quarta-feira, 12 de outubro de 2011
O QUE DEFINE UM MEME, de James Gleick
“Aquilo que jaz no coração de todas as coisas vivas não é uma chama, nem um hálito quente, nem uma ‘faísca de vida’, e sim a informação, palavras, instruções”, declarou Richard Dawkins em 1986. Já consagrado como um dos maiores biólogos da evolução, ele tinha capturado o espírito de uma nova era. As células de um organismo são nódulos numa rede de comunicações, sempre transmitindo e recebendo, codificando e decodificando. A própria evolução é a encarnação de uma troca contínua de informações entre organismo e meio ambiente. “Se quiser compreender a vida”, escreveu Dawkins, “não pense nas gosmas e melecas pulsantes e fluidas, e sim na tecnologia da informação”.
A ascensão da teoria da informação foi facilitadora e cúmplice de uma nova forma de enxergar a vida. O código genético – não mais uma simples metáfora – estava sendo decifrado. Os cientistas falavam com grandiosidade numa biosfera: uma entidade composta por todas as formas de vida da Terra, transbordando de informação, replicando-se e evoluindo.
Jacques Monod, biólogo parisiense que dividiu um Prêmio Nobel em 1965 – por desvendar o papel desempenhado pelo RNA mensageiro na transmissão das informações genéticas –, propôs uma analogia: assim como a biosfera paira sobre o mundo da matéria não viva, um “reino abstrato” paira sobre a biosfera. Os súditos deste reino? As ideias.
“As ideias retiveram algumas das propriedades dos organismos”, escreveu. “Como eles, as ideias tendem a perpetuar sua estrutura e a se reproduzir; elas também podem se fundir, se recombinar, segregar seu conteúdo; de fato, também elas podem evoluir e, nesta evolução, a seleção sem dúvida desempenha um papel importante.”
As ideias têm um “poder de contágio”, destacou – “poderíamos chamá-lo de capacidade de infecção” –, e nisso algumas são mais fortes do que outras. O neurofisiologista americano Roger Sperry tinha apresentado uma ideia parecida anos antes, defendendo que as ideias seriam “tão reais” quanto os neurônios que elas habitam: “Ideias interagem entre si e com outras forças mentais no cérebro, em cérebros vizinhos e, graças à comunicação global, em cérebros à distância. E elas também interagem com o meio externo que as cerca para produzir ao todo um rápido e imediato surto evolutivo que supera qualquer coisa que já tenha chegado à cena evolucionária.” E acrescentava: “Não me arrisco a propor uma teoria da seleção das ideias”. Não precisava. Outros o fariam.
Dawkins deu seu próprio salto da evolução dos genes para a evolução das ideias. Para ele, o papel de protagonista cabe ao replicador, e isso não tem nada a ver com química. “Um novo tipo de replicador surgiu recentemente neste mesmo planeta”, proclamou Dawkins em seu primeiro livro, O Gene Egoísta, em 1976. “Ele está nos encarando. Ainda em sua infância, vagando desajeitado em seu caldo primordial, mas já está atingindo um ritmo de mudanças evolucionárias que deixa o velho gene para trás.” Esse “caldo” é a cultura humana; o vetor de transmissão é a linguagem, e o ambiente de reprodução é o cérebro.
Dawkins propôs um nome para este replicador etéreo: o “meme”, a mais memorável de suas invenções. “Os memes propagam a si mesmos no pool dos memes ao saltarem de cérebro para cérebro por meio de um processo que, num sentido amplo, pode ser chamado de imitação”, escreveu. Eles concorrem uns com os outros pelos recursos limitados: tempo de atividade cerebral ou largura de banda. Disputam principalmente a atenção, sejam ideia, canções, frases de efeito ou imagens.
Durante a maior parte de nossa história biológica os memes existiram brevemente; sua principal forma de transmissão era a que chamamos de “boca a boca”. Depois, eles conseguiram aderir a substâncias sólidas: placas de argila, paredes nas cavernas, folhas de papel. Eles alcançam a longevidade por nossas canetas, rotativas, fitas e discos, torres de transmissão, redes digitais. São histórias e habilidades, lendas e modas. Os copiamos, uma pessoa de cada vez. Ou, na perspectiva memecêntrica de Dawkins, eles copiam a si mesmos. E os interesses dos memes não coincidem com os nossos.
