sábado, 7 de dezembro de 2013
A FUGA DO AMANTE, de Gustave Flaubert
Mal chegou a casa, Rodolfo sentou-se bruscamente à escrivaninha, debaixo da cabeça de veado posta na parede à maneira de troféu. Mas, quando pegou na pena, não foi capaz de escrever nada, de modo que, apoiando-se nos dois cotovelos, se pôs a reflectir. Ema parecia ter recuado para um passado longínquo, como se a resolução por ele tomada tivesse estabelecido subitamente entre os dois um imenso intervalo.
Para tornar a evocar qualquer coisa dela, foi procurar no armário, à cabeceira da cama, uma velha caixa de biscoitos de Reims, onde tinha o hábito de meter todas as cartas de mulheres. De dentro saiu um cheiro de poeira úmida e rosas murchas. Primeiro encontrou um lenço de bolso, coberto de gotinhas desmaiadas. Era um lenço dela, de uma vez que, a passear, deitara sangue pelo nariz, já nem se lembrava. Havia depois, dobrado em todos os cantos, o retrato oferecido por Ema, o trajo pareceu-lhe pretensioso e o olhar, afetado, do mais deplorável efeito, depois, à força de olhar para aquela imagem e de evocar a recordação do modelo, os traços de Ema foram-se-lhe pouco a pouco confundindo na memória, como se a figura viva e a figura pintada, roçando-se uma na outra, se tivessem reciprocamente apagado. Finalmente, leu cartas dela,estavam cheias de explicações referentes à viagem, breves, técnicas e insistentes como cartas comerciais. Quis rever as longas, as de outrora, para encontrá-las no fundo da caixa, Rodolfo desarrumou todas as outras, e, maquinalmente, pôs-se a remexer aquele monte de papéis e de coisas, encontrando a trouxe-mouxe ramalhetes, uma liga, uma máscara negra, alfinetes e cabelos - cabelos!, escuros, louros, alguns, até, presos à ferragem da caixa, partiam-se quando a abria.
Vagueando assim no meio das suas recordações, examinava as caligrafias e o estilo das cartas, tão variadas como as respectivas ortografias. Eram ternas ou joviais, galhofeiras ou melancólicas, algumas pediam amor e outras pediam dinheiro. A propósito de uma palavra, lembrava-se de feições, de certos gestos, de um som de voz, no entanto, algumas vezes não se lembrava de nada.
Efetivamente, aquelas mulheres, acorrendo-lhe todas juntas ao pensamento, apertavam-se umas às outras e reduziam as suas proporções, como que no mesmo nível de amor que as fazia iguais. Pegando então num punhado daquelas cartas todas misturadas, entreteve-se durante alguns momentos a fazê-las cair em cascata, da mão direita para a mão esquerda. Por fim, entediado, sonolento, Rodolfo voltou a colocar a caixa dentro do armário, dizendo para si mesmo: "Que monte de patetices!..."
Isto resumia a sua opinião, porque os prazeres, como garotos no pátio de um colégio, de tal modo lhe haviam espezinhado o coração que nenhuma verdura nele nascia, e quem por lá passava, mais estouvado do que as crianças, nem ao menos deixava, como elas, o nome gravado na parede.
"Vamos lá começar", pensou ele!
Escreveu:
"Coragem, Ema! Tenha coragem! Não quero fazer a infelicidade da sua existência..." - No fim de contas, é verdade, pensou Rodolfo. - Procedo no seu interesse, sou honesto. "Acaso ponderou maduramente a sua determinação? Sabe o abismo para o qual eu a estava arrastando, pobre anjo? Não sabe, pois não? Ia confiante e louca, acreditando na felicidade, no futuro... Como somos infelizes, insensatos!"
Rodolfo deteve-se para procurar aqui uma boa desculpa.
- Se eu lhe dissesse que perdi toda a minha fortuna?... Isso não! Aliás não resolveria nada. Daria para recomeçar mais tarde. Pode-se lá fazer ouvir a razão a mulheres daquele gênero!
