sexta-feira, 25 de outubro de 2024

HÁ-DE FLUTUAR UMA CIDADE, de Al Berto (Alberto Raposo Pidwell Tavares)

 


há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida

pensava eu... como seriam felizes as mulheres

à beira mar debruçadas para a luz caiada

remendando o pano das velas espiando o mar

e a longitude do amor embarcado

 

por vezes

uma gaivota pousava nas águas

outras era o sol que cegava

e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite

os dias lentíssimos... sem ninguém

 

e nunca me disseram o nome daquele oceano

esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas

punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua

assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar

se espantasse com a minha solidão

 

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

 

um dia houve

que nunca mais avistei cidades crepusculares

e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta

inclino-me de novo para o pano deste século

recomeço a bordar ou a dormir

tanto faz

sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade

 


(Ilustração: Kay Sage (June 25, 1898 – January 8, 1963): American Surrealist artist)

terça-feira, 22 de outubro de 2024

VOCÊ NÃO QUER VER OS GATINHOS?, de Toni Morrison

 




Elas vêm de Mobile. Aiken. De Newport News. De Marietta. De Meridian. E o som desses nomes em sua boca faz pensar em amor. Quando a gente pergunta de onde são, inclinam a cabeça, dizem “Mobile” e a gente pensa que ganhou um beijo. Dizem “Aiken” e vê-se uma borboleta branca roçar numa cerca com uma asa rasgada. Dizem “Nagadoches” e você tem vontade de dizer “Sim, aceito”. Você não sabe como são essas cidades, mas adora o que acontece com o ar quando elas abrem os lábios e dizem os nomes.

Meridian. O som da palavra abre as janelas de uma sala, como as quatro primeiras notas de um hino. Poucas pessoas podem dizer o nome de sua cidade natal com tanta afeição dissimulada. Talvez porque não tenham uma cidade natal, só um lugar onde nasceram. Mas essas garotas absorvem o sumo de sua cidade natal, que nunca as deixa. São garotas magras de pele parda que olharam muito tempo para alteias nos quintais de Meridian, Mobile, Aiken e Baton Rouge. E, assim como as alteias, elas são esguias, altas e quietas. Têm raízes profundas, a haste firme, e só a flor, no alto, balança ao vento. Têm os olhos de quem é capaz de dizer a hora pela cor do céu. Essas garotas moram em bairros negros tranquilos, onde todo mundo tem emprego bem remunerado. Onde, nas varandas, há balanços pendendo de correntes. Onde a grama é cortada com uma foice, onde crescem cristas-de-galo e girassóis nos jardins, e vasos de corações-ardentes e hera se alinham nos degraus e no parapeito das janelas. Essas garotas compram melão e feijão na carroça do verdureiro. Colocam na janela um aviso escrito em papelão para o vendedor de gelo, informando quanto gelo querem, quando querem. Essas garotas pardas de Mobile e Aiken não são como algumas de suas irmãs. Não são mal-humoradas, nervosas nem estridentes; não têm belos pescoços negros que se esticam como se forçassem uma coleira invisível; seus olhos não mordem. Essas garotas cor de açúcar mascavo, de Mobile, andam pelas ruas sem chamar a menor atenção. São doces e sem graça como pão de ló. Tornozelos delgados, pés longos e finos. Lavam-se com sabonete Lifebuoy cor de laranja, usam talco Cashmere Bouquet, limpam os dentes com sal num pedaço de pano, amaciam a pele com loção Jergens. Cheiram a madeira, jornal e baunilha. Alisam o cabelo com Dixie Peach e o repartem de lado. À noite, enrolam o cabelo em papelotes pardos, amarram um lenço estampado na cabeça e dormem com as mãos cruzadas sobre o estômago. Não bebem, não fumam nem dizem palavrões, e ainda chamam sexo de “nookey”[*]. São segundo soprano no coral e, embora tenham a voz clara e firme, nunca são escolhidas para solar. Ficam na segunda fila, de blusa branca engomada, saia azul, quase roxa do ferro de passar.

Estudam em faculdades subvencionadas pelo governo federal, cursam a escola normal e aprendem a fazer o trabalho do branco com refinamento: economia doméstica para preparar a comida dele; pedagogia para ensinar crianças negras a obedecer; música para aliviar o cansaço do patrão e entreter-lhe a alma embotada. Ali elas aprendem o resto da lição iniciada naquelas casas tranquilas com balanços na varanda e vasos de corações ardentes: como se comportar. O cuidadoso desenvolvimento de parcimônia, paciência, princípios morais e boas maneiras. Numa palavra, como se livrar da catinga. A horrível catinga das paixões, a catinga da natureza, a catinga da vasta gama de emoções humanas.

Apagam a catinga onde quer que ela irrompa; dissolvem-na onde quer que se encroste; onde quer que goteje, floresça ou se agarre, elas a encontram e a combatem até destruí-la. Travam essa batalha até o fim, até o túmulo. A risada que é um tanto alta demais; a pronúncia um tanto arredondada demais; o gesto um tanto generoso demais. Contraem o traseiro com medo de um balanço demasiado livre; quando usam batom, nunca cobrem a boca inteira, com medo de que os lábios fiquem grossos demais, e preocupam-se, preocupam-se, preocupam-se com as pontas do cabelo.

Nunca parecem namorar, mas sempre se casam. Certos homens as observam, sem dar a impressão de fazer isso, e sabem que, com uma garota assim em casa, vão dormir em lençóis fervidos para branquear, pendurados para secar em pés de zimbro e passados com um ferro pesado. Haverá lindas flores de papel decorando a fotografia da mãe dele e uma grande Bíblia na sala da frente. Eles se sentem seguros. Sabem que sua roupa de trabalho estará remendada, lavada e passada na segunda-feira; que a camisa de domingo, branca e dura de goma, estará no cabide pendurado no umbral da porta. Olham para as mãos dela e sabem o que ela fará com massa de biscoito; sentem o cheiro do café e do presunto frito; veem o pão branco de farinha grossa, fumegante, com um naco de manteiga em cima. Os quadris lhes garantem que elas terão filhos com facilidade e sem dor. E eles têm razão.

O que esse homem não sabe é que essa garota parda e sem graça vai construir seu ninho graveto por graveto, transformá-lo em seu mundo inviolável e montar guarda sobre cada planta, erva daninha e toalhinha que haja ali, mesmo contra o marido. Em silêncio, levará o lampião de volta ao lugar que ela decidiu que é o dele; vai tirar os pratos da mesa assim que o último bocado for comido; limpará a maçaneta da porta depois que uma mão engordurada a tiver tocado. Uma olhada de esguelha será o bastante para dizer a ele que vá fumar na varanda dos fundos. As crianças vão sentir instantaneamente que não podem entrar no jardim dela para pegar a bola que caiu ali. Mas o homem não sabe essas coisas. Assim como não sabe que ela lhe dará o corpo com parcialidade. Ele deve penetrá-la sub-repticiamente, erguendo-lhe a camisola só até o umbigo. Quando faz amor, deve sustentar o próprio peso nos cotovelos, em princípio para não machucar os seios dela, mas na verdade para que ela não tenha que tocá-lo nem senti-lo muito.