“Um meme”, diz o filósofo Daniel Dennett, “é um pacote de informação com atitude”. A rima e o ritmo ajudam as pessoas a se lembrar de trechos de um texto. Ou: a rima e o ritmo ajudam trechos de um texto a serem lembrados. Rima e ritmo são qualidades que facilitam a sobrevivência de um meme, assim como força e velocidade facilitam a de um animal. A linguagem padronizada traz em si uma vantagem evolutiva. Rima, ritmo e sentido – pois o sentido também é padronização. A linguagem serviu como o primeiro catalisador da cultura. Ela substitui a imitação, transmitindo conhecimento por meio da abstração e da codificação.
Talvez a analogia com a doença fosse inevitável. Antes que alguém compreendesse minimamente a epidemiologia, sua linguagem foi aplicada a espécies de informação. Uma emoção pode ser infecciosa, uma música pode ser transmissível, um hábito pode ser contagioso. De acordo com o poeta John Milton, o mesmo se aplica à luxúria: “Eva, que bem o entende, está vibrando / Dos meigos olhos contagioso lume”. Mas foi somente no novo milênio, na era da transmissão global eletrônica, que a identificação se tornou natural. Nossa era é marcada pela viralidade: educação viral, marketing viral, e-mail viral, vídeos e redes virais. Os pesquisadores que estudam a própria internet enquanto suporte – crowdsourcing, atenção coletiva, redes sociais e alocação de recursos – empregam não apenas a linguagem como também os princípios matemáticos da epidemiologia.
Um dos primeiros a usar o termo “texto viral” parece ter sido um leitor de Dawkins chamado Stephen Walton, de Nova York, em correspondência com o cientista cognitivo Douglas Hofstadter. Pensando logicamente – como um computador – Walton propôs sentenças simples e autorreplicantes nos moldes de “Fale-me!”, “Copie-me!” e “Se me copiar, eu lhe concederei três desejos!”. Hofstadter, então colunista da Scientific American, considerou o próprio termo “texto viral” ainda mais sedutor: “Ora, como podemos ver diante de nossos olhos, o próprio texto viral de Walton foi capaz de comandar os recursos de um hospedeiro bastante poderoso – toda uma revista com suas rotativas e sistema de distribuição. Ele embarcou num salto e agora – mesmo enquanto você lê este texto viral – está se propagando loucamente pela ideiasfera!”
Hofstadter declarou-se alegremente infectado pelo meme do meme.
Uma fonte de resistência – ou de inquietação – foi o fato de nós, seres humanos, ficarmos em segundo plano. Já era ruim o bastante dizer que uma pessoa era simplesmente o veículo por meio do qual um gene produz mais genes. Dennett pergunta: “De acordo com essa visão, quem está no comando: nós ou os nossos memes?” Ele respondeu sua própria pergunta ao nos lembrar que, quer gostemos ou não, raramente estamos “no comando” de nossas próprias mentes. Dennett poderia ter citado Freud; em vez disso, citou Mozart (ou ao menos pensou tê-lo feito): “À noite, quando não consigo dormir, os pensamentos me invadem a mente… Como e de onde eles vêm? Não sei, e nada tenho a ver com isto”. Dennett foi posteriormente informado que esta conhecida citação não era de Mozart, afinal. Ela tinha ganhado vida própria; era um meme bem-sucedido.
E assim a paisagem foi se transformando mais rapidamente do que Dawkins poderia imaginar em 1976, quando escreveu: “Os computadores nos quais os memes vivem são os cérebros humanos”. Em 1989, época da segunda edição de O Gene Egoísta, depois de ter se tornado ele próprio um programador experiente, Dawkins teve de acrescentar que: “Era obviamente previsível que também os computadores eletrônicos fabricados se tornariam finalmente hospedeiros de padrões autorreplicantes de informação”. A informação estava passando de um computador ao outro “quando seus proprietários trocam disquetes uns com os outros”, e ele já enxergava outro fenômeno despontando no horizonte próximo: computadores ligados a redes.
