sábado, 23 de fevereiro de 2013
A TATURANA E A PAREDE, de Fernando Reinach
Foi logo no primeiro dia que a
taturana entrou no terraço. Espalhado em uma poltrona, tentando ler a coletânea
completa dos contos de Ann Beattie, viu a futura borboleta se deslocar pelo
piso de pedra mineira. Dois contos mais tarde, lá estava ela subindo pela
parede de tijolo. Mais um conto e ela chegou aos caibros do telhado. Contos
depois, estava perto do piso. Depois subiu novamente, desceu e subiu.
Com a vista cansada, as pernas duras
e as costas doendo, foi caminhar pelo jardim, pensando não nos contos de
Beattie, mas no sobe e desce da taturana. Como seria a mente de uma taturana?
Por que esse constante subir e descer pela parede? Provavelmente ela imaginou
que a parede era uma árvore, subiu para procurar alimento.
Melancólico, concluiu que a casa
estava interferindo no ciclo natural das taturanas. Durante milhões de anos, os
ancestrais daquela taturana viveram em um mundo em que todos os planos
verticais eram caules e troncos de árvores. E no topo de cada uma dessas
superfícies verticais estavam as folhas de que necessitava. Pobre taturana,
imaginar que uma parede de tijolo possui folhas no seu topo. Morreria de fome.
Voltou para o terraço. Os contos de
Beattie estavam lá, mas a taturana havia desaparecido.
Foi na segunda noite, enquanto lia
Greenwich Time na mesma poltrona, que um enorme besouro entrou voando no
terraço. Bateu na lâmpada e caiu de barriga para cima no piso de pedra mineira.
Talvez o fato tivesse passado despercebido se seu filho não tivesse corrido
para observar o inseto, que recolhia as asas e agitava as pernas, tentando se
colocar de pé. Bastou alguns segundos de observação para o menino concluir que
os besouros são incapazes de se virar quando caem de costas e vir comunicar a
grande descoberta. Largou o livro e explicou que o besouro só fica imobilizado
se cai em uma superfície lisa e plana como o piso do terraço.
Para convencer o filho incrédulo,
nada como um experimento. Capturado, o besouro foi levado para o gramado e
colocado de ponta-cabeça. Rapidamente, agarrou uma folha e se virou. Enquanto o
filho e um amigo repetiam o experimento, levando o besouro da grama ao terraço,
testando diferentes superfícies, voltou à poltrona. O terraço no qual gostava
tanto de ler não só matava taturanas, mas podia enlouquecer besouros.
Selecionados durante milênios para se virar em qualquer ambiente natural,
estavam condenados à morte se caíssem de costas nos pisos construídos pelo
homem. Não bastavam as paredes, os pisos também eram culpados.
Foi no quinto e último dia que as
superfícies verticais voltaram a interromper a leitura dos contos. Logo de
manhã, os meninos chegaram ao terraço com as mãos em concha, abrigando um
passarinho desacordado. "Ele veio voando e bateu na janela de vidro."
Com o pássaro sobre a mesa, ponderaram se ele sobreviveria. Ainda respirava,
mas os olhos estavam fechados.
Conformado, explicou para os meninos
que no mundo em que os pássaros surgiram não existiam grandes painéis de vidro
transparentes, invenção recente do Homo sapiens. Suspirou. Era demais: o vidro
que permitia que olhasse as jabuticabeiras estava matando passarinhos.
Protegido dos cachorros por uma tela de cobrir bolos e sob a observação dos
meninos, alguns contos depois, o pássaro acordou do trauma, ficou de pé, e saiu
voando.
No final da tarde, quando achava que
terminaria o livro, um grande lagarto, perseguido pelos cachorros, pulou na
piscina. Pobre lagarto, sempre soube que para escapar de carnívoros basta
correr para a represa ou para um buraco. Mas esta represa de azulejos é cercada
de paredes verticais e o lagarto andava pelo fundo, buscando um plano inclinado
que o levasse para o raso e finalmente para fora da água.
Inútil, o lagarto nunca havia
aprendido a sair de represas com paredes verticais e azulejos lisos. Quase com
tédio, explicou aos meninos por que seria necessário resgatar o lagarto com uma
peneira de coletar folhas. Resgate feito, sem dúvida o ponto alto dos feriados,
voltou aos contos por algumas horas.
O Sol se punha e as malas estavam sendo
colocadas no carro. Largou o livro com olhos cansados e foi dar um último
passeio. Comeu algumas jabuticabas e pitangas, procurou os micos no topo das
árvores e alguma capivara nos arredores da represa. Enquanto refletia como algo
tão simples como as superfícies verticais e horizontais de uma casa são
suficientes para atrapalhar a vida dos animais, consolou-se com o fato de pelo
menos achar que compreendia o que estava acontecendo.
Foi quando se lembrou de que seus
ancestrais também não se sentavam em cadeiras, quase imóveis, lendo livros.
Talvez isso explicasse a dor nas costas e a vista cansada. Lembrou que seus
ancestrais foram selecionados durante centenas de milhares de anos para viver
em pequenos grupos, caminhando pela floresta, comendo frutas, caçando e
observando a natureza. Talvez isso explicasse por que se sentia alegre naquele
final de tarde.
Resignado, concluiu que os seres
humanos não foram selecionados ao longo do tempo para passar horas dirigindo de
volta para São Paulo em uma estrada congestionada.
Entraram no carro e, quando ligou o
motor, percebeu que a crônica que teria de escrever na manhã seguinte já estava
pronta. Feliz, encarou a estrada de volta.
(OESP/22
de novembro de 2012)
(Ilustração: Odilon Redon -
smiling spider)
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