sábado, 8 de fevereiro de 2020
O MEDO (E UMA DAS SUAS VARIANTES, O TEMOR REVERENCIAL), de José Eduardo Agualusa
Durante muitos anos vivi sem Medo. Escrevo Medo assim, com maiúscula, porque não estou a falar dos sustos minúsculos com que as pessoas comuns convivem no dia a dia: o medo de ser assaltado, o medo de que a polícia nos faça parar exatamente naquela noite em que bebemos um copo a mais, o medo de não conseguir uma ereção perfeita, o medo de enfrentar uma plateia, o medo do escuro, e por aí fora. Tão-pouco me refiro aos grandes medos metafísicos que a humanidade enfrenta desde que nos deu a alma para a metafísica.
Quando escrevo Medo, estou a referir-me, em concreto, ao sentimento de permanente angústia e desamparo que aflige as pessoas com opiniões diferentes em países sujeitos a regimes totalitários. Durante muitos anos, confesso, nem sequer me dei conta de que vivia numa ditadura. O meu pai morreu em 1975, na Huíla, a combater as tropas sul-africanas. Em criança os adultos tratavam-me com a deferência que se reserva aos órfãos dos heróis. A minha mãe, Cuca, sempre pertenceu ao Partido. Cresci protegido. As pessoas só se dão conta de que vivem numa ditadura quando as suas opiniões colidem com as de quem está no poder. No meu caso aconteceu de forma abrupta, como um acidente de automóvel. Foi há uns dez anos.
Certo dia, entrevistado por um dos pequenos semanários que na altura se multiplicavam em Luanda, comentei distraído o vago aborrecimento que sempre me provocou a poesia de Agostinho Neto. E acrescentei: “Foi um estadista, não um poeta, a poesia era para ele uma outra forma de fazer política. Deixou-nos apenas meia dúzia de versos, quase todos medíocres”. Dois dias depois Malaquias da Palma Chambão publicou n’ O Impoluto um dos seus flamantes editoriais:
O presumível escritor e cineasta Bartolomeu Falcato—cujo nome já denuncia todo um projeto de vida: bar-tolo-meu —, vil flatulência retardada do colonial-fascismo, veio a público sujar a memória do poeta maior, do guia imortal da revolução angolana, do querido e saudoso pai que nos levou a todos a trilhar o caminho das estrelas. Anão miserável! O teu olhar não vai além da tampa da sanita! Gostaria de te arrancar a cabeça à catanada, mas infelizmente tu, vil excremento!, não tens cabeça! Gostaria de te arrancar a alma mas tu, ó dejeto impuro, nunca tiveste alma! Tudo em ti nasce da lixeira e rasteja de retorno à lixeira, à sarjeta, à materna latrina que um dia te gerou. Atenção, homens de bem: Bartolomeu Falcato é um leproso moral! Evitem-no!
O texto era longo e estava tão eriçado de pontos de exclamação que parecia um porco-espinho. Uma pessoa tinha de segurar no jornal com cuidado para não ferir os dedos.
O Jornal de Angola, órgão oficial do governo, exigiu em altos brados a minha prisão. Um professor de direito na Universidade Agostinho Neto deu-se mesmo ao trabalho de escrever um revolto ensaio capaz de justificar o meu encarceramento:
A escrita não pode servir para humilhar, banalizar, denegrir, diabolizar os ícones, os heróis, os mitos, as legiões de anjos, os deuses e divindades. Agostinho Neto nasceu quilamba, intérprete e condutor das entidades aquáticas. Criança dotada de poderes especiais, cuja natureza o impele a contrariar convenções, a liderar revoluções e xinguilamentos. Exige-se respeito e veneração aos heróis e às divindades. Impõe-se temor reverencial! Creio estarem reunidos todos os requisitos para processar Bartolomeu Falcato por traição à pátria, desrespeito pelos símbolos nacionais e vergonhoso ultraje à moral pública. Atentou de forma obscena contra a tradição cultural e intelectual dos angolanos, crime previsto e punido pelo Artigo 420º do Código Penal. Houvesse ainda pena de morte— que lamentavelmente foi abolida —, e o autor do horrendo crime deveria ser encostado ao paredão.
Muitos leitores escreveram a criticar-me. Lembro-me em particular de uma das cartas: “Não podemos aceitar as insolentes afirmações do escritor Bartolomeu Falcato, ele foi demasiado longe! Se tivesse dito que os versos do presidente Neto eram maus, tudo bem. São mesmo maus. Mas chamá-los de medíocres — assim mesmo, medíocres?! Isso eu já acho muita falta de respeito!”.
