nessa mentira. Quando conseguimos alguma coisa, não associamos a conquista à nossa identidade ou classificação racial, mas a um mérito individual (que não existe). Isso não quer dizer que nenhum de nós brancos sejamos bons no que fazemos, calma aí. Significa apenas que uma pessoa negra tão boa quanto, ou melhor, ficou de fora na seleção em que nós passamos (e falo aqui de seleções diversas: sociais, econômicas, simbólicas, institucionais, etc). Por diversos motivos. Foi quando tomei contato com o feminismo negro de Patricia Hill Collins e bell hooks, intrigada após ver sistematicamente militantes feministas negras apontando meus racismos, que consegui formular melhor para mim mesma alguns desses motivos:
• Eu nunca fui tratada por meus professores e professoras como um projeto de bandida, rainha de bateria ou faxineira; aprendi daí que a escola era mesmo o meu lugar.
• Nunca precisei passar por processos dolorosos e tóxicos para adequar meu cabelo às exigências de qualquer empregador sob a ameaça de passar fome; aprendi daí que meu cabelo não precisa ser corrigido.
• Fui tratada como mãe das crianças brancas de que cuidei como baby-sitter; aprendi daí que eu não precisava realizar nenhuma outra tarefa doméstica que não fosse cuidar das crianças.
• Nas novelas, filmes, revistas e outras mídias que constroem o imaginário popular e as nossas identidades e anseios, sempre havia personagens como eu, brancas, que tinham sucesso profissional em diversas áreas; aprendi daí que eu podia ser o que quisesse.
• Na escola e em todos os espaços públicos, especialmente naqueles em que frequentavam majoritariamente ou exclusivamente mulheres, sempre me senti confortável e incluída e sempre me deram a palavra; aprendi daí que eu podia e devia falar sempre que desejasse.
• Em espaços domésticos, as pessoas que desempenhavam funções de serviço pesadas como empregada doméstica mensalista, muitas vezes mal pagas e em condições de vida deploráveis, não eram do meu bairro, não eram minhas vizinhas, não eram minhas parentes; aprendi que aquilo não era pra mim.
• As revistas de moda e cabelo sempre tinham diversas sugestões e opções de maquiagem, penteados e cortes que se adaptavam facilmente aos meus tons de cabelo e pele, segundo as regras iluminadas dos editoriais; aprendi daí que eu sou normal, que eu sou a regra, o fiel da balança, o neutro pelo qual de deve medir os demais.
Construída nessa e em outras situações, minha identidade racial ficou escondida. Toda a sociedade me dizia que “raça” simplesmente não era uma questão que me tangia. O gênero sim, já que como mulher eu estava do lado oprimido. Sendo branca, então, eu realmente acreditava que não tinha nada a ver com a discussão racial, exceto para “defender” “elas”, as mulheres negras.
Daí que um dia elas gritaram. Apontaram minha raça e eu, em minha ignorância racista, que como sociedade acabamos por desenvolver de maneira doentia em todas as pessoas brancas deste país (e que a Ana Maria Gonçalves mostrou lindamente que pode ser chamada também de fragilidade branca), me senti ofendida. Eu não gostava de ser lembrada de que era branca. Dizia inclusive que isso seria racismo. Era muito mais fácil acreditar que tudo que eu tinha conseguido tinha sido por mérito próprio. Que eu, mulher, não podia jamais ocupar o lugar de opressora nesta sociedade. Era o esquema perfeito: me colocava enquanto vítima e recusava deliberadamente a função de algoz.
Depois de espernear, me lembrei de um debate sobre cotas na época do ensino médio. Eu era, na época, contra as cotas raciais. Meu melhor amigo — também ligado à militância de movimentos sociais — me disse uma das coisas mais interessantes que eu já ouvi sobre políticas públicas: “Estou do lado dos fodidos, Marília. A gente tem que estar do lado dos fodidos”. Nós, que nem fodídos éramos. Ele, que tinha olhos azuis e sobrenome italiano.
