terça-feira, 22 de outubro de 2024

VOCÊ NÃO QUER VER OS GATINHOS?, de Toni Morrison

 




Elas vêm de Mobile. Aiken. De Newport News. De Marietta. De Meridian. E o som desses nomes em sua boca faz pensar em amor. Quando a gente pergunta de onde são, inclinam a cabeça, dizem “Mobile” e a gente pensa que ganhou um beijo. Dizem “Aiken” e vê-se uma borboleta branca roçar numa cerca com uma asa rasgada. Dizem “Nagadoches” e você tem vontade de dizer “Sim, aceito”. Você não sabe como são essas cidades, mas adora o que acontece com o ar quando elas abrem os lábios e dizem os nomes.

Meridian. O som da palavra abre as janelas de uma sala, como as quatro primeiras notas de um hino. Poucas pessoas podem dizer o nome de sua cidade natal com tanta afeição dissimulada. Talvez porque não tenham uma cidade natal, só um lugar onde nasceram. Mas essas garotas absorvem o sumo de sua cidade natal, que nunca as deixa. São garotas magras de pele parda que olharam muito tempo para alteias nos quintais de Meridian, Mobile, Aiken e Baton Rouge. E, assim como as alteias, elas são esguias, altas e quietas. Têm raízes profundas, a haste firme, e só a flor, no alto, balança ao vento. Têm os olhos de quem é capaz de dizer a hora pela cor do céu. Essas garotas moram em bairros negros tranquilos, onde todo mundo tem emprego bem remunerado. Onde, nas varandas, há balanços pendendo de correntes. Onde a grama é cortada com uma foice, onde crescem cristas-de-galo e girassóis nos jardins, e vasos de corações-ardentes e hera se alinham nos degraus e no parapeito das janelas. Essas garotas compram melão e feijão na carroça do verdureiro. Colocam na janela um aviso escrito em papelão para o vendedor de gelo, informando quanto gelo querem, quando querem. Essas garotas pardas de Mobile e Aiken não são como algumas de suas irmãs. Não são mal-humoradas, nervosas nem estridentes; não têm belos pescoços negros que se esticam como se forçassem uma coleira invisível; seus olhos não mordem. Essas garotas cor de açúcar mascavo, de Mobile, andam pelas ruas sem chamar a menor atenção. São doces e sem graça como pão de ló. Tornozelos delgados, pés longos e finos. Lavam-se com sabonete Lifebuoy cor de laranja, usam talco Cashmere Bouquet, limpam os dentes com sal num pedaço de pano, amaciam a pele com loção Jergens. Cheiram a madeira, jornal e baunilha. Alisam o cabelo com Dixie Peach e o repartem de lado. À noite, enrolam o cabelo em papelotes pardos, amarram um lenço estampado na cabeça e dormem com as mãos cruzadas sobre o estômago. Não bebem, não fumam nem dizem palavrões, e ainda chamam sexo de “nookey”[*]. São segundo soprano no coral e, embora tenham a voz clara e firme, nunca são escolhidas para solar. Ficam na segunda fila, de blusa branca engomada, saia azul, quase roxa do ferro de passar.

Estudam em faculdades subvencionadas pelo governo federal, cursam a escola normal e aprendem a fazer o trabalho do branco com refinamento: economia doméstica para preparar a comida dele; pedagogia para ensinar crianças negras a obedecer; música para aliviar o cansaço do patrão e entreter-lhe a alma embotada. Ali elas aprendem o resto da lição iniciada naquelas casas tranquilas com balanços na varanda e vasos de corações ardentes: como se comportar. O cuidadoso desenvolvimento de parcimônia, paciência, princípios morais e boas maneiras. Numa palavra, como se livrar da catinga. A horrível catinga das paixões, a catinga da natureza, a catinga da vasta gama de emoções humanas.

