sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
BRUTALIDADE, de Manuel Puig
- Que susto você me deu!
- Estou tão mudado?
- É outra pessoa, Pozzi.
- Melhor ou pior?
- Não gosto de como você ficou.
- Posso dar-lhe um beijo, sem bigode?
- E o cabelo, por que tão curto?
- Vou para Buenos Aires.
- Não acredito.
- Sim. Vôo ao Chile, de daí entro por Mendoza, de trem.
- E não quer que o reconheçam?
- Estão me fazendo papéis novos. Vou-me chamar Ramírez, o que é que você acha?
- O bandido de La fanciulla del West se chama Ramírez, mas é o galã.
- E u não sou o galã?
- ...
- Não o matam no final?
- Se salva, estão para enforcá-lo e a garota o resgata no final. A soprano.
- Como está-se sentindo?
- Tenho dores, todos os dias, logo depois de comer. Parece que vão durar por um tempo, é uma consequência da operação.
- Peça que lhe deem calmantes.
- Tenho que insistir muito, eles são contrários a muito calmante.
- Tem que se aguentar um pouco, então.
- A verdade é que nunca imaginei que esse negócio ia demorar tanto.
- Se você se tornar impaciente, vai ser pior.
- No espelho, vejo-me com mau aspecto, mas não sei se é impressão. Como estou?
- Um pouco de olheiras, mas deve ser por estão tão fechada.
- É uma loucura que se vá, Pozzi.
- Não tem sentido ficar.
- Estava certa de que a estas horas já havia assinado o contrato com a Universidade.
- Não, aqui estou intranquilo.
- Muito pior é que esteja correndo perigo. É uma loucura essa ida.
- Não há por que exagerar, Anita. Os papéis são uma precaução, para a entrada, nada mais.
- E depois?
- Lá temos gente que sabe quem está vigiado, e se há necessidade de esconder-se.
- Se tem que se esconder, de que adianta ir?
- É que posso continuar com o trabalho... da defesa de presos. Não há necessidade de que me apresente nos Tribunais, posso fazer toda a outra parte do trabalho, que é muito pesada, os documentos por exemplo. E outro advogado apresenta como dele. Isso é tudo, não vou me meter nesse negócio de guerrilha, você sabe que não estou nisso.
- O que não me agrada é que já esteja fichado, se revistaram a sua casa por alguma coisa.
- Revistaram de meio mundo, isso não significa nada.
- Acha?
- Claro, à distância as coisas parecem piores.
- Admiro o seu valor. Eu não iria.
- Como se sentiu... depois da história do outro dia?
- Não sei.
- Como não sabe...
- ...
- Eu me senti muito bem.
- Eu não. Me fez mal, verdade seja dita.
- Não pode fazer mal...
- ...
- Não tire a minha mão... Tenho vontade de tocá-la.
- Não, Pozzi.
- Você gostava do bigode.
- Falando sério, não me sinto bem.
- Como queira.
- Escuta uma coisa. Se eu tivesse aceitado sua proposta, de chamar o Alejandro, não era um modo de pôr em perigo a minha família? A Clarinha e a mamãe.
- Não creio.
- Eu sim creio. À mamãe pelo menos teriam interrogado. E não se esqueça de que nós já temos o antecedente do que nos fez Alejandro. Não sei como terá ficado registrado na polícia.
- Não, não creio que se metam com uma mulher idosa e uma criança.
- Você não acredita, e isso seria suficiente para que eu ficasse tranquila!
- É senso comum, nada mais, o que podem tirar de uma sua mãe ou de Clarinha? É óbvio que são inofensivas para o regime.
- Mas podem pensar que eu sim estou metida em alguma coisa.
- Eles sabem bem quem atua e quem não. E você, neste caso, só faria chamar pelo telefone a alguém que em outra época foi amigo, e de certo modo protetor.
- Não estou convencida.
- ...
- Quando você iria?
- Amanhã.
- Não vá, por favor.
- Você tem a mão linda, fresca.
- Seria melhor ficar aqui, Pozzito. De fato, poderia continuar estudando, tem muita cabeça, poderia pesquisar o que lhe interessa, sociologia, tudo isso.
- Mas o problema de lá é mais urgente.
- Eu estava me iludindo que ia ficar. Aqui ia mudar...
- Por que você quer que eu mude?