Enquanto ele se move dentro dela, ela estará pensando por que não puseram as partes necessárias mas íntimas do corpo num lugar mais conveniente — na axila, por exemplo, ou na palma da mão. Um lugar que se pudesse atingir com facilidade, com rapidez, sem tirar a roupa. Ela se enrijece quando sente um dos papelotes no cabelo se soltar como resultado da atividade do amor; guarda na memória qual é que está se soltando, para poder prendê-lo logo, assim que ele terminar. Espera que ele não sue — a umidade pode passar para o cabelo dela; e que permaneça seca entre as pernas — odeia o som molhado que elas fazem quando está úmida. Ao sentir que ele está prestes a ser dominado por um espasmo, ela fará movimentos rápidos com os quadris, apertará as unhas contra as costas dele, prenderá a respiração e fingirá que está tendo um orgasmo. Talvez se pergunte, pela milésima vez, como seria ter aquela sensação enquanto o pênis do marido está dentro dela. O mais próximo disso que ela sentiu foi na ocasião em que a toalhinha absorvente se soltou da calcinha higiênica, movendo-se suavemente por entre suas pernas enquanto ela andava. Suavemente, muito suavemente. E então uma sensação leve e nitidamente deliciosa começou a se intensificar entre suas pernas. Como o prazer aumentou, ela teve que parar na rua e apertar as coxas para contê-lo. Deve ser assim, pensa ela, mas nunca acontece enquanto ele está dentro dela. Quando ele retira o membro, ela baixa a camisola, levanta e vai para o banheiro, aliviada.

De vez em quando, alguma coisa viva lhe cativará a afeição. Um gato, talvez, que vai adorar sua ordem, precisão e constância; que será tão limpo e silencioso quanto ela. O gato se acomodará quietamente no parapeito da janela e vai acariciá-la com os olhos. Ela poderá tomá-lo nos braços, deixando as patas traseiras se agitar para se apoiar nos seios dela e as dianteiras agarrar-se ao seu ombro. Poderá alisar o pelo macio e sentir por baixo a carne que não opõe resistência. Ao mais leve de seus toques, ele vai se espreguiçar e abrir a boca. E ela aceitará a sensação estranhamente agradável que vem quando ele se contorce sob sua mão e aperta os olhos num excesso de prazer sensual. Quando ela estiver em pé na cozinha, preparando comida, ele andará em torno das canelas dela, e a vibração do pelo dele lhe subirá em espirais pelas pernas até as coxas, fazendo os dedos tremer um pouco na massa da torta.

Ou enquanto ela estiver sentada, lendo os “Pensamentos edificantes” na Liberty Magazine, o gato pulará para o seu colo. Ela acariciará aquele monte macio de pelos e deixará o calor do corpo do animal ir penetrando as áreas profundamente privadas do seu colo. Às vezes a revista cairá e ela abrirá as pernas, só um pouquinho, e os dois ficarão imóveis juntos, talvez movendo-se um pouco juntos, dormindo um pouco juntos, até as quatro da tarde, quando o intruso chegará do trabalho, vagamente preocupado com o que há para o jantar.

O gato sempre saberá que é o primeiro nos afetos dela. Mesmo depois de ela ter um bebê. Porque ela terá um bebê — facilmente, sem dor. Mas só um. Um menino. Chamado Júnior.

Uma dessas garotas de Mobile, Meridian ou Aiken, que não transpirava nas axilas nem entre as coxas, que cheirava a madeira e a baunilha, que fazia suflês no departamento de Economia Doméstica, mudou-se com o marido, Louis, para Lorain, em Ohio. Chamava-se Geraldine. Lá ela construiu o ninho, passou camisas, plantou corações ardentes, brincou com o gato e teve Louis Júnior.

Geraldine não permitia que o bebê, Júnior, chorasse. Enquanto as necessidades dele fossem físicas, ela podia atendê-las — conforto e saciedade. Ele estava sempre escovado, banhado, oleado e vestido. Geraldine não falava com ele, não lhe dizia palavrinhas meigas nem o cobria de beijos súbitos, mas providenciava para que todos os outros desejos fossem satisfeitos. Não levou muito tempo para o menino descobrir a diferença no comportamento da mãe em relação a ele e ao gato. Foi crescendo e aprendendo a dirigir para o gato o ódio que sentia da mãe, e passou alguns momentos felizes vendo-o sofrer. O gato sobreviveu, porque Geraldine raramente saía de casa e acudia o animal quando Júnior o maltratava.

Geraldine, Louis, Júnior e o gato moravam ao lado do pátio da escola Washington Irving. Júnior considerava o pátio como seu, e os outros garotos tinham inveja da sua liberdade de dormir até mais tarde, ir almoçar em casa e dominar o pátio depois das aulas. Ele odiava ver vazios os balanços, escorregadores, barras fixas e gangorras, e tentava fazer os meninos ficarem por ali o máximo possível. Meninos brancos; a mãe não gostava que ele brincasse com pretinhos. Ela lhe havia explicado a diferença entre mulatos e pretos. Era fácil identificá-los. Os mulatos eram limpos e silenciosos; os pretos eram sujos e barulhentos. Ele pertencia ao primeiro grupo: usava camisas brancas e calças azuis; cortava o cabelo o mais rente possível para evitar qualquer sugestão de carapinha e a risca era desenhada pelo barbeiro. No inverno a mãe passava loção Jergens no rosto dele para que a pele não ficasse cinzenta. Embora fosse clara, a pele podia ficar cinzenta. A linha entre mulato e preto nem sempre era nítida; sinais sutis e reveladores ameaçavam erodi-la e era preciso estar constantemente atento.

Júnior morria de vontade de brincar com os meninos negros. Mais do que qualquer outra coisa, queria brincar de rei da montanha, que o empurrassem monte de terra abaixo e rolassem por cima dele. Queria sentir-lhes a rigidez comprimindo-se contra ele, sentir o cheiro da negritude rebelde deles e dizer “Foda-se” com aquela deliciosa naturalidade. Queria sentar com eles na calçada e comparar o fio dos canivetes, a distância e o arco das cusparadas. No banheiro, queria compartilhar com eles os louros de ser capaz de fazer xixi de longe e por muito tempo. Em certa época Bay Boy e P.L. foram seus ídolos. Aos poucos acabou concordando com a mãe que nenhum dos dois era bom o suficiente para ele. Só brincava com Ralph Nisensky, que era dois anos mais novo, usava óculos e não queria fazer nada. Júnior gostava cada vez mais de intimidar meninas. Era fácil fazê-las gritar e sair correndo. Como ele ria quando elas caíam e as calcinhas apareciam. Quando se levantavam de rosto vermelho e contraído, ele se sentia bem. Não amolava muito as meninas negras. Elas geralmente andavam em bandos, e uma vez, quando ele atirou uma pedra em algumas delas, todas correram atrás dele, pegaram-no e lhe deram uma surra das feias. Ele mentiu para a mãe, dizendo que tinha sido Bay Boy. A mãe ficou muito aborrecida. O pai se limitou a continuar lendo o Journal de Lorain.

Quando lhe dava na veneta, chamava qualquer menino que estivesse passando para brincar nos balanços ou na gangorra. Se o menino não quisesse, ou quisesse mas fosse embora cedo demais, Júnior jogava pedrinhas nele. Adquiriu uma ótima pontaria.

Como em casa alternava o tédio com o medo, o pátio era a sua alegria. Num dia em que estava especialmente à toa, viu uma menina muito preta cortar caminho pelo pátio. Ia de cabeça baixa. Ele já a tinha visto muitas vezes no recreio, sozinha, sempre sozinha. Ninguém nunca brincava com ela. Provavelmente porque ela é muito feia, pensou ele.

Júnior chamou-a. “Ei! O que é que você está fazendo, atravessando o meu pátio?” A menina parou.

“Ninguém pode passar por este pátio se eu não deixar.”

“O pátio não é seu. É da escola.” “Mas eu é que mando aqui.” A menina se pôs a andar de novo.

“Espere.” Júnior foi até ela. “Você pode brincar aqui, se quiser. Como você se chama?”

“Pecola. Eu não quero brincar.”

“Vamos. Eu não vou amolar você.”

“Tenho que ir para casa.”

“Quer ver uma coisa? Tenho uma coisa para te mostrar.”

“Não. O que é?”

“Vamos até lá em casa. Olha, eu moro logo ali. Vamos. Eu te mostro.”

