domingo, 1 de julho de 2012

A MORTE LIMPA AS COISAS, de Fernanda Young





- Você cortou o cabelo?
- Cortei.

"Não, ele encolheu, fiz a bainha... Que pergunta!"

- Não gostei. Você tem a cabeça pequena, não fica bem de cabelo curto.
-Tá bom, mãe. Você pegou um avião, fez esse mistério todo e veio aqui só para me dizer que sou feia.
- Eu não disse isso.
- Desculpa. Qual é o motivo da visita?
- Seu pai morreu.

Silêncio.

- Morreu tem um mês.
- Como você ficou sabendo?
- Se lembra da Célia, uma gordona que era amiga da sua avó?

"Como ela quer que eu me lembre de Célia, uma gordona. Não me lembro nem do meu pai".

- Ela me ligou, para avisar.
- Um mês depois?
- Ela me ligou há quinze dias. Eu não sabia se devia contar para você. Achei que era besteira.
- É, de certa forma... Como ele morreu?
- Atropelado.

Ana e Helena estão em silêncio. Estavam, agora Ana ri. A mãe olha para ela intrigada, e este olhar faz com que Ana ria ainda mais, se encaminhando para o tom crescente da gargalhada. Sente aquele impulso que estimula o sentido histriônico das pessoas, sempre nos mementos mais difíceis. Chamado por Ana e Elisa de "gargalhada de elevador". Um ataque de idiotice gargalhante, provocado por uma reação nervosa. Mais ou menos como fumar um baseado e entrar num elevador lotado. Daí o nome. Esse tipo de gargalhada costuma levar todos que estão perto a rir também, mesmo sem entender bem por quê.

Mas Helena sabe por que a filha está rindo. E ri junto, gargalha. Uma gargalhada que transforma o seu rosto, já envelhecido, numa máscara de juventude. Helena estava rindo, da mesma maneira que ria quando tinha quinze anos de idade. É a Helena de anos atrás, gargalhando da  piada de algum colega de ginásio.

- Atropelado?
- É, atropelado.

Estão rindo há mais de cinco minutos. Helena começa a sentir dores de tanto rir.

- Isto é melhor que abdominal.
- Abdominal?

Quá, quá, quá, quá, quá... Mais risos. Ana já está com a boca cansada. Helena se joga sobre a filha. Qualquer pessoa de fora, que assistisse à cena, acabaria aderindo à gargalhada. Ana tenta se acalmar e deita no chão.

- Atropelado por um Opala.
- Não!

Quá, quá, quá.

-É muito engraçado.
- É triste.

Helena acende um cigarro, engasga com a fumaça.

- Ai, preciso parar de rir.
- Mãe, quer dizer que morreu? Morreu mesmo?
- De manhã, quando foi à padaria.
- Que coisa mais inglória.
- Bem feito.
- Coitado. Enterraram onde?
- Sei lá. Você devia ligar para seus irmãozinhos.
- Eu nem sei o nome deles.
- Tem cerveja aí?
- Não sabia que você bebia cerveja.
- Ana, você não sabe de nada.
- Nossa!

Ana tem duas garrafas de cerveja na geladeira. Estão bem geladas, ela sente uma imensa vontade de beber aquelas garrafas. Há muito não deseja algo com tanto prazer. Procura as tulipas que sobraram de seu casamento. Desiste. Ultimamente, as suas coisas andam sumidas. Algumas ainda não foram tiradas das sacolas. Ana não se sentiu animada para arrumar, com dedicação, a sua nova casa.

Serviu a bebida em copos simples, de vidro, aqueles de queijo light.

- Toma.

Helena tomou um longo gole. Ana observa. "Ela é bonita".

- Eu herdei alguma coisa?
- Não me faça rir.
- Como foi o atropelamento? Morreu na hora?

Está tomada por uma curiosidade irresistível.