Apagam a catinga onde quer que ela irrompa; dissolvem-na onde quer que se encroste; onde quer que goteje, floresça ou se agarre, elas a encontram e a combatem até destruí-la. Travam essa batalha até o fim, até o túmulo. A risada que é um tanto alta demais; a pronúncia um tanto arredondada demais; o gesto um tanto generoso demais. Contraem o traseiro com medo de um balanço demasiado livre; quando usam batom, nunca cobrem a boca inteira, com medo de que os lábios fiquem grossos demais, e preocupam-se, preocupam-se, preocupam-se com as pontas do cabelo.

Nunca parecem namorar, mas sempre se casam. Certos homens as observam, sem dar a impressão de fazer isso, e sabem que, com uma garota assim em casa, vão dormir em lençóis fervidos para branquear, pendurados para secar em pés de zimbro e passados com um ferro pesado. Haverá lindas flores de papel decorando a fotografia da mãe dele e uma grande Bíblia na sala da frente. Eles se sentem seguros. Sabem que sua roupa de trabalho estará remendada, lavada e passada na segunda-feira; que a camisa de domingo, branca e dura de goma, estará no cabide pendurado no umbral da porta. Olham para as mãos dela e sabem o que ela fará com massa de biscoito; sentem o cheiro do café e do presunto frito; veem o pão branco de farinha grossa, fumegante, com um naco de manteiga em cima. Os quadris lhes garantem que elas terão filhos com facilidade e sem dor. E eles têm razão.

O que esse homem não sabe é que essa garota parda e sem graça vai construir seu ninho graveto por graveto, transformá-lo em seu mundo inviolável e montar guarda sobre cada planta, erva daninha e toalhinha que haja ali, mesmo contra o marido. Em silêncio, levará o lampião de volta ao lugar que ela decidiu que é o dele; vai tirar os pratos da mesa assim que o último bocado for comido; limpará a maçaneta da porta depois que uma mão engordurada a tiver tocado. Uma olhada de esguelha será o bastante para dizer a ele que vá fumar na varanda dos fundos. As crianças vão sentir instantaneamente que não podem entrar no jardim dela para pegar a bola que caiu ali. Mas o homem não sabe essas coisas. Assim como não sabe que ela lhe dará o corpo com parcialidade. Ele deve penetrá-la sub-repticiamente, erguendo-lhe a camisola só até o umbigo. Quando faz amor, deve sustentar o próprio peso nos cotovelos, em princípio para não machucar os seios dela, mas na verdade para que ela não tenha que tocá-lo nem senti-lo muito.

Enquanto ele se move dentro dela, ela estará pensando por que não puseram as partes necessárias mas íntimas do corpo num lugar mais conveniente — na axila, por exemplo, ou na palma da mão. Um lugar que se pudesse atingir com facilidade, com rapidez, sem tirar a roupa. Ela se enrijece quando sente um dos papelotes no cabelo se soltar como resultado da atividade do amor; guarda na memória qual é que está se soltando, para poder prendê-lo logo, assim que ele terminar. Espera que ele não sue — a umidade pode passar para o cabelo dela; e que permaneça seca entre as pernas — odeia o som molhado que elas fazem quando está úmida. Ao sentir que ele está prestes a ser dominado por um espasmo, ela fará movimentos rápidos com os quadris, apertará as unhas contra as costas dele, prenderá a respiração e fingirá que está tendo um orgasmo. Talvez se pergunte, pela milésima vez, como seria ter aquela sensação enquanto o pênis do marido está dentro dela. O mais próximo disso que ela sentiu foi na ocasião em que a toalhinha absorvente se soltou da calcinha higiênica, movendo-se suavemente por entre suas pernas enquanto ela andava. Suavemente, muito suavemente. E então uma sensação leve e nitidamente deliciosa começou a se intensificar entre suas pernas. Como o prazer aumentou, ela teve que parar na rua e apertar as coxas para contê-lo. Deve ser assim, pensa ela, mas nunca acontece enquanto ele está dentro dela. Quando ele retira o membro, ela baixa a camisola, levanta e vai para o banheiro, aliviada.

