terça-feira, 27 de maio de 2014

UM IMENSO TEATRO É ESTE MUNDO, de Gonçalves de Magalhães





ATO I
CENA I

Mariana e Lúcia

Vista de sala particular em casa de Mariana. De um lado uma cômoda, sobre a qual um oratório fechado [...] Do lado oposto uma mesa, e um candeeiro antigo. Mariana sentada, com um papel na mão, como que estuda sua parte teatral. Lúcia em pé, espevitando a luz.

Mariana

Deixa-me, Lúcia; deixa-me tranquila;
Vai-te, deixa-me só... Repousar quero
Esta cabeça de fadigas tantas.
De mim terias penas, se soubesses
Que turbilhão de foto me devora.
Sente tu mesma, toca. (Levando a mão de Lúcia à cabeça).

Lúcia

Oh, como queima!
Parece um forno!... Que terrível febre!
Senhora, quer que eu faça alguma cousa?
Quer que eu chame o doutor?

Mariana

Não, nada quero.
Somente que me deixes, eu to peço.

Lúcia

Como a posso deixar em tal estado?
Fora preciso um coração de pedra.
Não... agora me lembro... vou fazer-lhe
Um remédio caseiro, espere, eu volto. (Sai)


CENA II

Mariana

(Só) Pobre Lúcia, que amor tu me consagras...
És quase mãe, fiel, sincera amiga.
Quantas obrigações eu te não devo...
Oh! que aguda pontada!...

CENA III

Lúcia

(Voltando com um copo na mão). Aqui lhe trago.
Um remédio bem simples, mas que cura;
É um pouquinho d'água com vinagre.
Molha-se o lenço... assim... É cousa santa;
Não tenha medo; aplique-o sobre as fontes.
Ensinou-mo... quem mesmo?... nem me lembro.

Mariana

Oh, que dor! fez-me mal a frialdade.

Lúcia

É sempre assim; daqui a pouco passa.
Mas tenha paciência.

Mariana

Estou mais calma;
O calor se dissipa, e a dor abranda. (Pega no papel para ler.)

Lúcia

Deixe, senhora, esse papel maldito.
Que praga! Forte teima de leitura!
Continuamente a ler!... Nunca descansa!
Eis aí por que sofre... não se queixe.
O mesmo ferro, quando muito o malham,
E a pedra quando a batem, ferem fogo,
Quanto mais a cabeça que é sensível!
Isso é mania!

Mariana

(Levantando-se.) Vê como é difícil
O trabalho da mente, o quanto custa
Ter um nome no mundo! Enquanto dormes
No teu leito tranquila, eu velo, eu luto.
A noite para ti traz o repouso,
E se o dia ao trabalho te convida,
Com a paz no coração deixas o leito.
Teu diurno trabalho te não cansa;
Com a paz no coração ao leito voltas.
Mas eu, quando repouso? Ante um espelho,
Estudando paixões, compondo o corpo,
Mil expressões numa hora procurando,
Meus dias passo; e tu douda me julgas
Quando me vês gritar, lutar, ferir-me,
E às vezes investir-te, delirante!
Durante a noite minha fronte escaldo
Junto desta candeia, que me aclara,
Sua negra fumaça respirando,
Ou medindo o salão de um lado a outro
Sempre com o meu papel diante os olhos,
Como um espectro do sepulcro erguido,
Em desalinho, pálida: e cem vezes
Primeiro a luz se apaga, que eu me deite.
Se busco o leito, então, oh, que tormento!
Da cabeça inflamada o sono foge;
Nova cena a meus olhos se apresenta.
No teatro me cuido; escuto a orquestra,
Vejo a plateia, e os camarotes cheios,
Ouço os aplausos, bravos que me animam.
E com esta ilusão a vida cobro.
Mas eis que durmo, sonho, e de repente
Ao som da pateada aflita acordo.
É manhã; e outra vez começa a lida.
Oh, vida! oh, ilusão! oh, meu martírio!