“Mostra o quê?”

“Uns gatinhos. A gente tem gatinhos. Você pode ficar com um, se quiser.”

“Gatinhos de verdade?”

“É. Vamos.”

Ele puxou de leve o vestido dela. Pecola começou a andar na direção da casa. Quando percebeu que ela havia concordado, Júnior correu na frente, entusiasmado, parando só para gritar para ela que andasse logo. Segurou a porta para ela, todo sorrisos e encorajamento. Pecola subiu os degraus da varanda e hesitou, com medo de entrar. A casa parecia escura. Júnior disse: “Não tem ninguém em casa. Minha mãe saiu e meu pai está trabalhando. Você não quer ver os gatinhos?”.

Júnior acendeu as luzes. Pecola atravessou a porta.

Que bonito, pensou. Que casa bonita. Havia uma grande Bíblia vermelha e dourada em cima da mesa da sala de jantar. Por toda parte havia toalhinhas de renda — sobre os braços e o encosto das poltronas, no centro de uma grande mesa de jantar, sobre mesinhas. Nos parapeitos de todas as janelas havia vasos de plantas. Numa parede pendia uma imagem colorida de Jesus Cristo, com as mais bonitas flores de papel presas na moldura. Ela queria ver tudo bem devagarinho. Mas Júnior não parava de dizer: “Ei, você. Vamos, vamos”. Empurrou-a para outra sala, ainda mais bonita do que a primeira. Mais toalhinhas, um grande abajur com base verde e dourada e cúpula branca. Havia até um tapete no chão, com flores vermelho-escuras enormes. Ela estava em profunda admiração das flores, quando Júnior disse: “Olhe!”. Pecola se virou. “Aqui está o seu gatinho!”, guinchou ele. E jogou um grande gato preto bem no rosto dela. Ela prendeu a respiração, de medo e surpresa, e sentiu pelo na boca. O gato arranhou-lhe o rosto e o peito num esforço para se endireitar e pulou com agilidade para o chão.

Júnior ria e, deliciado, corria pela sala, segurando o estômago. Pecola tocou o arranhão no rosto e sentiu que as lágrimas estavam vindo. Quando começou a se encaminhar para a porta, Júnior deu um salto e parou na frente dela.

“Você não pode sair. É minha prisioneira”, disse. O olhar era alegre, mas duro.

“Me deixa sair.”

“Não!” Deu-lhe um empurrão, saiu pela porta que separava as salas, fechou a porta e ficou segurando. Pecola se pôs a bater na porta e, quanto mais ela batia, mais alta e arquejante se tornava a gargalhada dele.

As lágrimas vieram rápido, e ela cobriu o rosto com as mãos. Quando uma coisa macia e peluda se moveu em torno de seus tornozelos, ela deu um pulo e viu que era o gato. Ele se enroscou em suas pernas. Momentaneamente distraída do medo, agachou-se para tocá-lo, com as mãos úmidas de lágrimas. O gato esfregou-se contra o joelho dela. Era todo preto, um preto intenso e sedoso, e seus olhos, apontando para o focinho, eram verde-azulados. A luz fazia-os brilhar como gelo azul. Pecola alisou a cabeça do gato; ele choramingou, movendo a língua com prazer. Os olhos azuis na cara preta a fitavam.

Júnior, curioso por não ouvir os soluços dela, abriu a porta e viu-a agachada, afagando a cabeça do gato. Viu o gato esticando a cabeça e estreitando os olhos. Tinha visto aquela expressão muitas vezes quando o animal reagia ao toque de sua mãe.

“Dá aqui esse gato!” A voz dele falhou. Com um movimento ao mesmo tempo desajeitado e certeiro, agarrou o gato por uma perna traseira e começou a girá-lo em torno da cabeça.

“Para com isso!”, gritou Pecola. As patas livres do gato estavam rijas, prontas para agarrar qualquer coisa que lhe devolvesse o equilíbrio, a boca escancarada, os olhos azuis eram riscas de pavor.

Ainda gritando, Pecola se esticou para pegar a mão de Júnior. Ouviu o vestido rasgar embaixo do braço. Júnior tentou empurrá-la para longe, mas ela segurou-lhe o braço que girava o gato. Os dois caíram e, na queda, Júnior largou o gato. Solto em pleno movimento, o animal foi atirado com toda a força contra a janela. Resvalou e caiu em cima do aquecedor, atrás do sofá. Estremeceu algumas vezes e ficou imóvel. Sentia-se apenas um leve cheiro de pelo chamuscado.

Geraldine abriu a porta.

“O que é isso?” Voz suave, como se fosse uma pergunta muito natural. “Quem é essa menina?”

“Ela matou o nosso gato”, disse Júnior. “Olha.” Apontou para o aquecedor, onde o gato jazia, com os olhos azuis fechados, deixando apenas uma cara preta, vazia e indefesa.

Geraldine foi até o aquecedor e pegou o gato. O animal ficou largado em seus braços, mas ela esfregou o rosto contra o pelo dele. Olhou para Pecola. Viu o vestido sujo rasgado, as tranças espetadas na cabeça, o cabelo emaranhado nos pontos onde as tranças estavam desfeitas, os sapatos enlameados com um chiclete aparecendo por entre as solas baratas, as meias sujas, uma das quais engolida pelo calcanhar do sapato. Viu o alfinete de gancho prendendo a barra do vestido. Por sobre a corcova das costas do gato, olhou para ela. A vida toda tinha visto aquela menina. Paradas diante das vidraças dos bares em Mobile, engatinhando em varandas de casas toscas na periferia da cidade, sentadas em estações de ônibus segurando sacos de papel e gritando para mães que não paravam de dizer “Cala a boca!”. Cabelo despenteado, vestidos rasgados, sapatos desamarrados e empastados de sujeira. Elas a haviam fitado com grandes olhos incompreensivos. Olhos que não questionavam nada e perguntavam tudo. Sem piscar, despudoradamente, elas a fitavam. Tinham nos olhos o fim do mundo, o começo e todo o vazio entre uma coisa e outra.

Elas estavam por todo lado. Dormiam seis amontoadas, a urina de todas misturando-se durante a noite quando molhavam a cama, cada uma sonhando seu sonho de doces e batatinhas fritas. Nos dias longos e quentes, ficavam à toa, tirando reboco das paredes e cutucando a terra com paus. Sentavam-se em pequenas fileiras nas calçadas, amontoavam-se nos bancos da igreja, tirando espaço das crianças mulatas, bonitas e limpas; faziam palhaçadas nos playgrounds, quebravam coisas em lojas baratas, corriam na frente da gente na rua, faziam pistas de gelo nas calçadas inclinadas no inverno. As meninas cresciam sem saber usar uma cinta e os meninos anunciavam que tinham atingido a idade viril virando para trás a aba do boné. Nos lugares onde elas moravam não crescia grama. As flores morriam. Abatiam-se sombras. Floresciam latas e pneus onde elas moravam. Viviam de feijão-fradinho frio e refrigerante de laranja. Como moscas, elas esvoaçavam; como moscas, pousavam. E esta pousara em sua casa. Por sobre a corcova das costas do gato, ela olhava.

“Fora”, disse, em voz baixa. “Sua negrinha ordinária. Fora da minha casa.”

O gato estremeceu e sacudiu o rabo.

Pecola recuou, olhando fixo para a bela senhora cor de café com leite, na bela casa verde e dourada, que falava com ela por entre o pelo do gato. As palavras da senhora bonita fizeram o pelo do gato se mexer; o sopro de cada palavra separou os pelos. Virou-se para achar a porta da frente e viu Jesus que a mirava com olhos tristes e sem surpresa, o longo cabelo castanho repartido no meio, as alegres flores de papel retorcidas em torno de seu rosto.

