Ora, o caso era deveras apertado! Quem teria a coragem de ir, à última hora substituir La Rose no púlpito da capela real, num dos sermões mais importantes da quaresma?...
E era preciso que ele com efeito estivesse deveras doente, para faltar ao sermão de quinta-feira santa, porque La Rose prezava muito aos seus triunfos na tribuna sacra, e não esperdiçaria facilmente uma boa ocasião de orar perante o rei e toda sua corte de fidalgos e toda a sua corte de letrados.
É inútil dizer que, por melhores esforços empregados, nenhum pregador se descobriu, bom ou mau, que quisesse ir tomar o lugar do querido mestre.
Empregaram-se os últimos recursos para descobrir alguém que, sem grande escândalo, fosse capaz de improvisar um sermão digno da real ressaca; ofereceram-se bonitas somas, fizeram-se as mais lindas promessas. O cabido inteiro agitou-se, remexeu-se, sorveu consecutivas pitadas, esfregou mil vezes o lenço encarnado no nariz, mas ninguém teve coragem para aceitar a espinhosa missão.
O arcebispo, já desesperado, ia estender o braço para tomar ao acaso o primeiro dos seus sufragâneos, e ordenar-lhe que subisse ao púlpito e despejasse - com um milhão de raios! - um sermão qualquer, quando de improviso rasgou-se o reposteiro da sala, em que ele se achava entre uma negra nuvem de batinas, e viu-se surgir a veneranda figura de frei Ozéas, com as suas grandes barbas brancas e a sua enorme calva de profeta.
Encaminhou-se diretamente para o arcebispo e disse-lhe, depois das reverencias do estilo:
- Comprometo-me, se mo permitirem, a apresentar hoje no púlpito da capela real alguém que irá dignamente substituir o padre La Rose.
Fez-se em torno destas simples palavras um profundo silêncio de pasmo e de desabafo.
Frei Ozéas era um homem singularíssimo, como mais adiante apreciará o leitor. Havia vinte e tantos anos que em torno dele se formara de dia para dia a mais sólida reputação de virtude e santidade.
De quem disporia o singular frade para fazer substituir La Rose?...
E começou logo o sussurro dos comentários.
O arcebispo, entretanto, tomara-o avidamente pelo braço, e desaparecera com ele pela porta que conduzia ao interior do palácio.
Pouco depois, descia frei Ozéas as escadas do paço, metia-se no carro que o esperava à entrada do jardim, dizia ao cocheiro que tocasse depressa para o convento de S. Francisco de Paulo, e daí a meia hora, atravessava o longo pátio ladrilhado de pedra e subia a pesada escada do claustro, em que ele se havia condenado a viver para sempre em dura penitência.
A porta abriu-se sem ruído. Ele entrou e a porta fechou-se de novo, silenciosamente.
O lugar em que o venerando religioso acabava de penetrar era uma triste cela, sombria e espaçosa, com uma janela gradeada e fechada, e apenas frouxamente esclarecida por uma claraboia do teto. As paredes, nuas de alto a baixo, tinham uma cor sinistra de osso velho. Em uma delas havia um grande nicho com a imagem da Virgem da Conceição, quase de tamanho natural; a um dos cantos, uma negra estante toscamente feita, pejada de grossos alfarrábios amarelecidos pelo tempo; no centro, uma mesa de madeira escura com um breviário em cima, ao lado de uma candeia de azeite, um pedaço de pão duro e um cilício cru; junto à mesa, um banco de pau.
O mancebo beijou-lhe a mão. Ozéas abraçou-o e disse-lhe depois, tocando-lhe carinhosamente no ombro:
- Para pregar o sermão de quinta-feira santa.
- Bem, meu pai.
- Reza a Nossa Senhora enquanto me esperas. Adeus.
- Sua benção, meu pai.
- Deus te abençoe.
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