Refletiu e depois acrescentou:
"Nunca a esquecerei, acredite-me, e terei sempre por si uma profunda dedicação, mas, um dia, mais tarde ou mais cedo, este ardor (é essa a sorte de tudo o que é humano) reduzir-se-ia, sem dúvida! Surgir-nos-ia o enfado, e quem sabe se até eu não passaria pelo atroz sofrimento de assistir aos seus remorsos e de participar eu próprio neles, por ter sido o causador de tudo. Basta-me a ideia dos seus desgostos para me torturar, Ema! Esqueça-me! Porque haveria eu de conhecê-la? E porque haveria de ser tão bela? Serei culpado disso? Oh, meu Deus! Não, não me acuse. A culpa é da fatalidade!"
- Aqui está uma palavra que produz sempre efeito, pensou ele.
"Se a Ema fosse uma dessas mulheres de coração frívolo, como se veem tantas, então sim, eu teria podido, por egoísmo, tentar uma experiência sem perigo para si. Mas essa deliciosa exaltação, causa ao mesmo tempo do seu encanto e do seu tormento, impede-a de compreender, mulher adorável, a falsidade da nossa posição futura. Tampouco tinha eu a princípio reflectido nisso e descansava à sombra dessa felicidade ideal, como à sombra da mançanilheira, sem prever as consequências."
- Ela vai talvez acreditar que é por avareza que renuncio... Deixá-lo! Não faz mal! O que é preciso é acabar com isto!
"O mundo é cruel, Ema. Onde quer que estivéssemos, ele perseguir-nos-ia. Teria de suportar perguntas indiscretas, a calúnia, o desdém, talvez até o ultraje. O ultraje para si! Não!... O que eu desejaria era fazê-la sentar sobre um trono! Levo a recordação da sua pessoa como um talismã! Sim, porque me puno com o desterro de todo o mal que lhe tenho causado. Vou-me embora. Para onde? Nada sei, porque estou louco! Seja sempre boa! Conserve a lembrança do desgraçado que a perdeu. Ensine o meu nome à sua filha, para que o repita nas suas orações."
A chama das duas velas estremecia. Rodolfo levantou-se para ir fechar a janela e, quando se voltou a sentar, pensou:
- Parece-me que é tudo. Ah!, ainda mais isto, para que não venha outra vez agarrar-se a mim:
"Já estarei longe quando ler estas tristes linhas, pois quis fugir bem depressa para evitar a tentação de voltar a vê-la. Nada de fraquezas! Voltarei depois, e talvez que, mais tarde, possamos conversar juntos, friamente, sobre os nossos antigos amores. Adeus!"
E havia um último adeus, separado em duas palavras: "A Deus!", o que lhe pareceu de muito bom efeito.
- Agora como é que eu vou assinar? - pensou ele. Seu muito dedicado?... Não. Seu amigo?... Sim, é isso., Seu amigo.
Releu a carta. Pareceu-lhe boa.
- Pobre mulher!, pensou, com enternecimento. Vai acreditar que sou mais insensível do que uma rocha, faziam falta algumas lágrimas em cima disto, mas não sou capaz de chorar, não tenho culpa.
Então, pondo água num copo, Rodolfo molhou um dedo e deixou cair do alto uma grande gota que fez uma mancha esbatida sobre a tinta, depois, querendo lacrar a carta, encontrou o sinete Amor nel cor.
- Isto é que não vem nada a propósito... Ora, não tem importância!
No fim de tudo fumou três cachimbadas e foi-se deitar.
No dia seguinte, quando se levantou (cerca das duas horas, porque se deitara tarde), mandou apanhar um cesto de damascos. Colocou a carta no fundo, debaixo de folhas de parreira, e deu imediatamente ordem a Girard, o moço do arado, que levasse aquilo delicadamente a casa da senhora Bovary. Costumava servir-se daquele meio para se corresponder com ela, enviando-lhe, conforme a época do ano, fruta ou caça.
- Se ela te pedir notícias minhas - disse-lhe ele - responde que saí para uma viagem. Tens de entregar o cesto diretamente nas mãos dela... Vai, anda, e tem cuidado!
Girard envergou a sua blusa nova, atou o lenço por cima dos damascos e, caminhando a passos largos e pesados nas suas enormes galochas ferradas, tomou tranquilamente o caminho de Yonville.
A senhora Bovary, quando o rapaz lá chegou, estava com Felicidade, arrumando, em cima da mesa da cozinha, um embrulho de roupa.
- Aqui está isto que o meu patrão lhe manda - disse o moço.