De vez em quando, alguma coisa viva lhe cativará a afeição. Um gato, talvez, que vai adorar sua ordem, precisão e constância; que será tão limpo e silencioso quanto ela. O gato se acomodará quietamente no parapeito da janela e vai acariciá-la com os olhos. Ela poderá tomá-lo nos braços, deixando as patas traseiras se agitar para se apoiar nos seios dela e as dianteiras agarrar-se ao seu ombro. Poderá alisar o pelo macio e sentir por baixo a carne que não opõe resistência. Ao mais leve de seus toques, ele vai se espreguiçar e abrir a boca. E ela aceitará a sensação estranhamente agradável que vem quando ele se contorce sob sua mão e aperta os olhos num excesso de prazer sensual. Quando ela estiver em pé na cozinha, preparando comida, ele andará em torno das canelas dela, e a vibração do pelo dele lhe subirá em espirais pelas pernas até as coxas, fazendo os dedos tremer um pouco na massa da torta.

Ou enquanto ela estiver sentada, lendo os “Pensamentos edificantes” na Liberty Magazine, o gato pulará para o seu colo. Ela acariciará aquele monte macio de pelos e deixará o calor do corpo do animal ir penetrando as áreas profundamente privadas do seu colo. Às vezes a revista cairá e ela abrirá as pernas, só um pouquinho, e os dois ficarão imóveis juntos, talvez movendo-se um pouco juntos, dormindo um pouco juntos, até as quatro da tarde, quando o intruso chegará do trabalho, vagamente preocupado com o que há para o jantar.

O gato sempre saberá que é o primeiro nos afetos dela. Mesmo depois de ela ter um bebê. Porque ela terá um bebê — facilmente, sem dor. Mas só um. Um menino. Chamado Júnior.

Uma dessas garotas de Mobile, Meridian ou Aiken, que não transpirava nas axilas nem entre as coxas, que cheirava a madeira e a baunilha, que fazia suflês no departamento de Economia Doméstica, mudou-se com o marido, Louis, para Lorain, em Ohio. Chamava-se Geraldine. Lá ela construiu o ninho, passou camisas, plantou corações ardentes, brincou com o gato e teve Louis Júnior.

Geraldine não permitia que o bebê, Júnior, chorasse. Enquanto as necessidades dele fossem físicas, ela podia atendê-las — conforto e saciedade. Ele estava sempre escovado, banhado, oleado e vestido. Geraldine não falava com ele, não lhe dizia palavrinhas meigas nem o cobria de beijos súbitos, mas providenciava para que todos os outros desejos fossem satisfeitos. Não levou muito tempo para o menino descobrir a diferença no comportamento da mãe em relação a ele e ao gato. Foi crescendo e aprendendo a dirigir para o gato o ódio que sentia da mãe, e passou alguns momentos felizes vendo-o sofrer. O gato sobreviveu, porque Geraldine raramente saía de casa e acudia o animal quando Júnior o maltratava.

Geraldine, Louis, Júnior e o gato moravam ao lado do pátio da escola Washington Irving. Júnior considerava o pátio como seu, e os outros garotos tinham inveja da sua liberdade de dormir até mais tarde, ir almoçar em casa e dominar o pátio depois das aulas. Ele odiava ver vazios os balanços, escorregadores, barras fixas e gangorras, e tentava fazer os meninos ficarem por ali o máximo possível. Meninos brancos; a mãe não gostava que ele brincasse com pretinhos. Ela lhe havia explicado a diferença entre mulatos e pretos. Era fácil identificá-los. Os mulatos eram limpos e silenciosos; os pretos eram sujos e barulhentos. Ele pertencia ao primeiro grupo: usava camisas brancas e calças azuis; cortava o cabelo o mais rente possível para evitar qualquer sugestão de carapinha e a risca era desenhada pelo barbeiro. No inverno a mãe passava loção Jergens no rosto dele para que a pele não ficasse cinzenta. Embora fosse clara, a pele podia ficar cinzenta. A linha entre mulato e preto nem sempre era nítida; sinais sutis e reveladores ameaçavam erodi-la e era preciso estar constantemente atento.