- Parece que sim.
- Menos mal.
- Uma morte bem estúpida.
- Por que ele nunca gostou de mim?
- Não sei.
- Nem desconfia?
- Talvez porque ele nunca me amou. Parece que os homens não gostam dos filhos quando eles não amam as mães dessas crianças.
- Por que casou com ele?
- Eu era muito nova e gostava dele.
- E ele? Por que quis casar com você?
- Acho que por causa da minha beleza. Eu era muito bonita... Alguns homens gostam do status de casar com uma mulher bonita.
- Você ainda é bonita.
- Obrigada.

Helena parece incomodada com o comentário da filha.

- Por que você não se casou de novo?
- Eu não quis. Nem todo mundo precisa de alguém do lado.

"Me pareço com ela. Que estranho."

- Mas tenho boas lembranças... Uma vez, numa viagem de trem na Europa, um homem me beijou na boca.

"Por que ela está me contando isso?" Porque Helena tem uma vida marcada pela rigidez. Ela é uma mulher dura, mas quer que a filha a ame sem medo.

- E então?
- E então, nada, foi só isso. Eu estava fumando um cigarro no corredor, de penhoar, e aconteceu. Ele era jovem, um tipo aventureiro.
- Que história bonita!
- Tem mais cerveja?

Ana pegou a outra garrafa na geladeira e retornou à sala.

- Não posso demorar.

Silêncio.

- Você tem visto o rapaz da Faculdade?
- O Jaime?
- É o nome dele?
- Nunca mais o vi.
- Você tem outro namorado?
- Não.
- Sabe, Ana, eu queria que você me entendesse... você é a minha única filha e eu te amo muito.

"Não, eu não quero ouvir".

- Bom, deixa pra lá, não sou boa para emotividades excessivas.

"Me pareço muito com ela."

- Me pareço muito com você.
- Eu sei.
- É uma pena que eu não tenha sido uma boa filha.
- Você é uma boa filha.
- Nunca fiz nada para te agradar.
- Mas me deu orgulho, por ser determinada. Você está precisando de dinheiro?
- Não. Eu vivo de forma simples.
- Eu queria que você fosse à Europa. 
- Não tenho dinheiro para isso. 
- Tem sim. Nós temos.

Silêncio.

- Você me promete que vai viajar quando terminar o curso?
- Depende da  minha pós-graduação.
- Por que você não faz na França ou na Inglaterra?

Ana está rindo. Algum dia ela chegou a sonhar com isso, mas seus sonhos se perderam. Viver em Londres era, quando tinha quinze anos, um ideal. Nesta época, costumava jogar na Loto. Todo concurso sorteado, ela tinha certeza de que seriam os seus, os números da sorte. Então, se imaginava pelas ruas londrinas, frequentando pubs. Leria Oscar Wilde nas praças e conheceria o Boy George.

"Por que ela não me ofereceu isso antes? Como deixou que a desilusão de não ganhar na Loto me fizesse nunca mais jogar? Ou querer ganhar alguma coisa. Esqueci Londres, li Oscar Wilde nas bibliotecas e Boy George virou um Hare Krishna gordo."

- As coisas não são tão fáceis assim.
- Você que sabe. Dinheiro não é problema.

"Tem sido a minha vida inteira."

- Obrigada. Quando chegar a hora, eu te aviso.

"Nem sei se vou me formar... Com essa mentirada de dor na coluna, a coisa ficou feia. E se eu perder a bolsa?"

- Eu receio não me formar.
- Por quê?
- Talvez eu perca a bolsa.
- Não se preocupe, a gente dá um jeito.
- Como?
- Tudo tem um jeito. É bom pensar assim.

Foi bom ouvir isso. Ana está feliz. É estranho que a morte de seu pai lhe trouxesse a sua mãe. De certa forma, também ameniza tudo. É que, quando as pessoas morrem, de alguma maneira, tornam-se puras. A morte limpa as coisas. É isso. Ana poderá lembrar-se de que teve um pai, e que ele morreu. "E seu pai?" E ela responderá: "Ele morreu."




(Vergonha dos Pés)



(Ilustração: Cézanne - father)



Nenhum comentário:

Postar um comentário