terça-feira, 13 de setembro de 2016
AS MÃOS DE MEU FILHO, de Érico Veríssimo
Todos aqueles homens e
mulheres ali na plateia sombria parecem apagados habitantes dum submundo,
criaturas sem voz nem movimento, prisioneiros de algum perverso sortilégio.
Centenas de olhos estão fitos na zona luminosa do palco. A luz circular do
refletor envolve o pianista e o piano, que neste instante formam um só corpo,
um monstro todo feito de nervos sonoros.
Beethoven.
Há momentos em que o som do
instrumento ganha uma qualidade profundamente humana. O artista está pálido à
luz de cálcio. Parece um cadáver. Mas mesmo assim é uma fonte de vida, de
melodias, de sugestões — a origem dum mundo misterioso e rico. Fora do círculo
luminoso pesa um silêncio grave e parado.
Beethoven lamenta-se. É
feio, surdo, e vive em conflito com os homens. A música parece escrever no ar
estas palavras em doloroso desenho. Tua carta me lançou das mais altas regiões
da felicidade ao mais profundo abismo da desolação e da dor. Não serei, pois,
para ti e para os demais, senão um músico? Será então preciso que busque em mim
mesmo o necessário ponto de apoio, porque fora de mim não encontro em quem me
amparar. A amizade e os outros sentimentos dessa espécie não serviram senão
para deixar malferido o meu coração. Pois que assim seja, então! Para ti, pobre
Beethoven, não há felicidade no exterior; tudo terás que buscar dentro de ti
mesmo. Tão-somente no mundo ideal é que poderás achar a alegria.
Adágio. O pianista sofre com
Beethoven, o piano estremece, a luz mesma que os envolve parece participar
daquela mágoa profunda.
Num dado momento as mãos do
artista se imobilizam. Depois caem como duas asas cansadas. Mas de súbito,
ágeis e fúteis, começam a brincar no teclado. Um scherzo. A vida é alegre.
Vamos sair para o campo, dar a mão às raparigas em flor e dançar com elas ao
sol… A melodia, no entanto, é uma superfície leve, que não consegue esconder o
desespero que tumultua nas profundezas. Não obstante, o claro jogo continua. A
música saltitante se esforça por ser despreocupada e ter alma leve. É uma dança
pueril em cima duma sepultura. Mas de repente, as águas represadas rompem todas
as barreiras, levam por diante a cortina vaporosa e ilusória, e num estrondo se
espraiam numa melodia agitada de desespero. O pianista se transfigura. As suas
mãos galopam agitadamente sobre o teclado como brancos cavalos selvagens. Os
sons sobem no ar, enchem o teatro, e para cada uma daquelas pessoas do submundo
eles têm uma significação especial, contam uma história diferente.
Quando o artista arranca o
último acorde, as luzes se acendem. Por alguns rápidos segundos há como que um
hiato, e dir-se-ia que os corações param de bater. Silêncio. Os sub-homens
sobem à tona da vida. Desapareceu o mundo mágico e circular formado pela luz do
refletor. O pianista está agora voltado para a plateia, sorrindo lividamente,
como um ressuscitado. O fantasma de Beethoven foi exorcizado. Rompem os
aplausos.
Dentro de alguns momentos
torna a apagar-se a luz. Brota de novo o círculo mágico.
Suggestion
Diabolique.
D. Margarida tira os sapatos
que lhe apertam os pés, machucando os calos.
Não faz mal. Estou no
camarote. Ninguém vê.
Mexe os dedos do pé com
delícia. Agora sim, pode ouvir melhor o que ele está tocando, ele, o seu
Gilberto. Parece um sonho… Um teatro deste tamanho. Centenas de pessoas finas,
bem vestidas, perfumadas, os homens de preto, as mulheres com vestidos
decotados — todos parados, mal respirando, dominados pelo seu filho, pelo
Betinho!
D. Margarida olha com o rabo
dos olhos para o marido. Ali está ele a seu lado, pequeno, encurvado, a calva a
reluzir foscamente na sombra, a boca entreaberta, o ar pateta. Como fica
ridículo nesse smoking! O pescoço descarnado, dançando dentro do colarinho alto
e duro, lembra um palhaço de circo.
