(Inferno - tradução de Aníbal Fernandes)
quinta-feira, 7 de novembro de 2013
SYLVA SYLVARUM, de August Strindberg
Atingido meio caminho na minha vida,
sento-me a descansar e a refletir.
Alcancei tudo o que audaciosamente
desejei e sonhei. Carregado de vergonha e honra, alegrias e sofrimento,
pergunto: E depois?
Tudo se vai repetindo numa desesperante monotonia, tudo é idêntico. Disseram os
Antigos que o Universo já não possui segredos, encontramos a palavra de todos
os enigmas, resolvemos todos os problemas. Com um espectroscópio vimos que o
Sol tem falta de oxigênio, não impedindo que arda tão bem como o antimônio no
cloro ou o cobre no enxofre.
Desenhamos os canais de Marte que tão desagradavelmente recordam os desenhos de
Widmannestetten nos meteoritos e, no entanto, só há bem pouco tempo sabemos ao
certo como é o aspecto interior de África e nada conhecemos de Bornéu ou dos
oceanos polares.
Uma geração que devia ter tido a coragem de suprimir Deus, demolir o Estado, a
Igreja, a sociedade e os costumes, ainda se vergou à ciência em que devia reinar
a liberdade mas cuja palavra de ordem foi acreditar na autoridade ou morrer!
Ainda não foi erigida qualquer coluna da Bastilha no local de uma antiga
Sorbonne. A cruz ainda domina o Panteão e a cúpula o Instituto.
Não há nada a fazer neste mundo. Sinto-me inútil e resolvido a desaparecer.
Já a lâmpada de espírito-de-vinho está acesa debaixo da retorta, já amarelo
como ouro está o ferrocianeto de potássio que cheira como o cardo-leiteiro
quando quente, destilado do sangue e do ferro, prestes a receber o ácido
sulfúrico que oferece a morte quando concentrado e cria a vida por fermentação
quando diluído. Desta vez será concentrado para provocar a morte. - Que
diferença, afinal? E que soberba contradição!
O cianogênio, o gerador de azul nascido do sal amarelo, começa a desenvolver-se
na mais inocente de todas as combinações que o carvão puro faz com o
indiferente azoto, uma terrível aliança que não tem igual e forçou a ciência a
confessar ignorância perante a natureza deste milagre.
Os vapores saem do recipiente e atingem-me a garganta como a difteria ou os
venenos de cadáver não oxigenados. Os músculos do braço começam a paralisar-se
e sinto dores agudas na espinal-medula.
Interrompo a operação quando o cheiro a amêndoas amargas se liberta. Sem saber
por quê, parece-me que vejo uma amendoeira em flor numa álea de jardim e oiço
uma voz de mulher velha que diz ó criança, não acredites nisso!
Não voltei a acreditar, portanto, que o segredo do Universo esteja desvendado e
saí, umas vezes só, outras acompanhado, para refletir na grande desordem onde
acabei por descobrir uma coerência infinita.
Este é o livro da grande desordem e coerência infinita.
Eis o meu Universo, como o criei e a mim se revelou:
Se quiseres seguir-me, peregrino, transeunte, começarás a respirar mais
livremente. Porque no meu Universo reina a desordem e na desordem é que existe
a liberdade.
(Inferno - tradução de Aníbal Fernandes)
(Ilustração: Hugo Morbelli - ya
sin chance)
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