- Tem futuro, eu creio. Se ficasse mais tempo, veria as coisas de lá com outra perspectiva, e lhe mudariam as ideias.
- Eu não quero que me mudem as ideias, o que você está dizendo?
- Não, não quero ofendê-lo, tem muitas coisas boas, que eu respeito, de verdade, mas essa coisa do peronismo... Se você ficar aqui, talvez passe...
- Você está louca.
- E se se converter numa autoridade, em sua matéria, poderia voltar lá dentro de uns anos, e ser útil de outro modo.
- Sua colocação é totalmente irreal. O país necessita de mim agora , e sei que posso ser útil agora. E não estou lhe falando vagamente, são coisas concretas as que tenho que resolver lá. Gente que está presa, gente que está desaparecida, preciso ajudar a encontrá-los, a tirá-los da cadeia.
- Mas se assaltaram bancos, ou sequestraram alguém, como vai poder tirá-los da cadeia? Não são delinquentes comuns?
- Eu falo de casos muito diferente. Jornalistas, professores, gente que pensa e não se cala, e que por isso estão presos. E essa é a gente que me espera, porque à força de reclamações alguma coisa se consegue, já conseguimos tirar alguns desse inferno.
- Sim, tem razão, sempre respeitei isso em você, mas...
- Sinto que essa é minha responsabilidade, Anita. Não posso fazer-me de desentendido.
- Mas é que pode haver outra pessoa que faça esse trabalho. Que não esteja na lista negra, como você.
- Não há outra pessoa, somos muito poucos os que podem fazer esse trabalho.
- Eu tenho medo de que esteja exagerando. Tem demasiado espírito de sacrifício, não o negue. Desde sempre. Não tinha necessidade de trabalhar enquanto estudava, mas meteu na cabeça que tinha que trabalhar, e quem é que consegue pará-lo quando mete uma ideia na cabeça.
- Eu sou assim, Ana. Minha sensação foi sempre essa, de que tinha de sobra, e podia dar algo aos que têm menos.
- Você é assim, mas por acaso não podia mudar?
- Eu já lhe disse que não quero mudar.
- Claro, gosta demasiado do seu personagem, do sacrificado, do mártir.
- Para mim não é sacrifício, é senso da justiça, nada mais.
- Se ficasse aqui poderia ser útil no futuro, morto não lhes vai servir para nada, será possível que seja impermeável a tudo que lhe digam? não pode escutar os outros uma vez sequer?
- Você por acaso escuta? Afirmei que o caso de Alejandro seria fácil, sem riscos, e você faria um grande serviço para o seu país.
- Se eu chamasse o Alejandro , você ficaria?
- Sim, claro...
- ...
- Anita, seria formidável.
- ...
- Podemos chamá-lo amanhã mesmo, depois que eu falar com Buenos Aires.
- Não, Pozzi. É por Clarinha e por mamãe que não posso fazê-lo.
- Você está louca, nunca se meteriam com uma criança e uma mulher.
- Não? acaso não lhes serviria para extorquir-me? e fazer-me falar!
- Não seriam capazes.
- Como não seriam capazes! Você sabe a gentinha que há nesse governo, os criminosos infiltrados aí dentro. E assim mesmo insiste, Pozzi. Está agindo de má fé comigo.
- É por seu medo, nada mais. É por você mesma que não o faz.
- Bem, é por mim. Me dá medo. Além do mais, se alguma vez quisesse voltar a Buenos Aires, já não poderia.
- Anita, terminemos com as mentiras.
- Que mentiras?
- Escute-me, isto é demasiado sério, há vidas que dependem do que a gente resolver, vidas valiosas, em verdade lhe digo.
- Minha vida é importante. E a sua também.
- Minha vida é menos importante, Ana, que a desses dois homens que queremos tirar do país.
- Chega com essa história de sacrifícios. Já é mania.
- Nada disso, Ana. Essa é minha verdade, não importa o que aconteça comigo, se é por algo que vale a pena.
- E minha verdade? Quer que eu também me una ao sacrifício?
- Seria uma maneira de fazer o bem, enquanto pudesse.
- Por que enquanto pudesse?
- Chega de mentiras, Anita, por favor. Você sabe a que me refiro.
- Quê? Você acha que eu vou morrer?
- Você sabe melhor do que eu.
- Eu não se nada. Eu quero me curar, isso é a única coisa que sei.