D. Margarida esquece o
marido e torna a olhar para o filho. Admira-lhe as mãos, aquelas mãos brancas,
esguias e ágeis. E como a música que o seu Gilberto toca é difícil demais para
ela compreender, sua atenção borboleteia, pousa no teto do teatro, nos
camarotes, na cabeça duma senhora lá embaixo (aquele diadema será de brilhantes
legítimos?) e depois torna a deter-se no filho. E nos seus pensamentos as mãos
compridas do rapaz diminuem, encolhem, e de novo Betinho é um bebê de quatro
meses que acaba de fazer uma descoberta maravilhosa: as suas mãos… Deitado no
berço, com os dedinhos meio murchos diante dos olhos parados, ele contempla
aquela coisa misteriosa, solta gluglus de espanto, mexe os dedos dos pés, com
os olhos sempre fitos nas mãos…
De novo D. Margarida volta
ao triste passado. Lembra-se daquele horrível quarto que ocupavam no inverno de
1915. Foi naquele ano que o Inocêncio começou a beber. O frio foi a desculpa.
Depois, o coitado estava desempregado… Tinha perdido o lugar na fábrica. Andava
caminhando à toa o dia inteiro. Más companhias. “Ó Inocêncio, vamos tomar um
traguinho?” Lá se iam, entravam no primeiro boteco. E vá cachaça! Ele voltava
para casa fazendo um esforço desesperado para não cambalear. Mas mal abria a
boca, a gente sentia logo o cheiro de caninha. “Com efeito, Inocêncio! Você
andou bebendo outra vez!” Ah, mas ela não se abatia. Tratava o marido como se
ele tivesse dez anos e não trinta. Metia-o na cama. Dava-lhe café bem forte sem
açúcar, voltava para a Singer, e ficava pedalando horas e horas. Os galos já
estavam cantando quando ela ia deitar, com os rins doloridos, os olhos ardendo.
Um dia…
De súbito os sons do piano
morrem. A luz se acende. Aplausos. D. Margarida volta ao presente. Ao seu lado
Inocêncio bate palmas, sempre de boca aberta, os olhos cheios de lágrimas, pescoço
vermelho e pregueado, o ar humilde… Gilberto faz curvaturas para o público,
sorri, alisa os cabelos. (“Que lindos cabelos tem o meu filho, queria que a
senhora visse, comadre, crespinhos, vai ser um rapagão bonito.)
A escuridão torna a
submergir a platéia. A luz fantástica envolve pianista e piano. Algumas notas
saltam, como projéteis sonoros.
Navarra.
Embalada pela música (esta
sim, a gente entende um pouco), D. Margarida volta ao passado.
Como foram longos e duros
aqueles anos de luta! Inocêncio sempre no mau caminho. Gilberto crescendo. E
ela pedalando, pedalando, cansando os olhos; a dor nas costas aumentando,
Inocêncio arranjava empreguinhos de ordenado pequeno. Mas não tinha constância,
não tomava interesse. O diabo do homem era mesmo preguiçoso. O que queria era
andar na calaçaria, conversando pelos cafés, contando histórias, mentindo…
— Inocêncio, quando é que tu
crias juízo?
O pior era que ela não sabia
fazer cenas. Achava até graça naquele homenzinho encurvado, magro, desanimado,
que tinha crescido sem jamais deixar de ser criança. No fundo o que ela tinha
era pena do marido. Aceitava a sua sina. Trabalhava para sustentar a casa,
pensando sempre no futuro de Gilberto. Era por isso que a Singer funcionava dia
e noite. Graças a Deus nunca lhe faltava trabalho.
Um dia Inocêncio fez uma
proposta:
— Escuta aqui, Margarida. Eu
podia te ajudar nas costuras…
— Minha Nossa! Será que tu
queres fazer casas ou pregar botões?
— Olha, mulher. (Como ele
estava engraçado, com sua cara de fuinha, procurando falar a sério!) Eu podia
cobrar as contas e fazer a tua escrita.
Ela desatou a rir. Mas a
verdade é que Inocêncio passou a ser o seu cobrador. No primeiro mês a cobrança
saiu direitinho. No segundo mês o homem relaxou… No terceiro, bebeu o dinheiro
da única conta que conseguira cobrar.