“Muitos deles”, escreveu Dawkins, “são literalmente entrelaçados uns aos outros em trocas eletrônicas de correspondência. (…)Trata-se de um meio perfeito para o florescimento de programas autorreplicantes”. De fato, a internet estava sentindo as dores do seu próprio parto. Além de proporcionar aos memes um suporte cultural rico em nutrientes, ela também deu asas à ideia dos memes.
Em sua coluna publicada em 1983, Hofstadter propôs o óbvio rótulo memético para uma disciplina como essa: a memética. O estudo dos memes atraiu pesquisadores de campos tão distantes quanto a ciência da computação e a microbiologia. Na bioinformática, as correntes de correspondência são um objeto de estudo. Elas são memes; têm históricos evolutivos.
O próprio propósito das correntes de cartas é a replicação; independentemente do texto das correntes de cartas, elas encarnam uma mensagem: Copie-me. Um estudante da evolução das correntes de cartas, Daniel W. VanArsdale, listou muitas variantes, tanto nas correntes de cartas quanto em textos anteriores: “Faça sete cópias da carta exatamente como ela foi escrita” (1902); “Copie integralmente e envie para nove amigos” (1923); “E, se alguém tirar quaisquer palavras do livro desta profecia, Deus tirará a sua parte do livro da vida, e da cidade santa, e das coisas que estão escritas neste livro” (Apocalipse 22:19).
As correntes de correspondência prosperaram com a ajuda de uma nova tecnologia do século 19: o papel carbono, ensanduichado entre as folhas de um bloco de papel. Então o papel carbono estabeleceu uma parceria simbiótica com outra tecnologia, a máquina de escrever. Epidemias virais de correntes de correspondência ocorreram ao longo do início do século 20. Duas tecnologias subsequentes, quando seu uso se tornou generalizado, trouxeram benefícios que ampliaram em ordens de magnitude a fecundidade da corrente de correspondência: as fotocópias (em 1950) e o e-mail (em 1995).
Inspirados por uma conversa casual durante uma caminhada pelas montanhas de Hong Kong, os cientistas da informação Charles H. Bennett, da IBM de Nova York, Ming Li e Bin Ma, de Ontário, Canadá, começaram a analisar um conjunto de correntes de correspondência reunido durante a era da fotocopiadora. Eles tinham 33 cartas, todas elas variantes de uma mesma carta original, com mutações sob a forma de erros de ortografia, omissões e palavras e frases transpostas. “Essas cartas passaram de hospedeiro para hospedeiro, sofrendo mutações e evoluindo”, relataram em 2003.
“Como um gene, seu comprimento médio é de aproximadamente 2 mil caracteres. Como um potente vírus, a carta ameaça matar o destinatário e o induz a repassá-la aos seus ‘amigos e parceiros’ – alguma variante desta carta deve provavelmente ter chegado a milhões de pessoas. Como uma característica herdada, ela promete benefícios ao destinatário e às pessoas às quais ela for repassada. Como os genomas, as correntes de correspondência sofrem seleção natural e às vezes partes delas chegam a ser transferidas entre ‘espécies’ coexistentes.”
Ainda assim, a maioria dos elementos culturais muda com demasiada facilidade para que possam ser classificados como replicadores estáveis. O próprio Dawkins enfatizou que jamais imaginara fundar algo parecido com uma nova ciência memética. Uma publicação chamada Journal of Memetics ganhou vida em 1997 – online, naturalmente – e então desapareceu gradualmente após oito anos parcialmente gastos num debate autocentrado envolvendo questões de status, missão e terminologia. Mesmo quando comparados aos genes, os memes são difíceis de compreender matematicamente e até de serem definidos com precisão. Assim, se a analogia entre genes e memes provoca inquietação, e a entre genética e memética inquieta ainda mais.
Genes, contam ao menos com um alicerce numa substância física. Memes são abstratos, intangíveis e imensuráveis. Se replicam com fidelidade quase perfeita, e a evolução depende disto: algum grau de variação é essencial, mas as mutações precisam ser raras. Os memes raramente são copiados com exatidão; suas fronteiras são sempre pouco claras, e eles sofrem mutações com uma flexibilidade livre que seria fatal na biologia. O termo meme poderia ser aplicado a uma suspeita cornucópia de entidades, grandes e pequenas. Para Dennett, as primeiras quatro notas da Quinta Sinfonia de Beethoven foram “claramente” um meme, bem como a Odisseia, de Homero (ou ao menos a ideia da Odisseia), a roda, o antissemitismo e a escrita. “Os memes ainda não encontraram sua dupla Watson e Crick”, disse Dawkins; “não tiveram nem mesmo o seu Mendel”. (Watson e Crick descreveram a dupla-hélice do DNA. E Mendel, o das ervilhas, é o fundador dos estudos da genética.)