Lúcia

Oh! certamente que me causa pena.
Tanto eu não poderia: antes quisera
Uma esmola pedir de porta em porta,
Do que seguir tal gênero de vida.
E então por que ralar sua existência?!
A rir, ou a chorar, como uma douda!

Mariana

Que dizes tu? Coitada! o teu discurso
Bem mostra que da glória o amor não sentes.

Lúcia

Não sinto, e queira o céu que eu nunca o sinta:
Que se da glória o amor é que lhe causa
Tantas inquietações, tantas vigílias,
Desprezo tal amor. Eu de contínuo
Nas minhas orações me recomendo,
Quando me deito, ao grande Santo Antônio,
E ao meu anjo da guarda que me ajudem,
E de vis malefícios me preservem.
Só quero amar a Deus... Diga, senhora,
Porventura Camões amava a glória?

Mariana

Oh, se a amava!... E que luso depois dele
Tanto amou-a?

Lúcia

Pois bem, sempre foi pobre;
Na miséria viveu, pedindo esmolas,
E morreu no hospital. Senhor Antônio
Que lhe diga o que ganha com as comédias
Que ele compõe, para agradar o povo.

Mariana

Ganha a reputação de Plauto luso,
De um ilustre escritor, de um grande homem.

Lúcia

(Com ar de compaixão.) Melhor fora dizer - de um pobre homem.

Mariana

E o que tem a pobreza com o talento?

Lúcia

Muito; que em Portugal andam casados.
E se o senhor Antônio continua,
Já  lhe prevejo um fim bem miserando.
Eu só ouço dizer que ele é jocoso,
Que faz as pedras rir: eis por que o amam.
E se não fosse a banca, e os demandistas
Que lhe dão de comer, creio decerto
Que ele morto estaria há muito tempo.
Ou pelas portas pediria esmola
Como o pobre Camões... Camões!... coitado!
Quando da sua sorte me recordo,
Em lágrimas meus olhos se convertem.
Pobre homem!... Tão moço!... Cavalheiro,
Que pudera ter sido alguma cousa,
Dar em poeta!... Andar fazendo versos!
Errando pelo mundo; naufragando;
Vir a Lisboa, e aqui pedir esmolas;
Comer o pão com lágrimas molhado; (Com tom de piedade e de compaixão.)
Morrer num hospital! Eu creio vê-lo (Limpando as lágrimas.)
Envolto num lençol, no adro da igreja,
Sobre a pedra estendido, ali, exposto,
Movendo a piedade de quem passa,
Que lhe atira um real pra sua cova!...
Oh, meu Deus, que castigo!... Eu tenho um filho,
Um filho que também erra no mundo;
Faze que ele da glória o amor não sinta;
Que não tenha talento, e sobretudo
Que não seja poeta, por que possa
Ser feliz sobre a terra.

Mariana

O teu discurso.
Malgrado meu, o coração me toca.
Confesso que não falas sem motivo.
Mil vezes refletindo sobre a sorte.
Vendo a miséria perseguir o gênio,
A ingratidão dos homens, a injustiça,
A infâmia que sobre ele a inveja lança,
E o desprezo da vil mediocridade,
Que no lodo se arrasta como o verme,
E outro Deus não conhece mais que o ouro,
Discorro como tu; e só desejo...
Nem sei o que... morrer... deixar o mundo.
Confesso que abraçara o teu conselho,
Se não fosse ser eu já conhecida,
E não poder arrepiar caminho.
Sobre mim julga o povo ter direito.
Amanhã se eu disser: adeus, teatro!
Todos se julgarão autorizados
A me vir indagar qual o motivo.
Que não diria o povo? e que calúnias,
Que infâmias sobre mim não lançaria?
Quase que sou escrava. No que dizes,
Acho muita razão.

Lúcia

Mas não a segue.

Mariana

Nem posso.

Lúcia

Então por quê?

Mariana

É impossível!

Lúcia

Impossível!

Mariana

Sim, Lúcia.

Lúcia

Quem a impede
De seguir meu conselho?