Lá fora, o vento de março entrou-lhe pelo rasgão no vestido. Pecola abaixou a cabeça contra o frio. Mas não conseguiu abaixá-la o suficiente para não ver os flocos de neve que caíam e morriam na calçada.



[*] Termo vulgar, mas aceitável para “ato sexual”, talvez derivado de nook, “esconderijo”, “recesso”. (N. T.)



(O olho mais azul; tradução de Manoel Paulo Ferreira)



(Ilustração: Philemona Williamson - red buckled shoes, 2014)

sábado, 19 de outubro de 2024

CASA ARRUMADA, de Leda Gino

 

  




Casa arrumada é assim:

Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação

e uma boa entrada de luz.

Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico,

um cenário de novela.

Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando,

ajeitando os móveis, afofando as almofadas...

Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo:

Aqui tem vida...

Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras

e os enfeites brincam de trocar de lugar.

Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições

fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha.

Sofá sem mancha?

Tapete sem fio puxado?

Mesa sem marca de copo?

Tá na cara que é casa sem festa.

E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.

Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde.

Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante,

passaporte e vela de aniversário, tudo junto...

Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda.

A que está sempre pronta pros amigos, filhos...

Netos, pros vizinhos...

E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca

ou namora a qualquer hora do dia.

Casa com vida é aquela que a gente arruma pra ficar com a cara da gente.

Arrume a sua casa todos os dias...

Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo pra viver nela...

E reconhecer nela o seu lugar.




(Ilustração: Vincent Van Gogh - o quarto - 1889 - Musée d Orsay Paris)

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

O NASCIMENTO DO MUNDO (LENDA MAORI RECONTADA POR MARIA DE LA LUZ)


No início só havia Kore, a energia, vagando na escuridão do espaço infinito. Então, veio a luz e surgiram Ranginui, o Pai Céu, e Papatuanuku, a Mãe Terra. Rangi e Papa tiveram muitos filhos: Tangaroa, deus das águas; Tane, deus das florestas; Tawhirmatea, deus dos ventos; Tumatauenga, deus da guerra, que deu origem aos seres humanos; e Uru, que não era deus de nada.


Rangi e Papa viviam num perpétuo abraço de amantes. Acontece que esse enlace apaixonado não deixava a luz penetrar entre seus corpos, onde ficavam os filhos. Obrigados a viver apertados e sempre no escuro, os jovens resolveram dar um basta na situação.

– Vamos matar Rangi e Papa e ficar livres deles! – disse Tumatauenga.

– Não! – disse Tane. – Vamos apenas separá-los, empurrando um para cima e deixando o outro embaixo. Assim sobrará espaço para nós e a luz vai poder entrar.

Todos acharam a ideia excelente.

Tane, que era o mais forte de todos, firmou bem os pés em Papa, encaixou os ombros no corpo de Rangi e o empurrou para cima com toda a força.

Os pais se separaram, mas – oh, decepção! – só um pouco de luz chegou ao mundo dos filhos. Além disso, Rangi e Papa estavam nus e, longe um do outro, sentiam muito frio.

Comovido com a situação, Tane abrigou o pai com o negro manto da noite.

Para a mãe fez um vestido com as mais verdes e tenras folhas e as flores mais coloridas. Em torno dela fez ondular as águas azuis dos mares e rios de Tangaroa. Os ventos de Tawhirmatea sopravam suavemente seus cabelos. Os filhos de Tumatauenga já começavam a povoar o mundo recém-criado.

Olhando lá de cima os lindos trajes da mulher e sua participação no novo mundo, Ranginui ficou doente de inveja. Sua dor cobriu o mundo com uma névoa úmida e cinzenta.

Refugiado em uma dobra do manto paterno, Uru chorava e chorava por não ter sido útil em nada aos pais e aos irmãos. Para que ninguém percebesse suas lágrimas, escondia-as em cestas e mais cestas. Mas Tane tudo percebera:

-Uru, meu irmão, preciso de sua ajuda!

– Nada tenho para dar, você bem sabe!

– Ora, Uru, você tem tantas cestas…

Surpreso e com medo de ser descoberto em sua fraqueza, Uru abaixou a cabeça:

– Não tem nada dentro delas, irmão.

Tane avançou e destampou uma das cestas. Dela voaram luzes faiscantes e risonhas para todos os lados. As lágrimas de Uru haviam se transformado em crianças-luz (para nós, estrelas)!

– Uru, será que você podia me ceder duas de suas cestas? Seus filhos poderiam enfeitar e iluminar a morada de nosso pai…

Uru concordou. As duas cestas foram passadas para Te Waka o Tamareriti, uma canoa muito especial. Tane conduziu a canoa até o céu, espalhando sobre o manto de Rangi milhares de estrelinhas que riam e piscavam umas para as outras o tempo todo.

Quando Tane ia pegar a segunda cesta, esta tombou e se abriu, deixando as estrelas se espalharem numa grande faixa chamada Ikaroa, que cruzou o céu de lado a lado (para nós, a Via Láctea). Tane deixou Ikaroa e Waka o Tamareriti (que é a “cauda” da nossa constelação do Escorpião) no espaço celeste, onde se tornaram os guardiões das estrelas.



(Ilustração: Kipper)

domingo, 13 de outubro de 2024

O XERIFE E OS GUAJAJARAS (NO INTERIOR DO MARANHÃO), de Leonardo Froes

 




Os homens do Romeu Tuma,

prepotentes e embalados,

foram dar uma batida

na tribo dos guajajaras.

Queriam localizar,

pra acabar de vez com ela,

a plantação de maconha

que, segundo haviam dito,

esses índios cultivavam

no sertão do Maranhão.

Lá na aldeia de Coquinhos

os homens bravos do Tuma

já chegaram dando tiros,

matando cachorros mansos

que apenas comiam pulgas.

Curumins apavorados

corriam que nem cutia

da polvorosa imprevista,

enquanto cunhãs e velhas,

aflitas, choravam sem

entender o que é que havia.

“De que se trata?”, diziam

na língua dos guajajaras:

“Que querer aqui fazer

os ruins caramurus?”

Os de fora, dos seus carros

barulhentos que nem tanques

numa ofensiva de guerra,

iam só mandando bala

por entre as choças tranquilas,

furando bambus e sacos,

vasilhames e bacias

com pontaria certeira.

Mas o espírito das matas

(cinco séculos de fúria

sob contínuos massacres)

de repente correu solto

no meio dos guajajaras.

Armando-se de cacetes,

o desespero do orgulho

e a valentia das onças,

os índios antes perplexos

com a louca invasão dos brutos

pularam dando pauladas,

de peito nu e aberto,

contra os tiros da polícia.

E deram tanto, mas tanto,

foram tantas cacetadas

de toda uma raça extinta,

era tão justa a refrega

dos caboclos de Tupã,

tão fraternos e preciosos

os golpes do contra-ataque,

que não houve jamais como

o pelotão resistir.

Seus carros antes possantes

ficaram despedaçados

e nenhum tira escapou:

todos levaram porrada.

Sem armas nem munições,

que os índios depois tomaram,

a polícia foi em cana

metendo o rabo entre as pernas.

Com o bando da lei detido

numa palhoça de varas,

mais pauladas foram dadas,

dessa vez como castigo,

por um ancião da tribo

e o cadáver do cachorro

(nosso irmão e nosso espelho)

assassinado por eles

a seguir foi esfregado

na cara de cada um.

De Brasília, o Romeu Tuma

com seus capangas mais fortes

foi lá conversar com os índios

para soltar os reféns.

Encontrou os guajajaras

preparados para a guerra

com suas caras pintadas.

Talvez não tivesse visto,

mas ventos elementares

faziam tremer a terra

por toda a Barra do Corda.

Sob o calor dos coqueiros,

cocares de antigas lutas

na glória da resistência

faziam gestos simbólicos.