Ainda assim, aqui estão eles. Conforme o arco do fluxo da informação se curva na direção de uma conectividade cada vez maior, os memes evoluem mais rápido e chegam mais longe. Sua presença é sentida, ainda que não seja vista, no comportamento coletivo, corridas aos bancos, cascatas de informação e bolhas financeiras. Alguns memes falsos se disseminam com falsa assistência, como a aparentemente indestrutível ideia de que Barack Obama não nasceu no Havaí. E, no ciberespaço, cada nova rede social se torna uma incubadora de memes. Quem desempenhou este papel no Facebook durante meados de 2010 e o segundo semestre daquele ano foi um clássico de roupagem nova:
“Às vezes tenho vontade de simplesmente copiar o status de outra pessoa, palavra por palavra, e ver se ela percebe.”
Então a frase sofreu outra mutação e, em janeiro de 2011, o Twitter viu uma epidemia de: “Um dia quero copiar o tweet de outra pessoa palavra por palavra e ver se ela percebe.”
Naquela época um dos hashtags mais populares do Twitter (o “hashtag” consiste numa espécie de marcador genético – ou melhor, memético) era simplesmente a palavra #Viral. Na concorrência pelo espaço nos nossos cérebros e na cultura, os combatentes eficazes são as mensagens. A visão dos genes e memes – nova, oblíqua, em looping – nos enriqueceu. Ela nos dá paradoxos que podem ser escritos sobre fitas de Möbius. “O mundo humano é feito de histórias, e não de pessoas”, escreve o romancista David Mitchell. “As pessoas que as histórias usam para contar a si mesmas não devem ser responsabilizadas.” Margaret Atwood escreve: “Assim como ocorre com todo tipo de conhecimento, depois que o conhecemos, não somos mais capazes de imaginar como foi possível não tê-lo conhecido antes. Como a magia praticada nos palcos, o conhecimento antes de ser apreendido pela pessoa ocorria diante de seus próprios olhos, mas a pessoa tinha o olhar voltado para outra coisa”. Perto da morte, John Updike refletiu a respeito de “uma vida vertida em palavras – aparente desperdício dedicado a preservar aquilo que foi consumido”.
Fred Dretske, filósofo da mente e do conhecimento, escreveu em 1981: “No princípio havia a informação. O verbo veio depois”. E acrescentou a explicação: “A transição foi obtida por meio do desenvolvimento de organismos com a capacidade de explorar seletivamente essa informação para sobreviver e perpetuar a espécie”. Agora poderíamos acrescentar, graças a Dawkins, que a transição foi possibilitada pela informação, perpetuando sua espécie e explorando seletivamente os organismos.
A maior parte da biosfera não enxerga a infosfera; ela é invisível, um universo paralelo zumbindo com habitantes etéreos. Mas esses não são etéreos para nós – não mais. Nós, humanos, sozinhos entre as criaturas orgânicas, vivemos em ambos os mundos simultaneamente. É como se, depois de coexistir durante muito tempo com o invisível, tenhamos começado a desenvolver a percepção extrassensorial necessária. Temos consciência das muitas espécies de informação. Nomeamos seus tipos sardonicamente, como se quiséssemos nos assegurar de que compreendemos: mitos urbanos e mentiras zumbis. Nós os mantemos vivos em torres de servidores com ar-condicionado. Mas não podemos ser os donos deles. Quando um jingle gruda no nosso ouvido, ou uma nova tendência vira a moda de cabeça para baixo, ou uma farsa domina a conversa mundial durante meses e desaparece tão rapidamente quanto surgiu, quem é o mestre e quem é o escravo?
(Revista Smithsonian / OESP 1.8.2011; tradução de Augusto Calil)
(Ilustração: Giger – flikr)
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