Ema sentiu-se imediatamente apreensiva e, ao mesmo tempo que procurava qualquer moeda no bolso, fitava o camponês com olhos desvairados, enquanto este, por sua vez, a olhava espantado, não compreendendo como um presente tão simples pudesse comover alguém daquele modo. Finalmente, o rapaz saiu. Felicidade ficou. Ema não aguentava mais, correu para a sala como se lá fosse colocar os damascos, despejou o cesto, arrancou as folhas, achou a carta, abriu-a e, como se atrás dela houvesse um terrível incêndio, desatou a fugir para o quarto, aterrorizada.
Carlos estava lá, ela viu-o, ele falou-lhe, ela não ouviu nada e continuou a subir rapidamente os degraus, ofegante, desvairada, entontecida, segurando sempre aquela horrível folha de papel, que lhe estalava entre os dedos como um bocado de lata. No segundo andar parou diante da porta do sótão, que estava fechada.
Então quis acalmar-se, lembrou-se da carta, tinha de acabar de a ler, mas não conseguia. Além disso, onde? Como? Os outros vê-la-iam.
"Ah! Não, aqui estarei bem", pensou. Empurrou a porta e entrou.
O telhado de ardósia deixava cair a prumo um calor pesado que lhe apertava as fontes e a sufocava, arrastou-se até à trapeira fechada, correu-lhe o ferrolho e a luz jorrou deslumbrante no mesmo momento.
Em frente, para além dos telhados, estendia-se a planície até se perder de vista. Em baixo, a praça da vila estava deserta, as pedras do ladrilho cintilavam, os cata-ventos das casas mantinham-se imóveis, à esquina da rua, saía de um andar inferior uma espécie de ronco com modulações estridentes. Era Binet a tornear.
Ema encostara-se ao peitoril da água-furtada e relia a carta com risadas de cólera. Mas, quanto mais fixava nela a atenção, mais as ideias se lhe confundiam. Continuava a vê-lo, a ouvi-lo, a estreitá-lo nos braços, no peito, as pulsações do coração causavam-lhe a sensação de fortes pancadas de aríete, acelerando-se umas após outras, com intermitências desiguais.
Lançava o olhar em redor, sentindo o desejo de que o mundo se desmoronasse.
Por que não acabar com tudo? Quem a impediria? Era livre. E avançou, olhou para a calçada e disse para consigo: "Vamos! Vamos!" O raio luminoso que vinha diretamente de baixo atraía-lhe para o abismo o peso do corpo. Parecia-lhe que o solo da praça oscilava, elevando-se ao longo das paredes, e que o sobrado se inclinava para a extremidade, como um navio sobre as ondas. Ema segurava-se mesmo à borda, quase suspensa, rodeada por um grande espaço. O azul do céu invadia-a, o ar circulava-lhe na cabeça vazia, bastava-lhe ceder, deixar-se levar, e o ronco do torno não parava, como uma voz furiosa que a estivesse chamando.
- Ó mulher!, mulher! - gritou Carlos.
Ema deteve-se.
- Mas onde é que estás? Vem daí!
A consciência de ter acabado de escapar à morte quase a fez desmaiar de terror, fechou os olhos, depois estremeceu ao contacto de uma mão que lhe tocava no braço: era Felicidade.
- O senhor está à sua espera, a sopa já está nos pratos.
E teve de descer! Não teve outro remédio senão sentar-se à mesa!
Experimentou comer. Os pedaços de comida sufocavam-na. Então desdobrou o guardanapo, como que para examinar as passagens que tinha, e procurou mesmo entregar-se a esse trabalho, contar os fios do tecido. Subitamente voltou a lembrar-se da carta. Tinha-a então perdido? Onde poderia encontrá-la? Mas sentia-se tão esgotada que não conseguiu inventar nenhum pretexto para se levantar da mesa. Além disso acobardara-se, tinha medo de Carlos, ele com certeza sabia de tudo! Efetivamente, ele pronunciou, de modo singular, as seguintes palavras:
- Parece que não veremos tão cedo o senhor Rodolfo.
- Quem foi que te disse? - respondeu ela, estremecendo.
- Quem me disse? - replicou ele, um pouco surpreendido com o tom brusco dela. - Foi o Girard, que encontrei há momentos à porta do Café Francês. Parece que vai ou que foi fazer uma viagem.