Por trás de cada cunhã

com riscos na face triste,

foram hordas de fantasmas

tomados de amor da terra

que o Romeu Tuma encontrou.

Bom de papo, bem treinado

nas rodinhas de Brasília

depois de muita conversa

conseguiu a liberdade

dos subalternos detidos.

Mas as armas dos seus homens

os guajajaras não deram.

E agora, depois de tanta

estripulia e arbítrio,

impõem uma condição

para entregá-las aos donos:

que os brancos também devolvam,

por estar em suas terras,

o povoado já famoso

e bem, enfim, guajajara

pelas ressonâncias do nome

que é São Pedro dos Cacetes.




(Ilustração: índios guajajaras - foto de Vincent Carelli, 1980)

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

LUCIEN CARR MATOU O AMIGO E O CRIME ESTEVE NA GÉNESE DA GERAÇÃO BEAT, de Isabel Lucas




Na madrugada de 13 de Agosto de 1944, um estudante da Universidade de Colúmbia e o seu mentor e protector, um homem 14 anos mais velho, envolveram-se numa discussão em Riverside Park, junto ao rio Hudson, perto do campus universitário, em Nova Iorque, e o mais novo acabou por atingir o mais velho no peito com dois golpes de navalha. São factos. Facto também é que o mais novo atou as mãos e os pés daquele que pensava ser já um cadáver, encheu-lhe os bolsos do fato de pedras e atirou-o ao rio. Outro facto: o rapaz terá corrido a pedir conselho sobre o que fazer a um grupo de amigos mais velhos - os futuros poetas da beat - e entregou-se às autoridades.

O rapaz de 19 anos seria condenado a 20 de prisão, mas acabou por passar apenas dois num centro de correcção e sair em liberdade aos 21. Chamava-se Lucien Carr, boa pinta, assediado pelos amigos homossexuais, admirado por todos pela sua cultura e sentido de humor, leitor compulsivo que apresentou os poemas de Rimbaud a outro amigo, Allen Ginsberg, e apresentou também Ginsberg a William S. Burroughs e os dois a Jack Kerouac. Sem saber, Carr esteve na génese do que viria a ser o núcleo da geração beat, mas o crime que cometeu afastou-o dela sem que nunca tivesse escrito um poema ou um texto segundo os critérios estilísticos desse grupo cuja regra de vida era não ter regras para a vida: seguir o impulso sem censura.

Lucien Carr é o centro do livro "escondido" que William S. Burroughs e Jack Kerouac escreveram em 1945, antes de publicarem o que quer que fosse, contando a sua versão do crime de Riverside Park, o policial e os hipopótamos cozeram nos seus tanques, agora editado em Portugal pela Quetzal e que a América só conheceu em 2008, depois da morte de Carr. Não é o grande livro de cada um, mas é o primeiro livro de um e de outro.

"Lucien Carr, com a sua paixão por Rimbaud, acabou, numa trágica ironia, por ser ele mesmo uma espécie de Rimbaud deste grupo, alguém que, ao se livrar do seu Verlaine, morreu para as artes antes da maioridade, mas permanecendo uma inspiração". Voz grave, estilo pausado, James W. Grauerholz, o executor testamentário de William S. Burroughs e amigo íntimo do autor de Naked Lunch, diz "olá" como quem diz holla. Está no Kansas, e quer fazer-se entender ao falar de um grupo e de uma história que o mudou também a ele. Diz-se fluente em espanhol, ensaia umas palavras em português, mas segue no seu sotaque cerrado a história de Carr que conheceu numa madrugada de copos em casa de Burroughs.

William S. Burroughs era o ídolo de James W. Grauerholz. Leu Naked Lunch com 14 anos e nunca mais deixou de seguir tudo o que Burroughs escreveu. Queria ser escritor e via ali o exemplo. "Em 1974, quando fui para Nova Iorque, recebi um telefonema de Allen Ginsberg. Dizia-me que Burroughs estava em Nova Iorque e queria conhecer-me; que precisava do um secretário. Deu-me o número dele e o meu herói convidou-me para jantar. Daí a umas semanas estava a viver com ele", conta-nos Grauerholz com o tom e o riso de quem narra umas memórias boas.

"Gostávamos um do outro e fomos íntimos durante algum tempo, mas eu precisava de estar com pessoas da minha idade e essa intimidada acabou tal como existia." Grauerholz tinha então 21 anos e Burroughs 60. Foi nesse período que conheceu Lucien Carr. Carr era editor da United Press. "Numa noite, muito tarde, tocaram à campainha, fui ver quem era e ouço uma voz a gritar: "O Burroughs está por aí?" Ele disse-lhe para entrar. Vestimo-nos à pressa. Lucien, bêbado, estava à procura do velho amigo e passámos o resto da noite a beber e a fumar. Achei-o muito divertido."

Voltaram a ver-se ao longo de décadas. Grauerholz e Burroughs deixaram de ser íntimos, mas nunca perderam a intimidade que Grauerholz compara à de um velho casal. Carr aparecia, mas não falava do que tinha acontecido na noite de 1944. "Acho natural. Tudo correu de forma muito má para Lucien. Ele continuava a gostar dos amigos, mas não queria fazer parte da visão beat", justifica sobre uma história que continua nebulosa e alimentou a imaginação e a obra dos amigos da Beat. Ele foi guardião dessa história e do livro que Burroughs escrevera com Kerouac, mas nunca fora publicado. Kerouac morrera em 1969. Burroughs ficou com o manuscrito, e quando nomeou Grauerholz seu executante testamentário pediu para que se cumprisse a vontade de Carr: que o livro só fosse publicado depois da morte do jornalista.

O que mais incomodava Carr não era, segundo Grauerholz, o facto de ter morto o seu companheiro e tutor, mas as alusões à sua homossexualidade. "Não é que Lucien Carr fosse homofóbico. Mas tinha construído uma vida depois daquele crime distante dos excessos desses dias. Tinha uma profissão, tinha casado duas vezes, tinha três filhos e era nesses papéis que queria ser conhecido."

Grauerholz regressa agora a um passado que não foi o dele, ao início da década de 40, quando Carr e Dave Kammerer eram inseparáveis. A história da relação de Lucian e Dave E. Kammerer vem sintetizada no posfácio de e os hipopótamos cozeram nos seus tanques pelo próprio Grauerholz. Está no livro com os protagonistas a terem outros nomes.

"Para quem acaba de chegar, eis os factos básicos: a relação entre Lucien Carr IV e David Kammerer começou em St. Louis, Missuri, em 1936, quando Lucien tinha 11 e Dave 25 anos. Oito anos, cinco estados, quatro escolas secundárias e duas faculdades mais tarde, a relação havia-se tornado demasiado intensa." O desenlace é o que se sabe ou se lerá, ou ainda se pode ver no filme Kill your Darlings, de John Krokidas, com Daniel Radcliffe, Ben Foster, Michael C. Hall. O filme tem estreia marcada para estes dias na América. "O guião é óptimo, alguns actores consultaram-me para construir as personagens. Estou curioso."

Feito o parêntesis, volta ao incómodo: "O William disse-me que estava certo de que eles nunca tinham tido nenhum contacto sexual. William conheceu Lucien era ele adolescente. Todos andavam pela Village. Dizia-me que ele tinha um intelecto precoce e Kammerer via nele um adorável protegé." Exemplo? Burroughs. Viu sempre nele um amigo leal logo desde o início. "Wiliam tinha emprestado o carro a Lucien para ele ir a St. Louis. Ele era de lá. A meio da viagem, houve um acidente. Lucien telefonou a William: "O teu carro está desfeito na estrada". Como resposta teve: "Ok, obrigada por me contares". Naquele dia impressionaram-se um ao outro e nunca mais deixaram de se respeitar.