Foi assim que me transformei num dissidente poético. Provavelmente, no primeiro dissidente poético da história da humanidade. Comecei a receber chamadas anónimas. Eu atendia o telefone e do outro lado uma voz colérica insultava-me:
— Mulato, filho de cobra! Vou cumprir-te!
(Cumprir-te é um curioso neologismo angolano. Um eufemismo elegante. Significa que tencionam assassinar-me, cumprindo depois a pena respectiva. Filho de cobra é um insulto antigo, contra os mestiços e brancos, que sempre me agradou. Um dia, daqui a muitos anos, vou escrever e publicar a minha autobiografia e dar-lhe-ei como título Filho de cobra.)
Por vezes não havia voz alguma, apenas uma respiração acintosa. Certa ocasião dispararam um tiro junto ao bocal do telefone. Não foi grande ideia, suponho, porque escutei a seguir o som de um vidro a estilhaçar-se, e logo depois um grito irado:
— Foda-se, tenente! Quantas vezes já lhe disse que é proibido disparar aqui dentro?
Os insultos e as ameaças podiam acontecer a qualquer hora. Muitas vezes a meio da noite.
Lembrei-me de uma conversa que tive com Benigno dos Anjos Negreiros em Budapeste, dois ou três dias depois de o ter encontrado com as filhas. Disse-lhe que também elas me pareciam um oxímoro orgânico. Concordou animadamente:
— Creio que você tem razão, jovem! As meninas contradizem-se, amam-se e odeiam-se, e quase sempre de forma harmoniosa.
Tínhamos levado um tabuleiro de xadrez para junto de uma das piscinas, imitando os húngaros, e jogávamos uma demorada partida, meio mergulhados, como lagostas, na água escaldante. Benigno contou-me então que houvera na vida das filhas um português suave (apreciei a redundância), o qual seduzira Clara Bruna, para depois a trocar pela irmã. O português engravidara Clara Bruna, marcara casamento, e depois deixara-a à espera, vestida de noiva, à porta da igreja. Não apareceu ele nem a madrinha da noiva — Bárbara Dulce. Seis meses mais tarde, Bárbara reapareceu em casa dos pais, também ela grávida, também ela humilhada, depois de, por sua vez, ter sido abandonada pelo português. Caía a tarde enquanto Benigno me ia revelando, com raiva contida, todos estes acontecimentos. A última luz do dia baixava grave e oblíqua, a partir de uma espécie de zimbório em vitral, lá muito em cima. Charcos de sombra alastravam pelos cantos. A água das piscinas (havia várias) era agora mais densa e mais escura.
— E depois? — perguntei.
O meu futuro sogro moveu um bispo, ameaçando-me a rainha. Um lance arriscado. Baixou a voz:
— O que sabe você sobre o Medo?
Olhei-o inquieto. Alguma coisa mudara nele, falava com entusiasmo, os olhos brilhantes:
— O Medo é a minha especialidade. Eu desenho ambientes propiciadores do Medo. Estudei durante anos a arquitetura do Medo. Formei-me em Moscovo, lá, na praça Lubianka. Conhece a praça Lubianka? Ah, as saudades que eu tenho da praça Lubianka! O Medo degrada as pessoas, meu caro jovem. Se você mantiver a pressão, semanas, meses a fio, o Medo acaba por funcionar como uma doença. Ao princípio é apenas um incómodo persistente, como uma dor de dentes, como uma dor de cabeça, uma dor que se instala no espírito, e vai corroendo tudo. Pouco a pouco a pessoa começa a alterar o seu comportamento, começa a imaginar situações de perigo. Torna-se paranoica, perde o gosto pela vida e entra em depressão. Eventualmente mata-se.
Dizia essas coisas docemente. Benigno é, quase sempre, muito simpático. Acho-o de uma simpatia assustadora. Distraí-me por um breve instante, levado por aquela voz de radialista, quente e bem timbrada, e quando voltei a prestar atenção ao tabuleiro compreendi que perdera o jogo.
— O que aconteceu?
O general encolheu os poderosos ombros:
— Você perdeu, escritor. Perdeu miseravelmente.
— Não, não! Quero saber o que aconteceu ao português.
— O português suave?! Ah! Não aguentou, coitado. Atirou-se do alto da Termiteira.
O Medo, portanto. O Medo é também personagem importante neste meu testemunho.
(Barroco Tropical)
(Ilustração: George Gittoes – fear)
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