Mariana

A minha sorte.
Cada qual tem a sua; a minha é esta.

Lúcia

Mas a sorte se muda; mude a sua.

Mariana

E tu por que não mudas tua sorte?

Lúcia

A minha é outro caso; e só Deus sabe
Se lhe peço que a mude; mas debalde.

Mariana

Ah! tu cuidas que é Deus quem te embaraça
De mudar tua sorte?

Lúcia

Oh, certamente!
Não tenho vocação de andar servindo,
Nem faço gosto nisso.

Mariana

Pobre Lúcia,
Dás armas contra ti; sem gosto serves,
E cuidas não poder mudar de vida,
A culpa pondo em Deus, e tu me acusas?
Queres sem mais razão que eu mude a minha,
Quando por vocação me dou à cena?
Tenho razão demais para segui-la.

Lúcia

Lá, senhora Mariana, em argumentos
Não me quero meter com a senhora;
Não tiro conclusões, nem tenho estudos;
Mas enfim a razão está dizendo,
E dizer tenho ouvido a muita gente,
Que é melhor e mais nobre ser criada,
Que ser comediante.

Mariana

Lúcia, é muito!
Nunca pensei que a tanto te atrevesses.
Se não fora o ter dó do teu estado,
Hoje mesmo...

Lúcia

Senhora, não se ofenda;
Disse isto por dizer; sou uma tonta;
Desculpe esta ousadia.

Mariana

Eu te perdoo;
Tu pensas como o vulgo.

Lúcia

Eu me retiro.

Mariana

Vai-te, vai-te deitar.

Lúcia

Se necessita
De mim alguma cousa...

Mariana

Nada quero.

Lúcia

Boa noite, senhora.

Mariana

Deus te ajude.

CENA IV

Mariana

(). Entretanto ela pensa como o mundo,
Que nos vê com desprezo, e que nos trata
Como uma classe vil e desgraçada.
Sem  honra e sem pudor; que ousa mostrar-se
Em público debaixo de mil formas,
Só por amor do ganho; hoje trajada
Com as vestes reais de soberana,
Amanhã com os andrajos da pobreza...
Para rir, e passar alegre uma hora,
Não para corrigir seus ruins costumes,
O teatro procuram: nós lhes damos
Envolto em mel um salutar remédio;
Com seus próprios defeitos e seus erros
Excitamos o riso; e outras vezes
Com o quadro da desgraça e da virtude
N'alma nobres paixões lhes acendemos.
Mostramos a inocência perseguida,
Um pai sem coração, um filho ingrato,
Uma esposa infiel, um rei tirano,
Um magistrado que a justiça vende.
Interpretando a história, e dando vida
Às sublimes lições da poesia,
Lhes mostramos os rápidos contrastes
Do nada e da grandeza: eles nos ouvem,
Eles nos veem com lágrimas nos olhos;
E quando nós lhes embebemos n'alma
A dor, a compaixão, o amor, e a ira
Como nós da paixão só possuídos,
Esquecidos mil vezes, nos transportes,
Que dos quadros que veem, eles são normas,
Que de crimes iguais são réus às vezes,
Cheios de entusiasmo nos aplaudem,
Choram mesmo conosco, e se envergonham
Ao aspecto do quadro, que desperta
Como um remorso vivo a consciência
De seus crimes; porém a noite passa,
E amanhã o desprezo é nosso prêmio!...
Nós somos como a flor, que, enquanto fresca
Seu cheiro exala, a guardam cuidadosos;
Mas logo que exalou o aroma todo,
Logo que murcha, para o canto a atiram.
Assim pratica o povo, ingrato sempre!
Eu sei que isto é assim; porém que importa!
Não posso resistir ao meu instinto...
Um imenso teatro é este mundo;
Um papel aqui todos representam;
Eu represento dois, de dia e noite.
Eis meu único crime. [...]


(O Teatro de Inspiração Romântica: Antônio José, ou O poeta e a Inquisição; organização de Flávio Aguiar)


(Ilustração:  Erich von Gotha)




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