Até ao fim. Burroughs morreu em 1997. Lucien Carr em 2005, vítima de cancro e quase desconhecido para o mundo. Cultivava a imagem do velho jornalista americano, "cínico, que bebia e fumava muito". Grauerholz sublinha o lado trágico da história de Carr. "Sim, era um Rimbaud. Os outros viveram a glória". Aquele que era "o mais inquieto" do grupo de rapazes, "uma força da natureza", "caleidoscópico" nos seus entusiasmos, o "talismã" do grupo que tinha em Kerouac o mais tranquilo, em Ginsberg a curiosidade, e o punchline em Burroughs "pagou um preço". "No fim da vida, se lhe perguntassem como queria ser lembrado, julgo que como um grande jornalista", arrisca James W. Grauerholz. Como era ele, afinal? "Não há um Lucien Carr. Há uma figura ambígua. É um exemplo de como alguém pode sobreviver à infância. Ele conseguiu uma segunda vida e viveu-a. É mau que depois de ter resgatado a sua vida ao caos, tenha sido um jornalista não muito conhecido e a infelicidade de ser apenas lembrado como o jovem que cometeu um crime... Mas, isto é a América. É a vida. Como eles eram? Está tudo em On The Road (1957)."



(Ilustração: Carr, Burroughs e Ginsberg; foto da internet sem indicação de autoria)

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

EU TE AMO, de Tom Jobim e Chico Buarque



Ah, se já perdemos a noção da hora

Se juntos já jogamos tudo fora

Me conta agora como hei de partir



Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios

Rompi com o mundo, queimei meus navios

Me diz pra onde é que inda posso ir



Se nós, nas travessuras das noites eternas

Já confundimos tanto as nossas pernas

Diz com que pernas eu devo seguir



Se entornaste a nossa sorte pelo chão

Se na bagunça do teu coração

Meu sangue errou de veia e se perdeu



Como, se na desordem do armário embutido

Meu paletó enlaça o teu vestido

E o meu sapato inda pisa no teu



Como, se nos amamos feito dois pagãos

Teus seios inda estão nas minhas mãos

Me explica com que cara eu vou sair



Não, acho que estás se fazendo de tonta

Te dei meus olhos pra tomares conta

Agora conta como hei de partir





(Ilustração: Apollonia Sainclair - a queen and her king)

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

A AMAZÔNIA, SEUS POVOS E A DEVASTAÇÃO, de Darcy Ribeiro

 


Uma das minhas maiores alegrias nos últimos anos foi ver generalizar-se a milhões de pessoas meu velho temor pelo destino da Amazônia. Felizmente, com o temor difundiu-se também um começo de esperança pela salvação do jardim da Terra. O fato é que a mídia, tão mercantilizada de nosso tempo, quase sempre incapaz de abraçar qualquer causa generosa, nesse caso se sensibilizou e mobilizou a opinião pública mundial para a defesa da floresta e dos povos da floresta.

A causa da Amazônia e a de seus índios e caboclos têm, para mim, um sabor biográfico. Vivi anos em aldeias indígenas na Amazônia e tenho o fundo da memória cheio de imagens do esplendor da floresta virgem, das singularidades da indianidade original e da tragédia dos povos da floresta.

A Amazônia é o maior ser vivente que jamais se viu. Uma enormidade de massa viva, nascendo e morrendo continuamente, nutrindo-se de ares, de águas e terra. Mas, sobretudo, de si mesma, numa autofagia em que se desfaz e refaz, enquanto se multiplica e se diversifica em miríades de vegetais e animais. De dia, aspira carbono e expira oxigênio. De noite, inverte o ciclo. Dia e noite, sua e exsuda, extrai da atmosfera o nitrogênio de que se nutre, numa interação contínua de seu folhame com o ar e com o sol.

Vista de cima, a mata é um arbóreo mar-oceano deitado no chão. Vista de dentro, é uma catedral, de milhões de colunas grossas e finas subindo da terra para o céu, fechando o horizonte. Olhando para o alto, ela é um pálio imenso de verdes frondes açoitadas pelo vento, tapando o céu. Sentida, lá de dentro, é um mundo sombrio, silente. Só de madrugada e ao anoitecer estruge, urra, canta, grita, chia, esturra, com as bocas e os bicos da bicharada, no pavor da noite que baixa, na alegria do dia que volta.

Onde a mata se deixa ver em grandes extensões, é um imensíssimo tapete de todos os tons de verde. Aqui e ali, salpicado de árvores amarelas, brancas, negras, azuis, rubras, escarlates, lilases, cinzentas. Um esplendor.

A Amazônia é, de fato, um mundo de águas plenas, variadíssimas. Há as transparentes, como espelho, são as de águas pretas. Há as turvas, pelo barro branco dissolvido. Há as acobreadas, as amareladas. Tamanho é seu agual, que a Amazônia contribui com um quinto das águas doces despejadas nos mares. Numa quadra do ano, a Amazônia é sobretudo chuva que chove semanas, dia e noite sem parar. Inunda toda a terra, engrossando igarapés que viram rios, exorbitam lagos e lagoas, num agual maior que muitos oceanos. Essa chuva imensa umedece tanto o ar que o mundo se converte numa espécie de aquário, por onde transitam gentes e bichos.

O mais extraordinário desse agual, quase sempre parado, em calmaria, é quando ele se eriça em águas revoltas com as ondas de maremoto das pororocas. Carrega, então, pedaços imensos da margem, formando ilhas flutuantes que navegam para o mar.

São as águas que regem a Amazônia. Descobri isso vivendo lá, dez anos, ao perceber que ela é, a um tempo, o Inferno Verde e o Paraíso Terrenal. Assim é, porque, depois da época das grandes chuvas, quando vem a cheia, o agual é tão imenso, que não se consegue pescar, nem caçar. Os índios com que eu convivia, dependem, nesse período, exclusivamente do parco produto de suas roças para comer. Emagrecem visivelmente. É o Inferno Verde. Ao contrário, na época das águas baixas, há peixe de se pegar com a mão. Frutas deliciosas, variadíssimas, em quantidade prodigiosa. Caça, também, há quanta se queira. É o Paraíso Terrenal. Tão prodigioso que chego a supor que, no futuro, uma das formas mais altas de turismo rico não será ir ver a Capela Sistina. Será tomar a namorada pela mão e entrar com ela na Floresta Amazônica, para viver um mês de vida de índio naquele jardim maravilhoso.

Mas a Amazônia não é uma, é mil. Sua característica maior talvez seja essa diversidade. Tanto a decorrente de sua adaptação ecológica a terras baixas e altas, frescas e secas, férteis e áridas, como a resultante da variedade infinita de espécies em que se desdobra. Supõe-se que somem mais de 2 milhões os artrópodes. Sessenta mil, só as plantas. Dois mil, as variedades de peixes conhecidos. Trezentos são os mamíferos. Ainda há os répteis, as aves e não sei quantos bichos mais.

Tal como a floresta, também variadíssima é a humanidade original da Amazônia. Seus povos indígenas se estruturavam em cerca de mil tribos, com população calculável de 2 a 3 milhões de pessoas, concentrada principalmente nas várzeas. Esses povos falavam mais de 500 línguas, classificadas em 20 troncos. Era uma Torre de Babel.

Ao longo de muitos milênios de ocupação da Amazônia, os povos indígenas acumularam um conhecimento minucioso da floresta e dos seres que ela abriga. Criaram diversas formas de adaptação humana, não destrutiva, através de formas avançadas de manejo que permitem enriquecer a floresta em lugar de degradá-la.

Com base nessa sabedoria indígena, combinada com alguma contribuição portuguesa e com um pouco do tempero africano, os caboclos gerados pela mestiçagem criaram um gênero de vida próprio, muito bem-adaptado à floresta. Moram em casas feitas de palha, dormem em redes, carregam suas cargas às costas em jamaxins trançados. Têm uma culinária genuína e primorosa, com uma variação de gostos extraordinária, que eles alcançam combinando e contrastando amargos, azedos, salgados e doces. Tenho, para mim, que será de festa o dia em que o mundo descobrir o gosto dos temperos amazônicos, como o tucupi e os seus 100 sorvetes feitos de frutas.