Ema teve um soluço.
- Por que é que te admiras? Ele ausenta-se assim de tempos a tempos para se distrair e acho que faz muito bem! Quando se tem uma fortuna e se é ainda novo!... Aliás, o nosso amigo diverte-se à larga! É um grande estroina. O senhor Langlois contou-me...
Calou-se, por decoro, por causa da criada, que entrava nesse momento. Esta repôs dentro do cesto os damascos espalhados em cima do aparador, Carlos, sem notar o rubor da mulher, pediu os frutos, pegou num e deu-lhe uma dentada.
- Oh! Magnífico! - dizia ele. - Toma, prova.
E estendeu-lhe o cesto, que ela repeliu delicadamente.
- Mas cheira: que perfume! - insistiu ele, passando-o várias vezes por debaixo do nariz de Ema.
- Falta-me o ar! - exclamou ela, levantando-se de um pulo.
Mas, por um esforço de vontade, este espasmo desapareceu, depois continuou:
- Não é nada! Não é nada! É nervoso! Senta-te e come!
Porque temia que lhe fizessem perguntas, que a fossem tratar, que não a deixassem mais.
Carlos, para obedecer, voltara a sentar-se e cuspia na mão os caroços dos damascos, que colocava seguidamente no prato.
Subitamente passou na praça, a trote rápido, um tílburi azul. Ema deu um grito e caiu hirta, de costas, no chão.
Com efeito, Rodolfo, depois de muitas reflexões, decidira-se a partir para Ruão. Ora, como da Huchette para Buchy não há outro caminho senão o de Yonville, teve de atravessar a vila, e Ema reconhecera-o, à luz das lanternas que, como um relâmpago, rasgavam o crepúsculo.
O farmacêutico, com o tumulto que se produziu em casa de Bovary, precipitou-se para lá.
A mesa, com todos os pratos, estava tombada: molho, carne, facas, saleiro e galheteiro, tudo espalhado pelo aposento, Carlos pedia socorro, Berta, assombrada, gritava e Felicidade, com as mãos a tremer, desapertava a senhora, que tinha movimentos convulsivos por todo o corpo.
- Vou a correr ao laboratório - disse o boticário - buscar um pouco de vinagre aromático.
Depois, quando ela voltou a abrir os olhos com o cheiro do frasco, disse ainda:
- Eu tinha a certeza, isto até acordava um morto.
- Fala! - dizia Carlos, fala conosco! Sossega! Sou eu, o teu Carlos, que te ama! Não me reconheces? Olha, aqui tens a tua filhinha: vá, dá-lhe um beijo!
A criança estendia os braços à mãe para se lhe pendurar no pescoço. Mas, desviando a cabeça, Ema disse com voz sacudida:
- Não, não... ninguém!
E tornou a desmaiar. Levaram-na para a cama.
Ficou ali estendida, de boca aberta, com as pálpebras cerradas, as mãos estendidas, imóvel e branca como uma estátua de cera. Dos olhos saíam-lhe dois fios de lágrimas que corriam lentamente sobre o travesseiro.
Carlos, de pé, conservava-se ao fundo da alcova e o farmacêutico, junto dele, mantinha o silêncio meditativo que convém adotar nas ocasiões sérias da vida.
- Tenha calma - disse ele, dando-lhe um toque no cotovelo. - Parece-me que o paroxismo já passou.
- Sim, agora está a repousar um pouco! - respondeu Carlos, que a via dormir. - Minha pobre mulher!... Minha pobre mulher!... Foi uma recaída!
Então, Homais quis saber como tinha surgido aquele acidente. Carlos respondeu que lhe tinha sobrevindo repentinamente, quando ela estava comendo damascos.
- É extraordinário!... - continuou o farmacêutico. - Mas podem até ter sido os damascos que lhe provocaram a síncope! Há temperamentos extremamente sensíveis em relação a determinados aromas. Seria um bom assunto de investigação, tanto no aspecto patológico como no aspecto fisiológico. Os padres, que sempre utilizaram perfumes nas suas cerimônias, conhecem-lhes a importância. Fazem isso para nos embotar a mente e provocar êxtases, o que é, aliás, fácil de conseguir em pessoas do sexo feminino, que são mais delicadas do que nós. Conhecem-se casos de algumas que desmaiaram com o cheiro de chifre queimado, de pão quente...
