sexta-feira, 9 de agosto de 2019

REVISITAÇÃO, de José Paulo Paes






Cidade, por que me persegues?



Com os dedos sangrando

já não cavei em teu chão

os sete palmos regulamentares

para enterrar meus mortos?

Não ficamos quites desde então?



Por que insistes

em acender toda noite

as luzes de tuas vitrinas

com as mercadorias do sonho

a tão bom preço?



Não é mais tempo de comprar.

Logo será tempo de viajar

para não se sabe onde.

Sabe-se apenas que é preciso ir

de mãos vazias.



Em vão alongas tuas ruas

como nos dias de infância,

com a feérica promessa

de uma aventura a cada esquina.

Já não as tive todas?



Em vão os conhecidos me saúdam

do outro lado do vidro,

desse umbral onde a voz

se detém interdita

entre o que é e o que foi.



Cidade, por que me persegues?

Ainda que eu pegasse

o mesmo velho trem,

ele não me levaria

a ti, que não és mais.



As cidades, sabemos,

são no tempo, não no espaço,

e delas nos perdemos

a cada longo esquecimento

de nós mesmos.



Se já não és e nem eu posso

ser mais em ti, então que ao menos

através do vidro

através do sonho

um menino e sua cidade saibam-se afinal



intemporais, absolutos.



(A Meu Esmo - 1995)



(Ilustração: Tetsuya Ishida)




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