Ao contrário da indígena, a ocupação civilizada da Amazônia é essencialmente destrutiva. Principalmente quando derruba e queima extensões de centenas de milhares, até de 1 milhão de hectares, para converter a floresta em capinzais. Igualmente danosa é a queima de árvores da floresta para produzir o carvão, com fins energéticos, ou para a produção de ferro-gusa. Pior, talvez, é a poluição das águas pelo mercúrio usado nos garimpos de ouro; ele mata tudo.

A civilização europeia caiu sobre a Amazônia como uma peste a partir de 1600. Provocou, primeiro, imensa despopulação pela contaminação das doenças do homem branco, como a varíola, a caxumba, as doenças pulmonares, as cáries dentárias, antes desconhecidas. Hecatombe maior foi a provocada, depois, pela catequese, que aliciava índios, a ferro e fogo, concentrando-os nas missões, onde perdiam sua língua original e se destribalizavam, convertendo-se num povo de ninguéns.

Para os missionários, os índios eram uma massa de pagãos, que deviam ser salvos, destribalizando-os e reorganizando-os em sociedades pias. Para o colonizador, eles eram a mão de obra indispensável à sua própria prosperidade, porque lhes pareciam totalmente inúteis, enquanto não entrassem na produção de mercadorias.

A ação missionária de destribalização promovida principalmente pelos jesuítas, somada à mestiçagem, produziu um gênero humano novo: os caboclos. Eles falavam melhor o tupi – língua indígena adotada pelos missionários – que o português, e não tinham identidade própria, porque perderam a tribal, sem se inserirem em nenhuma comunidade humana que os aceitasse como membros.

Paralelamente ao drama dos povos indígenas atropelados e avassalados pela civilização, desenrolou-se e ainda prossegue uma tragédia humana de iguais dimensões. É a da população cabocla da Amazônia, gerada no mesmo processo civilizatório que dizimou os índios e os fez suceder ecologicamente no mesmo espaço pelos caboclos.

Ao longo de cinco séculos surgiu e se multiplicou uma vasta população de gentes destribalizadas, desculturadas e mestiçadas que é o fruto e a vítima principal da invasão europeia. Somam hoje mais de 3 milhões aqueles que conservam sua cultura adaptativa original de povos da floresta. Originaram-se principalmente das missões jesuíticas que, confinando índios tirados de diferentes tribos, inviabilizavam as suas culturas de origem e lhes impunham uma língua franca, o tupi, tomado dos primeiros grupos indígenas que eles catequizaram um século antes em regiões longínquas. Assim, uma língua indígena foi convertida pelos padres na língua da civilização, que passou a ser a fala da massa de catecúmenos. No curso de um processo de transfiguração étnica, eles se converteram em índios genéricos, sem língua nem cultura próprias, e sem identidade cultural específica. A eles se juntaram, mais tarde, grandes massas de mestiços, gestados por brancos em mulheres indígenas, que também não sendo índios nem chegando a serem europeus, e falando o tupi, se dissolveram na condição de caboclos.

A dupla função dessa massa cabocla foi a de mão de obra da exploração extrativista de drogas da mata exportadas para a Europa, que viabilizavam a pobre economia da região. Foi também instrumento de captura e de dizimação das populações indígenas autônomas, contra as quais desenvolveram uma agressividade igual ou pior que a dos europeus. Tão tremenda, porém, foi a opressão civilizatória que pesou sobre eles próprios, que acabaram por alçar-se numa guerra étnica, a Cabanagem (1835-40), a mais cruenta da história americana, que custou mais de 100 mil vidas dos caboclos nela envolvidos. Nessa luta, eles viveram a situação paradoxal de quem pode ganhar mil batalhas mas não pode perder nenhuma. Com efeito, venceram muitas vezes e tomaram as principais cidades da Amazônia, inclusive Belém e Manaus, mas acabaram dominados, sofrendo um terrível genocídio.

Sobre esses caboclos vencidos caíram depois duas ondas de violência. A primeira veio com a extraordinária valorização da borracha no mercado mundial que os recrutou e avassalou, lançando simultaneamente sobre eles gentes vindas de toda a parte para explorar a nova riqueza. Nessa instância, perderam sua língua própria, adotando o português, mas mantiveram a consciência de sua identidade diferenciada e o seu modo de vida de povo da floresta. A segunda onda ocorre em nossos dias com a nova invasão da Amazônia pela sociedade brasileira, em sua expansão sobre aquela fronteira florestal. Seu efeito maior tem sido o desalojamento dos caboclos das terras que ocupavam, expulsando mais da metade deles para a vida urbana famélica de Belém e Manaus. Os índios que sobreviveram já aprenderam a resistir ao avassalamento. Os caboclos, não.

Da segunda metade do século passado até 1913, o mundo rodou sobre pneus de borracha da Amazônia. O vale todo se dinamizou em progresso, as matas foram invadidas por uma massa enorme de gente, vinda principalmente do Nordeste árido. Pobre gente que se desgastou no aprendizado de uma forma brutal e infecunda de ocupação, ignorando toda a sabedoria indígena sobre o que a mata podia dar, só atenta para as árvores esparsas que davam látex, comendo conservas e enlatados, de fato morrendo de fome e de beribéri.

No curso da Segunda Guerra Mundial, quando os aliados perderam acesso aos seringais plantados do Oriente, os seringais nativos da Amazônia foram de novo postos em produção. Outras multidões de nordestinos foram lá lançadas para sofrer e morrer da mesma miséria. Mas também para exterminar as tribos indígenas que sobreviviam nos altos dos rios, agora alcançados pela civilização, que escravizava os homens, roubava mulheres e crianças e saqueava as roças. Nisso, como em tudo, a civilização para a Amazônia é sempre uma praga – quanto mais grassa, mais destrói e mata.

A Amazônia brasileira, cobrindo 40% do nosso território, tem mais de 3 milhões de quilômetros quadrados, mas só retém 8% da população brasileira, ou seja, uns 12 milhões de caboclos e novos imigrantes recém-chegados. Metade dessa população se encontra principalmente em Belém e Manaus. Os índios se reduziram a 5% do que eram e hoje mal alcançam 100 mil. Esses poucos índios e alguns contados caboclos que permanecem na mata guardam parte da copiosa sabedoria adaptativa dos povos da floresta amazônica. É com base nela que se poderá implantar, amanhã, formas ecologicamente equilibradas de ocupação humana que permitam, no futuro, àquelas populações viverem da floresta, deixando-a viver. A característica distintiva das formas indígenas de adaptação e a sua incompatibilidade com o modo de vida da civilização mercantil. A incompatibilidade essencial das formas empresariais de ocupação da Amazônia e sua incapacidade de conviver com a floresta sem matá-la.

São exemplos disso as explorações de minérios do Amapá, o grande projeto capitalista do rio Jari, e, ultimamente, o complexo de Carajás. Em cada um deles foram aplicados muitíssimos milhões de dólares, que deram lugar a comunidades misérrimas, que podiam estar em qualquer parte do planeta, desenraizadas que são da floresta e de suas formas ecologicamente sustentáveis de ocupação.

A ditadura militar, que dominou o Brasil por 20 anos a partir de 1964, com a obsessão de se opor à reforma agrária proposta pelo governo que derrubou, loteou a Amazônia em imensos fazendões de 100 mil, de 500 mil e de 1 milhão de hectares dados a grandes empresas subsidiadas para derrubar a mata e transformá-la em capinzais, ou no que quisessem. O outro assalto ditatorial foi cortar a Amazônia de leste a oeste em enormes e improvisadas estradas rodoviárias. Os fazendões resultaram num desastre porque a terra, desnuda e queimada, exposta ao sol e às chuvas, converteu-se num areal pedregoso, em desertificação. As estradas foram prontamente consumidas pela floresta.

