domingo, 30 de maio de 2010

SOLILÓQUIO DE ORFEU, de Vinícius de Moraes








Orfeu:



Ai, que agonia que você me deu


Meu amor! que impressão, que pesadelo!


Como se eu te estivesse vendo morta


Longe como uma morta...



Eurídice:




Morta eu estou.


Morta de amor, eu estou; morta e enterrada


Com cruz por cima e tudo!



Orfeu (sorrindo):




Namorada!


Vai bem depressa. Deus te leve. Aqui


Ficam os meus restos a esperar por ti


Que dás vida!



(Eurídice atira-lhe um beijo e sai).



Mulher mais adorada!


Agora que não estás, deixa que rompa


O meu peito em soluços! Te enrustiste


Em minha vida; e cada hora que passa


E' mais por que te amar, a hora derrama


O seu óleo de amor, em mim, amada...


E sabes de uma coisa? cada vez


Que o sofrimento vem, essa saudade


De estar perto, se longe, ou estar mais perto


Se perto, - que é que eu sei! essa agonia


De viver fraco, o peito extravasado


O mel correndo; essa incapacidade


De me sentir mais eu, Orfeu; tudo isso


Que é bem capaz de confundir o espírito


De um homem - nada disso tem importância


Quando tu chegas com essa charla antiga


Esse contentamento, essa harmonia


Esse corpo! e me dizes essas coisas


Que me dão essa força, essa coragem


Esse orgulho de rei. Ah, minha Eurídice


Meu verso, meu silêncio, minha música!


Nunca fujas de mim! sem ti sou nada


Sou coisa sem razão, jogada, sou


Pedra rolada. Orfeu menos Eurídice...


Coisa incompreensível! A existência


Sem ti é como olhar para um relógio


Só com o ponteiro dos minutos. Tu


És a hora, és o que dá sentido


E direção ao tempo, minha amiga


Mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada!


A beleza da vida és tu, amada


Milhões amada! Ah! criatura! quem


Poderia pensar que Orfeu: Orfeu


Cujo violão é a vida da cidade


E cuja fala, como o vento à flor


Despetala as mulheres - que ele, Orfeu


Ficasse assim rendido aos teus encantos!


Mulata, pele escura, dente branco


Vai teu caminho que eu vou te seguindo


No pensamento e aqui me deixo rente


Quando voltares, pela lua cheia


Para os braços sem fim do teu amigo!


Vai tua vida, pássaro contente


Vai tua vida que eu estarei contigo!


(Orfeu da Conceição)


(Ilustração: Rubens - Orfeu e Eurídice)


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