Júnior morria de vontade de brincar com os meninos negros. Mais do que qualquer outra coisa, queria brincar de rei da montanha, que o empurrassem monte de terra abaixo e rolassem por cima dele. Queria sentir-lhes a rigidez comprimindo-se contra ele, sentir o cheiro da negritude rebelde deles e dizer “Foda-se” com aquela deliciosa naturalidade. Queria sentar com eles na calçada e comparar o fio dos canivetes, a distância e o arco das cusparadas. No banheiro, queria compartilhar com eles os louros de ser capaz de fazer xixi de longe e por muito tempo. Em certa época Bay Boy e P.L. foram seus ídolos. Aos poucos acabou concordando com a mãe que nenhum dos dois era bom o suficiente para ele. Só brincava com Ralph Nisensky, que era dois anos mais novo, usava óculos e não queria fazer nada. Júnior gostava cada vez mais de intimidar meninas. Era fácil fazê-las gritar e sair correndo. Como ele ria quando elas caíam e as calcinhas apareciam. Quando se levantavam de rosto vermelho e contraído, ele se sentia bem. Não amolava muito as meninas negras. Elas geralmente andavam em bandos, e uma vez, quando ele atirou uma pedra em algumas delas, todas correram atrás dele, pegaram-no e lhe deram uma surra das feias. Ele mentiu para a mãe, dizendo que tinha sido Bay Boy. A mãe ficou muito aborrecida. O pai se limitou a continuar lendo o Journal de Lorain.

Quando lhe dava na veneta, chamava qualquer menino que estivesse passando para brincar nos balanços ou na gangorra. Se o menino não quisesse, ou quisesse mas fosse embora cedo demais, Júnior jogava pedrinhas nele. Adquiriu uma ótima pontaria.

Como em casa alternava o tédio com o medo, o pátio era a sua alegria. Num dia em que estava especialmente à toa, viu uma menina muito preta cortar caminho pelo pátio. Ia de cabeça baixa. Ele já a tinha visto muitas vezes no recreio, sozinha, sempre sozinha. Ninguém nunca brincava com ela. Provavelmente porque ela é muito feia, pensou ele.

Júnior chamou-a. “Ei! O que é que você está fazendo, atravessando o meu pátio?” A menina parou.

“Ninguém pode passar por este pátio se eu não deixar.”

“O pátio não é seu. É da escola.” “Mas eu é que mando aqui.” A menina se pôs a andar de novo.

“Espere.” Júnior foi até ela. “Você pode brincar aqui, se quiser. Como você se chama?”

“Pecola. Eu não quero brincar.”

“Vamos. Eu não vou amolar você.”

“Tenho que ir para casa.”

“Quer ver uma coisa? Tenho uma coisa para te mostrar.”

“Não. O que é?”

“Vamos até lá em casa. Olha, eu moro logo ali. Vamos. Eu te mostro.”

“Mostra o quê?”

“Uns gatinhos. A gente tem gatinhos. Você pode ficar com um, se quiser.”

“Gatinhos de verdade?”

“É. Vamos.”

Ele puxou de leve o vestido dela. Pecola começou a andar na direção da casa. Quando percebeu que ela havia concordado, Júnior correu na frente, entusiasmado, parando só para gritar para ela que andasse logo. Segurou a porta para ela, todo sorrisos e encorajamento. Pecola subiu os degraus da varanda e hesitou, com medo de entrar. A casa parecia escura. Júnior disse: “Não tem ninguém em casa. Minha mãe saiu e meu pai está trabalhando. Você não quer ver os gatinhos?”.