Decidi ouvir o que “as fodidas” tinham a me dizer, pelo afeto que nutro por essa figura branca (e, sim, olha que racista isso!). Tentei botar o ego de lado. Pisei fora do meu esquema explicativo perfeito de mulher-mártir (existe feminino de mártir?). Escutei a Hill Collins. Reli Alice Walker. Fui atrás da Rosa Parks. Pesquisei Nina Simone. Me enfiei na história dos Panteras Negras. Assisti de novo Mississipi em Chamas, Uma Outra História Americana, tudo que eu tinha do Spike Lee. Reli os e-mails em que me acusavam de racista. Reli as críticas que haviam sido feitas a mim em debates sobre a questão (em especial, aquelas colocadas pela Luana Tolentino). Me inscrevi em feeds de sites e blogs brasileiros sobre racismo e identidade racial — esses que antes eu sequer acessava, já que “não eram dirigidos a mim”, pela mesma visão limitada de quem acha que, sendo branco, não tem nada a ver com o dia da consciência negra. Peguei o Darcy Ribeiro da estante. Quase vomitei com a memória de tudo aquilo que meu cérebro havia, de forma traiçoeira, relegado “aos outros” quando aprendi na escola.
Nas páginas de Casa Grande e Senzala, eu era a moça na liteira. Eu era o personagem de Di Caprio em Django Livre, ou era também o branco salvador da pátria (ou pior, dos negros) interpretado por Chirstopher Waltz — ambos essencialmente racistas. Eu era a sinhá que eu tanto desprezava nas novelas de época. Eu era a imigrante italiana da novela, cujos descentes puderam acreditar no mito do mérito, já que sua cor de pele lhe dava contrato, trabalho assalariado, possibilidade concreta de compra de terras e direito de frequentar escolas, o que não era assegurado às populações negras na mesma época. Eu era, enfim, de volta ao século XXI, a moça que podia andar na rua sem ser abordada pela polícia. Que sabia que, a qualquer sinal de problema, chamar a polícia representava provavelmente (ao menos antes de 2017) mais risco ao outro do que a mim mesma.
Era eu, a moça feminista que não entendia por que “tanto escarcéu” das feministas negras, já que eu não era racista. Que tinha o privilégio racial mais imenso e cruel de poder ignorar a própria racialidade, e fingir que o racismo não existe enquanto ele feria minhas convicções e meu conforto como militante.
Tenho me demorado anos nesse eterno processo de peitar meus racismos, e entender minha vida, sim, como uma vida marcada pela racialidade. Vocês podem começar hoje: não dê parabéns a ninguém em 20 de Novembro, como pedimos que não nos deem rosas no dia 8 de Março. São tempos extremamente duros para a população negra, que resiste em todos os níveis e esferas possíveis. Use seu tempo para contribuir com a luta antirracista de maneira mais eficaz: reconheça-se branca, cale-se pela primeira vez na vida e escute o que as mulheres negras têm a dizer.
Assim, nos colocamos a pensar em racialidade — porque se trata de um sistema de relações. Podemos nos questionar também por que é que nos identificamos, no Brasil, se somos brancos, muito mais com os brancos europeus (ao ponto de achar que é de nós que textos indianos sobre pós-colonialidade estão falando quando apontam problemas dos “brancos”) do que com uma latinidade branca ou latinidade de pele clara. Quais as relações que provocam esse fenômeno? Mais importante ainda: quais as implicações concretas dele para quem não é branco — sobretudo negras, negros, indígenas — que convivem conosco todos os dias, ora mais ora menos explicitamente visíveis?
PS.: Esse texto, como escrito a partir da experiência de gente branca inserida em uma sociedade estruturada pelo racismo, provavelmente apresentará alguns racismos; peço desculpas de antemão por eles e espero que possa, no diálogo com minhas companheiras de luta negras, e meus companheiros de luta negros, corrigi-los em breve.
PS2.: Escrever esse texto e provocar a discussão pública sobre privilégio racial branco não é um ato de heroísmo, nem de coragem. Muito pelo contrário, talvez seja um ato de vergonha. É o mínimo que precisa ser feito por pessoas brancas na luta antirracista, estabelecendo assim solidariedade com as negras e negros que estão nas mesmas trincheiras que nós e, frequentemente, em suas linhas de frente.
(Outras Palavras / Carta Capital)
(Ilustração: Jean-Baptiste Debret)
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