quinta-feira, 10 de outubro de 2024

LUCIEN CARR MATOU O AMIGO E O CRIME ESTEVE NA GÉNESE DA GERAÇÃO BEAT, de Isabel Lucas




Na madrugada de 13 de Agosto de 1944, um estudante da Universidade de Colúmbia e o seu mentor e protector, um homem 14 anos mais velho, envolveram-se numa discussão em Riverside Park, junto ao rio Hudson, perto do campus universitário, em Nova Iorque, e o mais novo acabou por atingir o mais velho no peito com dois golpes de navalha. São factos. Facto também é que o mais novo atou as mãos e os pés daquele que pensava ser já um cadáver, encheu-lhe os bolsos do fato de pedras e atirou-o ao rio. Outro facto: o rapaz terá corrido a pedir conselho sobre o que fazer a um grupo de amigos mais velhos - os futuros poetas da beat - e entregou-se às autoridades.

O rapaz de 19 anos seria condenado a 20 de prisão, mas acabou por passar apenas dois num centro de correcção e sair em liberdade aos 21. Chamava-se Lucien Carr, boa pinta, assediado pelos amigos homossexuais, admirado por todos pela sua cultura e sentido de humor, leitor compulsivo que apresentou os poemas de Rimbaud a outro amigo, Allen Ginsberg, e apresentou também Ginsberg a William S. Burroughs e os dois a Jack Kerouac. Sem saber, Carr esteve na génese do que viria a ser o núcleo da geração beat, mas o crime que cometeu afastou-o dela sem que nunca tivesse escrito um poema ou um texto segundo os critérios estilísticos desse grupo cuja regra de vida era não ter regras para a vida: seguir o impulso sem censura.

Lucien Carr é o centro do livro "escondido" que William S. Burroughs e Jack Kerouac escreveram em 1945, antes de publicarem o que quer que fosse, contando a sua versão do crime de Riverside Park, o policial e os hipopótamos cozeram nos seus tanques, agora editado em Portugal pela Quetzal e que a América só conheceu em 2008, depois da morte de Carr. Não é o grande livro de cada um, mas é o primeiro livro de um e de outro.

"Lucien Carr, com a sua paixão por Rimbaud, acabou, numa trágica ironia, por ser ele mesmo uma espécie de Rimbaud deste grupo, alguém que, ao se livrar do seu Verlaine, morreu para as artes antes da maioridade, mas permanecendo uma inspiração". Voz grave, estilo pausado, James W. Grauerholz, o executor testamentário de William S. Burroughs e amigo íntimo do autor de Naked Lunch, diz "olá" como quem diz holla. Está no Kansas, e quer fazer-se entender ao falar de um grupo e de uma história que o mudou também a ele. Diz-se fluente em espanhol, ensaia umas palavras em português, mas segue no seu sotaque cerrado a história de Carr que conheceu numa madrugada de copos em casa de Burroughs.

William S. Burroughs era o ídolo de James W. Grauerholz. Leu Naked Lunch com 14 anos e nunca mais deixou de seguir tudo o que Burroughs escreveu. Queria ser escritor e via ali o exemplo. "Em 1974, quando fui para Nova Iorque, recebi um telefonema de Allen Ginsberg. Dizia-me que Burroughs estava em Nova Iorque e queria conhecer-me; que precisava do um secretário. Deu-me o número dele e o meu herói convidou-me para jantar. Daí a umas semanas estava a viver com ele", conta-nos Grauerholz com o tom e o riso de quem narra umas memórias boas.

"Gostávamos um do outro e fomos íntimos durante algum tempo, mas eu precisava de estar com pessoas da minha idade e essa intimidada acabou tal como existia." Grauerholz tinha então 21 anos e Burroughs 60. Foi nesse período que conheceu Lucien Carr. Carr era editor da United Press. "Numa noite, muito tarde, tocaram à campainha, fui ver quem era e ouço uma voz a gritar: "O Burroughs está por aí?" Ele disse-lhe para entrar. Vestimo-nos à pressa. Lucien, bêbado, estava à procura do velho amigo e passámos o resto da noite a beber e a fumar. Achei-o muito divertido."