- Cuidado, para não a despertar! - disse Bovary em voz baixa.
- E não são apenas os humanos - continuou o boticário -, mas até os animais estão sujeitos a estas anomalias. O doutor naturalmente não desconhece o efeito singularmente afrodisíaco que provoca a Nepeta cataria, vulgarmente chamada erva-de-gato, na espécie felina; por outro lado, para lhe citar um exemplo de que garanto a autenticidade, Bridoux (um dos meus antigos camaradas, atualmente estabelecido na rua Malpalu) possui um cão que entra em convulsões de cada vez que se lhe apresenta uma caixa de rapé. Muitas vezes ele até faz a experiência diante dos amigos, na casa que tem no Bosque Guillaume. Poder-se-ia imaginar que um simples esternutatório seria suficiente para causar semelhante devastação no organismo de um quadrúpede? É extremamente curioso, não é verdade?
- Pois é - respondeu Carlos, que nem o escutava.
- Isto prova - continuou o outro, sorrindo com um ar de benigna suficiência -, as inumeráveis irregularidades do sistema nervoso. No que diz respeito à sua esposa, ela sempre me pareceu, confesso, uma verdadeira sensitiva. Por isso eu nunca lhe aconselharia, meu bom amigo, nenhum desses pretensos remédios que, a pretexto de atacarem os sintomas, atacam mas é o temperamento. Nada de medicação desnecessária! Dieta, mais nada. Sedativos, emolientes, dulcificantes. Depois não pensa que seria talvez necessário tratar a imaginação?
- O quê? Como? - disse Bovary.
- Ah! Aí está o problema! Essa é efetivamente a questão: That is the question, como li há pouco tempo no jornal.
Mas Ema, acordando, exclamou:
- E a carta? E a carta?
Pensaram que estivesse delirando, e delirou efetivamente a partir da meia-noite: declarara-se uma febre cerebral.
Durante quarenta e três dias, Carlos não a deixou um instante. Abandonou todos os seus doentes, não se deitava, estava continuamente a tomar-lhe o pulso, a aplicar-lhe sinapismos, compressas de água fria. Mandava Justino buscar gelo a Neufchâtel, o gelo derretia-se pelo caminho, voltava a mandá-lo lá. Chamou o doutor Canivet para uma consulta, mandou vir de Ruão o doutor Larivière, seu antigo professor, estava desesperado. O que mais o assustava era o abatimento de Ema, ela não falava, não ouvia nada e até parecia não sofrer, como se tanto o corpo como a alma estivessem ambos repousando de todas as suas agitações.
Por meados de outubro, Ema pôde segurar-se sentada na cama, com almofadas atrás dela. Carlos chorou quando a viu comer a sua primeira fatia de pão com doce. Voltaram-lhe as forças, levantava-se algumas horas durante a tarde e, um dia em que ela se sentia melhor, Carlos procurou levá-la pelo braço a dar um passeio pelo jardim. Não se via a areia do caminho coberto de folhas secas, ela dava um passo de cada vez, arrastando as chinelas, e, apoiada no ombro de Carlos, continuava a sorrir.
Chegaram assim ao fundo do jardim, junto do terraço. Ela endireitou-se lentamente, colocou a mão por cima dos olhos, para observar, olhou para longe, para muito longe, mas nada havia no horizonte senão grandes fogueiras de mato, fumegando sobre as colinas.
- Vais-te cansar, querida - disse Bovary.
E, empurrando-a levemente para a obrigar a entrar no caramanchão, continuou:
- Senta-te aqui neste banco: assim ficas bem.
- Não! Aí não, aí não! - balbuciou ela apenas.
Sentiu uma vertigem e, a partir daquela noite, agravou-se-lhe de novo a doença, com um ritmo mais incerto, é verdade, mas com características mais complexas. Tão depressa sofria do coração, como do peito, ora se queixava do cérebro, ora dos membros, apareceram-lhe vômitos, no que pareceu a Carlos reconhecer os primeiros sintomas de cancro.
E o pobre homem, por cima de tudo aquilo, andava inquieto por falta de dinheiro.
(Madame Bovary; tradução de Fernanda Ferreira Graça)
(Ilustração: Paula Rego - mulher cão)
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