Mas D. Margarida esquece o
passado. Tão bonita a música que Gilberto está tocando agora… E como ele se
entusiasma! O cabelo lhe cai sobre a testa, os ombros dançam, as mãos dançam…
Quem diria que aquele moço ali, pianista famoso, que recebe os aplausos de toda
esta gente, doutores, oficiais, capitalistas, políticos… o diabo! — é o mesmo
menino da rua da Olaria que andava descalço brincando na água da sarjeta,
correndo atrás da banda de música da Brigada Militar…
De novo a luz. As palmas.
Gilberto levanta os olhos para o camarote da mãe e lhe faz um sinal breve com a
mão, ao passo que seu sorriso se alarga, ganhando um brilho particular. D.
Margarida sente-se sufocada de felicidade. Mexe alvoroçadamente com os dedos do
pé, puro contentamento. Tem ímpetos de erguer-se no camarote e gritar para o
povo: “Vejam, é o meu filho! O Gilberto. O Betinho! Fui eu que lhe dei de
mamar! Fui eu que trabalhei na Singer para sustentar a casa, pagar o colégio
para ele! Com estas mãos, minha gente. Vejam! Vejam!”
A luz se apaga. E Gilberto
passa a contar em terna surdina as mágoas de Chopin.
No fundo do camarote
Inocêncio medita. O filho sorriu para a mãe. Só para a mãe. Ele viu… Mas não
tem direito de se queixar… O rapaz não lhe deve nada. Como pai ele nada fez.
Quando o público aplaude Gilberto, sem saber está aplaudindo também Margarida.
Cinquenta por cento das palmas devem vir para ela. Cinquenta ou sessenta?
Talvez sessenta. Se não fosse ela, era possível que o rapaz não desse para
nada. Foi o pulso de Margarida, a energia de Margarida, a fé de Margarida que
fizeram dele um grande pianista.
Na sombra do camarote,
Inocêncio sente que ele não pode, não deve participar daquela glória. Foi um
mau marido. Um péssimo pai. Viveu na vagabundagem, enquanto a mulher se matava
no trabalho. Ah! Mas como ele queria bem ao rapaz, como ele respeitava a
mulher! Às vezes, quando voltava para casa, via o filho dormindo. Tinha um ar
tão confiado, tão tranquilo, tão puro, que lhe vinha vontade de chorar. Jurava
que nunca mais tornaria a beber, prometia a si mesmo emendar-se. Mas qual! Lá
vinha um outro dia e ele começava a sentir aquela sede danada, aquela espécie
de cócegas na garganta. Ficava com a impressão de que se não tomasse um
traguinho era capaz de estourar. E depois havia também os maus companheiros. O
Maneca. O José Pinto. O Bebe-Fogo. Convidavam, insistiam… No fim de contas ele
não era nenhum santo.
Inocêncio contempla o filho.
Gilberto não puxou por ele. A cara do rapaz é bonita, franca, aberta. Puxou
pela Margarida. Graças a Deus. Que belas coisas lhe reservará o futuro? Daqui
para diante é só subir. A porta da fama é tão difícil, mas uma vez que a gente
consegue abri-la… adeus! Amanhã decerto o rapaz vai aos Estados Unidos… É capaz
até de ficar por lá… esquecer os pais. Não. Gilberto nunca esquecerá a mãe. O
pai, sim… E é bem-feito. O pai nunca teve vergonha. Foi um patife. Um vadio. Um
bêbedo.
Lágrimas brotam nos olhos de
Inocêncio. Diabo de música triste! O Betinho devia escolher um repertório mais
alegre.
No atarantamento da comoção,
Inocêncio sente necessidade de dizer alguma coisa. Inclina o corpo para a
frente e murmura:
— Margarida…
A mulher volta para ele uma
cara séria, de testa enrugada.
— Chit!
Inocêncio recua para a sua
sombra. Volta aos seus pensamentos amargos. E torna a chorar de vergonha,
lembrando-se do dia em que, já mocinho Gilberto lhe disse aquilo. Ele quer
esquecer aquelas palavras, quer afugentá-las, mas elas lhe soam na memória,
queimando como fogo, fazendo suas faces e suas orelhas arderem.