Voltaram a ver-se ao longo de décadas. Grauerholz e Burroughs deixaram de ser íntimos, mas nunca perderam a intimidade que Grauerholz compara à de um velho casal. Carr aparecia, mas não falava do que tinha acontecido na noite de 1944. "Acho natural. Tudo correu de forma muito má para Lucien. Ele continuava a gostar dos amigos, mas não queria fazer parte da visão beat", justifica sobre uma história que continua nebulosa e alimentou a imaginação e a obra dos amigos da Beat. Ele foi guardião dessa história e do livro que Burroughs escrevera com Kerouac, mas nunca fora publicado. Kerouac morrera em 1969. Burroughs ficou com o manuscrito, e quando nomeou Grauerholz seu executante testamentário pediu para que se cumprisse a vontade de Carr: que o livro só fosse publicado depois da morte do jornalista.

O que mais incomodava Carr não era, segundo Grauerholz, o facto de ter morto o seu companheiro e tutor, mas as alusões à sua homossexualidade. "Não é que Lucien Carr fosse homofóbico. Mas tinha construído uma vida depois daquele crime distante dos excessos desses dias. Tinha uma profissão, tinha casado duas vezes, tinha três filhos e era nesses papéis que queria ser conhecido."

Grauerholz regressa agora a um passado que não foi o dele, ao início da década de 40, quando Carr e Dave Kammerer eram inseparáveis. A história da relação de Lucian e Dave E. Kammerer vem sintetizada no posfácio de e os hipopótamos cozeram nos seus tanques pelo próprio Grauerholz. Está no livro com os protagonistas a terem outros nomes.

"Para quem acaba de chegar, eis os factos básicos: a relação entre Lucien Carr IV e David Kammerer começou em St. Louis, Missuri, em 1936, quando Lucien tinha 11 e Dave 25 anos. Oito anos, cinco estados, quatro escolas secundárias e duas faculdades mais tarde, a relação havia-se tornado demasiado intensa." O desenlace é o que se sabe ou se lerá, ou ainda se pode ver no filme Kill your Darlings, de John Krokidas, com Daniel Radcliffe, Ben Foster, Michael C. Hall. O filme tem estreia marcada para estes dias na América. "O guião é óptimo, alguns actores consultaram-me para construir as personagens. Estou curioso."

Feito o parêntesis, volta ao incómodo: "O William disse-me que estava certo de que eles nunca tinham tido nenhum contacto sexual. William conheceu Lucien era ele adolescente. Todos andavam pela Village. Dizia-me que ele tinha um intelecto precoce e Kammerer via nele um adorável protegé." Exemplo? Burroughs. Viu sempre nele um amigo leal logo desde o início. "Wiliam tinha emprestado o carro a Lucien para ele ir a St. Louis. Ele era de lá. A meio da viagem, houve um acidente. Lucien telefonou a William: "O teu carro está desfeito na estrada". Como resposta teve: "Ok, obrigada por me contares". Naquele dia impressionaram-se um ao outro e nunca mais deixaram de se respeitar.

Até ao fim. Burroughs morreu em 1997. Lucien Carr em 2005, vítima de cancro e quase desconhecido para o mundo. Cultivava a imagem do velho jornalista americano, "cínico, que bebia e fumava muito". Grauerholz sublinha o lado trágico da história de Carr. "Sim, era um Rimbaud. Os outros viveram a glória". Aquele que era "o mais inquieto" do grupo de rapazes, "uma força da natureza", "caleidoscópico" nos seus entusiasmos, o "talismã" do grupo que tinha em Kerouac o mais tranquilo, em Ginsberg a curiosidade, e o punchline em Burroughs "pagou um preço". "No fim da vida, se lhe perguntassem como queria ser lembrado, julgo que como um grande jornalista", arrisca James W. Grauerholz. Como era ele, afinal? "Não há um Lucien Carr. Há uma figura ambígua. É um exemplo de como alguém pode sobreviver à infância. Ele conseguiu uma segunda vida e viveu-a. É mau que depois de ter resgatado a sua vida ao caos, tenha sido um jornalista não muito conhecido e a infelicidade de ser apenas lembrado como o jovem que cometeu um crime... Mas, isto é a América. É a vida. Como eles eram? Está tudo em On The Road (1957)."



(Ilustração: Carr, Burroughs e Ginsberg; foto da internet sem indicação de autoria)

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