quarta-feira, 31 de março de 2021

NO LAR DA FELIZ IDADE, O ESTEVES SEM METAFÍSICA, de valter hugo mãe (*)

 


olhei para a nossa senhora de fátima e disse-lhe, mariazinha, havias de ser uma mulher de te pores a mexer e tudo e dávamos uma volta pelo jardim depois de enxotarmos aos pontapés as pombinhas. ri-me, fui procurar o senhor pereira e fizemos uma brincadeira juntos, arranjámos um pedaço de papel, um pouco de fita-cola e pusemos na estatueta da senhora de fátima um letreiro a dizer, mariazinha, rodeada de pombinhas. ficou perfeita, com aquele ar de parva aflita sem saber o que fazer, uma santa toda mãe de deus e não sabe nada, não faz nada, perde-se na mesma brancura das paredes em que nos perdemos todos, um embuste, havia de andar na limpeza, entrar com os baldes e as lixívias e trabalhar, que isso é que há-de ser uma santidade de jeito, trabalhar, o senhor pereira, que até acreditava nuns quantos de santos e temia deus às vezes, divertiu-se, como a pecar num frenesi impossível de conter, para sentir, afinal, essa coisa da alma ainda viva. a alma viva, repetia eu, que burrice tão grande para nos enganar e pôr como carneirada a cumprir ordens e atender a medos, e não tem medo de nada, perguntou ele. tenho, tenho medo de ficar para aqui ainda mais sozinho do que estou, você não está só, homem, que aqui somos muitos e sentimos todos exactamente aquilo que você sente, respondeu-me, e eu calei-me, não fosse ele perceber o que eu sentia, e como ainda seguia zangado, capaz de me rir do sofrimento de qualquer um, incluindo o dele.

pusemo-nos depois no pátio, a apanhar um sol intenso que parecia plantar em nós umas quantas fogueiras, subitamente o senhor pereira pôs um braço no ar e chamou para perto um indivíduo bem mais velho do que nós com quem eu nunca falara, esteves, chamou ele, esteves, anda aqui, vou contar-te uma coisa, o homem abancou ao nosso lado, disse boa tarde e sorriu, o senhor pereira continuou, pusemos um letreiro na estatueta aqui do amigo silva, na da nossa senhora, a dizer que se chama mariazinha, rodeada de pombinhas, é a santa das pombinhas. riram-se os dois como tolos, e repetiu, chama-se mariazinha, afinal é como uma boneca qualquer, diz aqui o senhor silva, e o outro disse, então e vocês agora brincam às bonecas, olha, brincamos com o que há, que já não é muito, e riam-se mais. depois calaram-se brevemente, ficámos novamente só a sentir as fogueiras que nos consolavam um bom bocado, entretanto, o tal esteves levantou-se, andou a rodopiar para trás e para diante, e depois foi refilar uma coisa qualquer com alguém, já lá para dentro no salão, nós não percebíamos a conversa, mas também não interessava, surpreendeu-me o senhor pereira que, como que se lembrando repentinamente, me perguntou, sabe quem é este esteves. torci os lábios com algum desinteresse e confirmação de ignorância, e ele disse, é o esteves sem metafísica, sim, o do fernando pessoa, é uma coisa do caraças, está a ver. e eu abri a boca de espanto inteiro. o que diz você, perguntei, ó homem, é verdade, é o esteves sem metafísica da tabacaria do fernando pessoa, e eu respondi, não diga asneiras, tem quase cem anos. ó esteves, ó esteves, anda aqui, chamava o senhor pereira todo animado, o outro estava cheio de energia na discussão em que se metera e não fazia caso. o meu companheiro dizia, é verdade, é ele. vai fazer cem anos, já viu como ainda anda aí de pé. um mito da nossa poesia, é do caraças, e depois o esteves lá se desenrascou da conversa e apareceu à nossa beira a perguntar o que lhe queríamos. o senhor pereira mandou-o sentar-se novamente e muito divertido pediu-lhe, ó esteves, conta aqui ao senhor silva como foi que te meteste num poema do fernando pessoa, o homem arregalou os olhos e riu-se respondendo, isso já toda a gente sabe, já o contei mil vezes, e o senhor pereira insistiu, mas o senhor silva não sabe e nem sequer está a acreditar em mim, não vou passar por mentiroso, ai que treta, disse eu, este lar está cheio de velhos tolos, pus--me para diante na cadeira, a encarar o velhote com uma antecipação enorme e ele atirou-se para dentro dos meus olhos e confirmou, sim, é verdade, eu vivia em lisboa e ia sempre àquela tabacaria, é verdade sim. os meus ouvidos afundaram incrivelmente no insondável da cabeça e eu fiquei só a ver aquele rosto, o rosto de um homem com mais quinze anos do que eu, sorridente, aberto, limpo ao mesmo sol que nos cobria, e era como se o próprio maravilhoso genial lindo fernando pessoa ressuscitasse à minha frente, era como dar pele a um poema e trazê-lo à luz do dia, a tocar-me no quotidiano afinal mágico que nos é dado levar, era como se alice viesse do país da fantasia para nos contar como vivem os coelhos falantes e as aventuras de faz-de-conta. e eu voltei a ouvi-lo dizer, mas eu tenho muita metafísica, isto de os poetas nos roubarem a alma não é coisa decente, porque aquilo da poesia leva muita mentira, sorri, sorri verdadeiramente como nunca até ali naquele lar. e o senhor pereira olhou para mim radiante e afirmou num triunfo, isto sim, agora, é o lar da feliz idade.



(*) À publicação desta obra, o autor ainda só usava letras minúsculas, inclusive em seu nome. Contrariamo-lo no título do texto, por padrão do blog.



(a máquina de fazer espanhóis)



(Ilustração:  Omar Camilo)

Um comentário:

  1. Eu adoro essa passagem do livro máquina de fazer espanhóis. ❤️

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