Ele tinha chegado bêbedo em
casa. Gilberto olhou-o bem nos olhos e disse sem nenhuma piedade:
— Tenho vergonha de ser
filho dum bêbedo!
Aquilo lhe doeu. Foi como
uma facada, dessas que não só cortam as carnes como também rasgam a alma. Desde
esse dia ele nunca mais bebeu.
No saguão do teatro,
terminado o concerto, Gilberto recebe cumprimentos dos admiradores. Algumas
moças o contemplam deslumbradas. Um senhor gordo e alto, muito bem vestido,
diz-lhe com voz profunda:
— Estou impressionado,
impressionadíssimo. Sim senhor! Gilberto enlaça a cintura da mãe:
— Reparto com minha mãe os
aplausos que eu recebi esta noite… Tudo que sou, devo a ela.
— Não diga isso, Betinho!
D. Margarida cora. Há no
grupo um silêncio comovido. Depois rompe de novo a conversa. Novos admiradores
chegam.
Inocêncio, de longe, olha as
pessoas que cercam o filho e a mulher. Um sentimento aniquilador de
inferioridade o esmaga, toma-lhe conta do corpo e do espírito, dando-lhe uma
vergonha tão grande como a que sentiria se estivesse nu, completamente nu ali
no saguão.
Afasta-se na direção da
porta, num desejo de fuga. Sai. Olha a noite, as estrelas, as luzes da praça, a
grande estátua, as árvores paradas… Sente uma enorme tristeza. A tristeza
desalentada de não poder voltar ao passado… Voltar para se corrigir, para
passar a vida a limpo, evitando todos os erros, todas as misérias…
O porteiro do teatro, um
mulato de uniforme cáqui, caminha dum lado para outro, sob a marquise.
— Linda noite! — diz
Inocêncio, procurando puxar conversa. O outro olha o céu e sacode a cabeça,
concordando.
— Linda mesmo.
Pausa curta.
— Não vê que sou o pai do
moço do concerto…
— Pai? Do pianista?
O porteiro para, contempla
Inocêncio com um ar incrédulo e diz:
— O menino tem os pulsos no
lugar. É um bicharedo.
Inocêncio sorri. Sua
sensação de inferioridade vai-se evaporando aos poucos.
— Pois imagine como são as
coisas — diz ele. — Não sei se o senhor sabe que nós fomos muito pobres… Pois
é. Fomos. Roemos um osso duro. A vida tem coisas engraçadas. Um dia… o Betinho
tinha seis meses… umas mãozinhas assim deste tamanho… nós botamos ele na nossa
cama. Minha mulher dum lado, eu do outro, ele no meio. Fazia um frio de rachar.
Pois o senhor sabe o que aconteceu? Eu senti nas minhas costas as mãozinhas do
menino e passei a noite impressionado, com medo de quebrar aqueles dedinhos, de
esmagar aquelas carninhas. O senhor sabe, quando a gente está nesse
dorme-não-dorme, fica o mesmo que tonto, não pensa direito. Eu podia me
levantar e ir dormir no sofá. Mas não. Fiquei ali no duro, de olho mal e mal
aberto, preocupado com o menino. Passei a noite inteira em claro, com a metade
do corpo para fora da cama. Amanheci todo dolorido, cansado, com a cabeça
pesada. Veja como são as coisas… Se eu tivesse esmagado as mãos do Betinho hoje
ele não estava aí tocando essas músicas difíceis… Não podia ser o artista que
é.
Cala-se. Sente agora que
pode reclamar para si uma partícula da glória do seu Gilberto. Satisfeito
consigo mesmo e com o mundo, começa a assobiar baixinho. O porteiro contempla-o
em silêncio. Arrebatado de repente por uma onda de ternura, Inocêncio tira do
bolso das calças uma nota amarrotada de cinquenta mil-réis e mete-a na mão do
mulato.
— Para tomar um traguinho —
cochicha.
E fica, todo excitado, a
olhar para as estrelas.
(Ilustração: Leo Jensen - the pianist)
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