segunda-feira, 26 de outubro de 2020
NUNCA EXISTE UMA CERTEZA DE NÃO SER LOUCO, de Michel Foucault
No caminho da dúvida, Descartes encontra a loucura ao lado do sonho e de todas as formas de erro. Será que essa possibilidade de ser louco não faz com que ele corra o risco de ver-se despojado da posse de seu próprio corpo, assim como o mundo exterior pode refugiar-se no erro, ou a consciência adormecer no sonho?
Como poderia eu negar que estas mãos e este corpo são meus, a menos que me compare com alguns insanos, cujo cérebro é tão perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bílis, que eles asseguram constantemente serem reis quando na verdade são muito pobres, que estão vestidos de ouro e púrpura quando estão completamente nus, que imaginam serem bilhas ou ter um corpo de vidro?{1}
Mas Descartes não evita o perigo da loucura do mesmo modo como contorna a eventualidade do sonho ou do erro. Por mais enganadores que os sentidos sejam, eles na verdade não podem alterar nada além das "coisas muito pouco sensíveis e muito distantes"; a força de suas ilusões deixa sempre um resíduo de verdade, "que estou aqui, perto da lareira, vestido com uma robe de chambre". Quanto ao sonho, tal como a imaginação dos pintores, ele pode representar "sereias ou sátiros através de figuras bizarras e extraordinárias"; mas não pode nem criar nem compor, por si só, essas coisas "mais simples e mais universais" cuja combinação torna possíveis as imagens fantásticas: "A natureza corpórea e sua extensibilidade pertence a esse gênero de coisas." Estas são tão pouco fingidas que asseguram aos sonhos sua verossimilhança — inevitáveis marcas de uma verdade que o sonho não chega a comprometer. Nem o sono povoado de imagens, nem a clara consciência de que os sentidos se iludem não podem levar a dúvida ao ponto extremo de sua universalidade; admitamos que os olhos nos enganam, "suponhamos agora que estejamos adormecidos": a verdade não se infiltrará em nós durante a noite.
Com a loucura, o caso é outro; se esses perigos não comprometem o desempenho nem o essencial de sua verdade, não é porque tal coisa, mesmo no pensamento de um louco, não possa ser falsa, mas sim porque eu, que penso, não posso estar louco. Quando creio ter um corpo, posso ter a certeza de possuir uma verdade mais sólida do que aquele que supõe ter um corpo de vidro? Sem dúvida, pois "são loucos, e eu não seria menos extravagante se seguisse o exemplo deles". Não é a permanência de uma verdade que garante o pensamento contra a loucura, assim como ela lhe permitiria desligar-se de um erro ou emergir de um sonho; é uma impossibilidade de ser louco, essencial não ao objeto do pensamento mas ao sujeito que pensa. É possível supor que se está sonhando e identificar-se com o sujeito sonhador a fim de encontrar uma "razão qualquer para duvidar": a verdade aparece ainda, como condição de possibilidade do sonho. Em compensação, não se pode supor, mesmo através do pensamento, que se é louco, pois a loucura é justamente a condição de impossibilidade do pensamento: "Eu não seria menos extravagante ... "{2}
Na economia da dúvida, há um desequilíbrio fundamental entre a loucura, de um lado, e o sonho e o erro, de outro. A situação deles é diferente com relação à verdade e àquele que a procura; sonhos ou ilusões são superados na própria estrutura da verdade, mas a loucura é excluída pelo sujeito que duvida. Como logo será excluído o fato de que ele não pensa, que ele não existe. Uma certa decisão foi tomada, a partir dos Essais. Quando Montaigne encontrou-se com Tasso, nada lhe assegurava que todo pensamento não fosse ensombrado pelo desatino. E o povo? O "pobre povo abusado por essas loucuras"?
O homem de pensamento estará ao abrigo dessas extravagâncias? Ele também deve ser "no mínimo, objeto de lástima". E que razão poderia torná-lo juiz da loucura?
A razão me mostrou que condenar de modo tão resoluto uma coisa como falsa e impossível é atribuir-se a vantagem de ter na cabeça os limites e os marcos da vontade de Deus e o poder de nossa mãe Natureza, e no entanto não há loucura mais notável no mundo que aquela que consiste em fazer com que se encaixem na medida de nossa capacidade e suficiência{3}.
Entre todas as outras formas de ilusão, a loucura traça um dos caminhos da dúvida dos mais frequentados pelo século XVI. Nunca se tem certeza de não estar sonhando, nunca existe uma certeza de não ser louco:
Não nos lembramos de como sentimos a presença da contradição em nosso próprio juízo?{4}
Ora, Descartes adquiriu agora essa certeza, e agarra-se firmemente a ela: a loucura não pode mais dizer-lhe respeito. Seria extravagante acreditar que se é extravagante; como experiência do pensamento, a loucura implica a si própria e, portanto, exclui-se do projeto. Com isso, o perigo da loucura desapareceu no próprio exercício da Razão. Esta se vê entrincheirada na plena posse de si mesma, onde só pode encontrar como armadilhas o erro, e como perigos, as ilusões. A dúvida de Descartes desfaz os encantos dos sentidos, atravessa as paisagens do sonho, sempre guiada pela luz das coisas verdadeiras; mas ele bane a loucura em nome daquele que duvida, e que não pode desatinar mais do que não pode pensar ou ser.
A problemática da loucura — a de Montaigne — se vê, com isso, modificada. De um modo quase imperceptível, sem dúvida, mas decisivo. Ei-la agora colocada numa região de exclusão, da qual não se libertará, a não ser parcialmente, na Fenomenologia do Espírito. A Não-Razão do século XVI constituía uma espécie de ameaça aberta cujos perigos podiam sempre, pelo menos de direito, comprometer as relações da subjetividade e da verdade. O percurso da dúvida cartesiana parece testemunhar que no século XVII esse perigo está conjurado e que a loucura foi colocada fora do domínio no qual o sujeito detém seus direitos à verdade: domínio este que, para o pensamento clássico, é a própria razão. Doravante, a loucura está exilada. Se o homem pode sempre ser louco, o pensamento, como exercício de soberania de um sujeito que se atribui o dever de perceber o verdadeiro, não pode ser insensato. Traça-se uma linha divisória que logo tornará impossível a experiência, tão familiar à Renascença, de uma Razão irrazoável, de um razoável Desatino. Entre Montaigne e Descartes algo se passou: algo que diz respeito ao advento de uma ratio. Mas é inquietante que a história de uma ratio como a do mundo ocidental se esgote no progresso de um "racionalismo"; ela se constitui em parte equivalente, ainda que mais secreta, desse movimento com o qual o Desatino mergulhou em nosso solo a fim de nele se perder, sem dúvida, mas também de nele lançar raízes.
Notas
{1} DESCARTES, Méditations, I, Oeuvres, Pléiade, p. 268. 2 Ibidem.
{2} DESCARTES, op. cit.
{3} MONTAIGNE, Essais, Livro I, Cap. XXVI, Garnier, pp. 231232.
{4} Idem, p. 236
(História da loucura na idade clássica; tradução de José Teixeira Coelho Neto)
(Ilustração: Hieronymus Bosch - Narrenschiff: a nau dos insensatos)
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