Júnior acendeu as luzes. Pecola atravessou a porta.

Que bonito, pensou. Que casa bonita. Havia uma grande Bíblia vermelha e dourada em cima da mesa da sala de jantar. Por toda parte havia toalhinhas de renda — sobre os braços e o encosto das poltronas, no centro de uma grande mesa de jantar, sobre mesinhas. Nos parapeitos de todas as janelas havia vasos de plantas. Numa parede pendia uma imagem colorida de Jesus Cristo, com as mais bonitas flores de papel presas na moldura. Ela queria ver tudo bem devagarinho. Mas Júnior não parava de dizer: “Ei, você. Vamos, vamos”. Empurrou-a para outra sala, ainda mais bonita do que a primeira. Mais toalhinhas, um grande abajur com base verde e dourada e cúpula branca. Havia até um tapete no chão, com flores vermelho-escuras enormes. Ela estava em profunda admiração das flores, quando Júnior disse: “Olhe!”. Pecola se virou. “Aqui está o seu gatinho!”, guinchou ele. E jogou um grande gato preto bem no rosto dela. Ela prendeu a respiração, de medo e surpresa, e sentiu pelo na boca. O gato arranhou-lhe o rosto e o peito num esforço para se endireitar e pulou com agilidade para o chão.

Júnior ria e, deliciado, corria pela sala, segurando o estômago. Pecola tocou o arranhão no rosto e sentiu que as lágrimas estavam vindo. Quando começou a se encaminhar para a porta, Júnior deu um salto e parou na frente dela.

“Você não pode sair. É minha prisioneira”, disse. O olhar era alegre, mas duro.

“Me deixa sair.”

“Não!” Deu-lhe um empurrão, saiu pela porta que separava as salas, fechou a porta e ficou segurando. Pecola se pôs a bater na porta e, quanto mais ela batia, mais alta e arquejante se tornava a gargalhada dele.

As lágrimas vieram rápido, e ela cobriu o rosto com as mãos. Quando uma coisa macia e peluda se moveu em torno de seus tornozelos, ela deu um pulo e viu que era o gato. Ele se enroscou em suas pernas. Momentaneamente distraída do medo, agachou-se para tocá-lo, com as mãos úmidas de lágrimas. O gato esfregou-se contra o joelho dela. Era todo preto, um preto intenso e sedoso, e seus olhos, apontando para o focinho, eram verde-azulados. A luz fazia-os brilhar como gelo azul. Pecola alisou a cabeça do gato; ele choramingou, movendo a língua com prazer. Os olhos azuis na cara preta a fitavam.

Júnior, curioso por não ouvir os soluços dela, abriu a porta e viu-a agachada, afagando a cabeça do gato. Viu o gato esticando a cabeça e estreitando os olhos. Tinha visto aquela expressão muitas vezes quando o animal reagia ao toque de sua mãe.

“Dá aqui esse gato!” A voz dele falhou. Com um movimento ao mesmo tempo desajeitado e certeiro, agarrou o gato por uma perna traseira e começou a girá-lo em torno da cabeça.

“Para com isso!”, gritou Pecola. As patas livres do gato estavam rijas, prontas para agarrar qualquer coisa que lhe devolvesse o equilíbrio, a boca escancarada, os olhos azuis eram riscas de pavor.

Ainda gritando, Pecola se esticou para pegar a mão de Júnior. Ouviu o vestido rasgar embaixo do braço. Júnior tentou empurrá-la para longe, mas ela segurou-lhe o braço que girava o gato. Os dois caíram e, na queda, Júnior largou o gato. Solto em pleno movimento, o animal foi atirado com toda a força contra a janela. Resvalou e caiu em cima do aquecedor, atrás do sofá. Estremeceu algumas vezes e ficou imóvel. Sentia-se apenas um leve cheiro de pelo chamuscado.