Essa loucura ecológica teve o mérito inesperado de chamar a atenção do mundo, com as gigantescas queimadas que acenderam, para a destruição da Amazônia e para o impiedoso genocídio das populações indígenas dela decorrente. A opinião pública encontrou modos de manifestar seu horror àquela hecatombe, contribuindo decisivamente para que o governo brasileiro aplacasse o furor incendiário. Não é verdade que aquelas queimadas pusessem em risco a vida do planeta, porque elas contribuíam com menos de 5% do CO² lançado na atmosfera. Elas eram graves, porém, por estarem destruindo o mais belo e portentoso jardim do planeta Terra.

Mas que ninguém duvide dessa capacidade destrutiva. Nos primeiros séculos, o Brasil conseguiu liquidar com a Floresta Atlântica, que cobria mais de 8 mil quilômetros de extensão ao longo da costa. E nos primeiros 50 anos deste século, arrasou com a floresta mais pujante que se conheceu, a do Vale do Rio Doce. Essas destruições foram realizadas por pobre gente, que derrubava a mata com machados e queimava com fósforos, em troca do direito de plantar nelas milho e feijão por três anos, até que o fazendeiro-proprietário surgisse para semear capim. Hoje, com drogas desfolhantes, com serras mecânicas, com grandes tratores atados com correntes náuticas, as florestas podem ser tombadas com ferocidade 50 a 100 vezes maior. É, portanto, perfeitamente possível acabar com o mundo imenso de verdor que é a Floresta Amazônica.

Dentre as formas de desflorestamento e destruição que estão em marcha, se destacam as queimadas para produzir carvão vegetal, com que se possa fundir o ferro-gusa. Esse é um fato tanto mais lamentável, porque uma exploração sensata da Floresta Amazônica, inclusive para produzir biomassa energética, poderia coexistir com a floresta e ocupar muita gente. Isso se aprendêssemos a explorá-la, sem destruí-la, como fazem há séculos os escandinavos.

Outra catástrofe é o represamento de águas para hidrelétricas na Planície Amazônica. A mais desastrosa delas, Balbina, inundou 3 mil quilômetros quadrados de matas para produzir menos de 200 MW de energia, que se podia obter com 5% da madeira inundada e perdida, que somava 3 milhões de metros cúbicos.

Uma outra agressão à Amazônia é a garimpagem de ouro, que ocupa e miserabiliza, talvez, meio milhão de pessoas. O extrativismo começou em Serra Pelada, há duas décadas, e logo se fez a maior exploração manual a céu aberto que jamais se viu.

Lá, mais de 100 mil garimpeiros produziam, anualmente, dez toneladas de ouro. Esgotado o mineral acessível, quando o buraco alcançou profundidade tal que se tornou impossível ir buscá-lo, lá, à mão, aquela multidão de garimpeiros se espalhou pelo Madeira, pelo Tapajós, indo até para Roraima, invadindo as terras dos Yanomami.

Esses índios constituem o último grupo silvícola que sobreviveu à brutalidade da expansão europeia. Eram, também, com seus 15 mil índios, o maior deles. Seu desgaste começou quando o presidente do próprio órgão de proteção aos índios do Brasil, a Funai, decidiu dar a cada um dos 14 subgrupos de Yanomami pequenas reservas, deixando toda a terra restante disponível para invasão por fazendeiros e garimpeiros. Estes entraram e rapidamente fizeram um arraso, tanto apodrecendo as águas com o mercúrio que utilizam no garimpo, como invadindo as aldeias, prostituindo as índias, roubando crianças e transmitindo as formas mais virulentas de malária e oncocercose.

O grave é que essas formas destrutivas de ação sobre a floresta são as que correspondem à economia da civilização. Ela não tem outra forma de lucrar com a mata, senão essa. Há, porém, formas outras, ecologicamente satisfatórias, de ocupação humana da Amazônia para os índios e para os caboclos. Essas nunca se puseram em prática, porque, no Brasil, índios e caboclos nunca tiveram e não têm direito a nada. Suas razões de fracos jamais foram ouvidas e há pouca esperança de que sejam.

Esse foi o caso do seringueiro Chico Mendes, assassinado porque queria enriquecer os seringais nativos com seringueiras plantadas para dar melhores condições de vida aos seringueiros. Outro era o plano dos seus assassinos, que ambicionavam aquelas terras dos velhos seringais do Acre tão só para usá-las na forma das empresas que o capitalismo amazonense e a civilização são capazes de criar, vale dizer, matando a mata para implantar grandes fazendas.

A maior ameaça que pesa sobre a Amazônia é que ela se oferece às crescentes populações brasileiras como uma fronteira aberta, sobre a qual tende a expandir-se. Isso significa que muitos milhões de pessoas, desalojadas pelo latifúndio e pelo minifúndio de suas regiões de origem, vão avançar Amazônia adentro. Se lá entrarem, sem qualquer preparo prévio, sem qualquer plano cuidadosamente experimentado de vivificação da floresta, só terá futuro a obra destrutiva.

Ultimamente, viemos todos tomando consciência de que o mundo é um único ecossistema interativo. Nele, terras e mares, ilhas e continentes, florestas e desertos, com suas floras e faunas, se integram numa interdependência simbiótica em que todos e cada um dependem de todos e de cada um. Nesse complexo vital, a imensa Amazônia se destaca, assinaladamente, como pedaço grande e precioso de nosso nicho, o planeta Terra, berço de todos os homens.

Em consequência, gente de todas as latitudes passou a se interessar e a dar opiniões sobre a Amazônia. Primeiro, culpando o desflorestamento e as queimadas pelo efeito estufa, que está esquentando perigosamente a Terra. O que não é verdade. Alguns ousados chegam a propor tutela nos países amazônicos, como se alguma nação do mundo houvesse preservado a natureza original de suas províncias. Outros, mais sensatos, falam da necessidade de uma cooperação internacional para ajudar na preservação desse jardim da Terra.

Apesar de muito desgastada por cinco séculos de civilização, a Amazônia ainda detém cerca de 1,5 milhão de quilômetros quadrados de floresta original intocada, que constitui o maior núcleo planetário de biodiversidade. Nele se abriga a metade dos seres vivos, distribuídos em milhões de espécies, que representam uma terça parte do estoque genético com que conta a humanidade. Constitui, assim, um imenso banco de germoplasma, de que dependeremos, cada vez mais, daqui para o futuro, tanto para a produção de fármacos essenciais, como de alimentos, de madeiras e de muita coisa mais.

Não contamos com outra reserva de vida para refazer, amanhã, a vida, se ela sofrer qualquer ameaça fatal das que são previsíveis, como a atômica e o efeito estufa, ou das imprevisíveis, e até de muitas hoje impensáveis, que podem sobrevir. Instituições diversas estão medindo, há décadas, as dimensões da devastação da Amazônia. Uns falam de 8%, outros falam de 12% a faixa já destruída. Dentro das avaliações mais moderadas, porém, admitem que se esteja destruindo uma Itália de floresta por ano.

A capacidade destrutiva da tecnologia moderna, que cresce cada vez mais, pode e até tende a nos conduzir a esse desastre. A principal arma contra ele, a principal tábua de salvação com que contamos, é, nada mais nada menos, que a opinião pública mundial. Já desperta para o jardim da Terra, ela reclama, às vezes, com base em argumentos errôneos, mas suas reclamações tendem a repercutir no mundo dos ricos, indiferente às vozes do mundo dos pobres.



(O Brasil como problema)



(Ilustração: Antonio Parreiras - conquista do Amazonas, 1907)