- Você sabe que não a operaram. Abriram e tornaram a fechar, porque nessas condições não podia fazer nada.
- Não é verdade!
- Não estamos brincando, Ana. Não somos adolescentes. Estes podem ser os últimos dias que nos restam para viver, não podemos deixar de enfrentar a realidade. Se estamos em tempo de fazer algo positivo... temos de fazê-lo!
- Não acreditava que fosse capaz de dizer uma coisa assim...
- Mas é hora de falar sério, Anita. Por mais que lhe diga mentira, não vou devolver-lhe a saúde.
- Você quer dizer que não tenho cura.
- A probabilidade de salvá-la é mínima. Estavam tentando deixá-la em condições para outra operação, porque o humor está no estômago, mas também numa parte do pulmão, já está ramificado.
- ...
- Mas na última consulta saíram indecisos, acham que é inútil tornar a operar.
- Para operar-me precisavam de meu consentimento. E a mim não mencionaram nada.
- Eles falaram com sua amiga, com Beatriz. E ela falou com sua mãe.
- Mamãe sabe?
- Sim, e a autorizou. E deu a garantia dos pagamentos.
- Por que me diz tudo isso? É tudo mentira sua.
- É terrível, Anita, mas é assim, não podemos mudar as coisas.
- Mas eu não sabia...
- É verdade que não sabia?
- Não.
- Mas você não percebia que estava perdendo peso, e que a dores aumentam cada vez mais?
- Eu não percebia.
- E acaso você não prefere sabê-lo?
- Não, Pozzi.
- Mas assim você pode decidir, escolher, não sei como dizer...
- Decidir o quê?
- O que você vai fazer com seus últimos dias. Em uns dias você pode fazer o que não quis fazer em toda a sua vida.
- Eu não gosto do que está dizendo, Pozzi.
- Eu, desde que soube, sinto uma imensa tristeza, Ana. Você é parte de mim, a parte do prazer, não sei como explicar-lhe, do luxo. Você era meu luxo, Anita. Mas não está em mim mudar as coisas. A única coisa que posso fazer é pedir-lhe que aceite a realidade, e que você faça o melhor que puder com o que lhe reste de vida. E oxalá suceda um milagre, e tudo se ajeite. Mas...
- E se o ajudasse no negócio do Alejandro...
- Diga-me...
- ...
- Eu a escuto...
- Se o ajudo, minha morte vai ter um sentido...
- Não fale assim. Não sei, soa tudo muito mal, mas me parece que á sua vida... que... bem, não gosto de dizê-lo. São coisas tão... importantes, me dá medo manuseá-las.
- Sim, compreendo o que você quer dizer.
- ...
- Que brutalidade, Pozzi.
-...
- Que brutalidade a sua.
- Não me leve a mal.
- Você se sente muito homem sendo capaz de dizer semelhante brutalidade.
- Você não me entende...
- Somente um homem pode ser capaz de tal brutalidade.
- ...
- Uma mulher não seria capaz.
- Vê, você continua dizendo mentiras, enganando a si mesma. você não tem o direito de dizer isso, porque você despreza as mulheres.
- Não é verdade.
- Nem da sua filha você gosta, nem da sua mãe. Pela mesma razão.
- Não é verdade, eu gosto delas. São a única coisa que tenho.
- Vê que não pode admitir que nada seja certo? Elas não estão aqui porque você não as quer, não gosta delas, as despreza, porque são mulheres. Eu as conheço bem.
- Não quero mais ver você, em toda a minha vida.
- ...
- Ainda que me restem horas, o que seja, por favor, que eu não tenha mais que vê-lo.
- Eu não quero lhe fazer mal. Juro.
- ...
- Creio que é melhor que você saiba a verdade.
- Obrigada, Pozzi.
- Depois que pensar a respeito, é possível que você compreenda minha intenção.
- Sua intenção é boa, obrigada.
- ...
- Preferiria ficar só, se não se incomoda.
- Sim, claro. Você vai ver que pensando...
- Nenhuma palavra mais, eu lhe peço.
- Amanhã eu lhe procuro.
- Não, por favor, nunca mais quero saber de você.
- Eu gosto muito de você, Anita.
- ...
- Até amanhã.
- ...
(Púbis Angelical, tradução de José Sanz)
(Ilustração: Deborah Poynton)
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