Geraldine abriu a porta.

“O que é isso?” Voz suave, como se fosse uma pergunta muito natural. “Quem é essa menina?”

“Ela matou o nosso gato”, disse Júnior. “Olha.” Apontou para o aquecedor, onde o gato jazia, com os olhos azuis fechados, deixando apenas uma cara preta, vazia e indefesa.

Geraldine foi até o aquecedor e pegou o gato. O animal ficou largado em seus braços, mas ela esfregou o rosto contra o pelo dele. Olhou para Pecola. Viu o vestido sujo rasgado, as tranças espetadas na cabeça, o cabelo emaranhado nos pontos onde as tranças estavam desfeitas, os sapatos enlameados com um chiclete aparecendo por entre as solas baratas, as meias sujas, uma das quais engolida pelo calcanhar do sapato. Viu o alfinete de gancho prendendo a barra do vestido. Por sobre a corcova das costas do gato, olhou para ela. A vida toda tinha visto aquela menina. Paradas diante das vidraças dos bares em Mobile, engatinhando em varandas de casas toscas na periferia da cidade, sentadas em estações de ônibus segurando sacos de papel e gritando para mães que não paravam de dizer “Cala a boca!”. Cabelo despenteado, vestidos rasgados, sapatos desamarrados e empastados de sujeira. Elas a haviam fitado com grandes olhos incompreensivos. Olhos que não questionavam nada e perguntavam tudo. Sem piscar, despudoradamente, elas a fitavam. Tinham nos olhos o fim do mundo, o começo e todo o vazio entre uma coisa e outra.

Elas estavam por todo lado. Dormiam seis amontoadas, a urina de todas misturando-se durante a noite quando molhavam a cama, cada uma sonhando seu sonho de doces e batatinhas fritas. Nos dias longos e quentes, ficavam à toa, tirando reboco das paredes e cutucando a terra com paus. Sentavam-se em pequenas fileiras nas calçadas, amontoavam-se nos bancos da igreja, tirando espaço das crianças mulatas, bonitas e limpas; faziam palhaçadas nos playgrounds, quebravam coisas em lojas baratas, corriam na frente da gente na rua, faziam pistas de gelo nas calçadas inclinadas no inverno. As meninas cresciam sem saber usar uma cinta e os meninos anunciavam que tinham atingido a idade viril virando para trás a aba do boné. Nos lugares onde elas moravam não crescia grama. As flores morriam. Abatiam-se sombras. Floresciam latas e pneus onde elas moravam. Viviam de feijão-fradinho frio e refrigerante de laranja. Como moscas, elas esvoaçavam; como moscas, pousavam. E esta pousara em sua casa. Por sobre a corcova das costas do gato, ela olhava.

“Fora”, disse, em voz baixa. “Sua negrinha ordinária. Fora da minha casa.”

O gato estremeceu e sacudiu o rabo.

Pecola recuou, olhando fixo para a bela senhora cor de café com leite, na bela casa verde e dourada, que falava com ela por entre o pelo do gato. As palavras da senhora bonita fizeram o pelo do gato se mexer; o sopro de cada palavra separou os pelos. Virou-se para achar a porta da frente e viu Jesus que a mirava com olhos tristes e sem surpresa, o longo cabelo castanho repartido no meio, as alegres flores de papel retorcidas em torno de seu rosto.

Lá fora, o vento de março entrou-lhe pelo rasgão no vestido. Pecola abaixou a cabeça contra o frio. Mas não conseguiu abaixá-la o suficiente para não ver os flocos de neve que caíam e morriam na calçada.



[*] Termo vulgar, mas aceitável para “ato sexual”, talvez derivado de nook, “esconderijo”, “recesso”. (N. T.)



(O olho mais azul; tradução de Manoel Paulo Ferreira)



(Ilustração: Philemona Williamson - red buckled shoes, 2014)

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