quinta-feira, 30 de novembro de 2023

A ERA DA AGONIA, de Lindsay Fitzharris

 



“Quando um cientista eminente mas idoso afirma que uma coisa é possível, é quase certo que tenha razão. Quando afirma que algo é impossível, é quase certo que esteja enganado.”[1]

 

— ARTHUR C. CLARKE

 

NA TARDE DE 21 de dezembro de 1846, centenas de homens lotaram o anfiteatro cirúrgico do University College Hospital de Londres (UCL), onde o cirurgião mais famoso da cidade se preparava para fasciná-los com uma amputação na altura do meio da coxa. À medida que entravam, as pessoas não tinham a menor ideia de que estavam prestes a assistir a um dos momentos mais cruciais da história da medicina.

O anfiteatro estava abarrotado de estudantes de medicina e espectadores curiosos, muitos dos quais haviam arrastado consigo para o recinto a sujeira e a fuligem do dia a dia da Londres vitoriana. O cirurgião John Flint South comentou que a correria e os empurrões para conseguir um lugar num anfiteatro cirúrgico não diferiam dos observados na disputa por assentos na plateia ou na galeria dos teatros.[2 ] As pessoas se amontoavam como sardinha em lata, e as que ocupavam as últimas fileiras se acotovelavam constantemente para conseguir um ângulo melhor, gritando “Abaixem a cabeça!” toda vez que sua visão era bloqueada.[3] Em algumas ocasiões, a plateia desses anfiteatros ficava tão cheia que o cirurgião era impossibilitado de operar, e o espaço precisava ser parcialmente esvaziado. Embora fosse inverno, a atmosfera no anfiteatro era abafada, beirando o insuportável. Com as pessoas amontoadas, o lugar ficava num calor infernal.

A plateia era formada por um grupo eclético de homens, alguns dos quais não eram profissionais nem estudantes de medicina.[4] Tradicionalmente, as duas primeiras fileiras de um anfiteatro cirúrgico eram ocupadas por “assistentes hospitalares”, termo que se referia àqueles que acompanhavam os cirurgiões em suas rotinas, carregando caixas com os suprimentos necessários para fazer curativos. Atrás dos assistentes ficavam os alunos, empurrando-se e cochichando uns com os outros, inquietos, além de convidados de honra e outros membros do público.

O voyeurismo médico nada tinha de novo. Surgira nos anfiteatros de anatomia mal iluminados do Renascimento, onde, diante de espectadores fascinados, os corpos de criminosos executados eram submetidos à dissecação, como um castigo adicional por seus crimes. Os presentes, munidos de ingressos, observavam os anatomistas cortarem o ventre distendido de cadáveres em decomposição, de cujos órgãos jorravam não apenas sangue, mas também o pus fétido.[5] Às vezes, as notas cadenciadas mas incongruentes de uma flauta acompanhavam a macabra demonstração. As dissecações públicas eram apresentações teatrais, uma forma de entretenimento tão popular quanto as rinhas de galo ou o açulamento de cães contra ursos aprisionados. Nem todos, porém, tinham estômago para elas. O filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, por exemplo, disse o seguinte sobre essa experiência: “Que visão terrível é um anfiteatro de anatomia! Cadáveres fétidos, a carne lívida e purulenta, sangue, intestinos repulsivos, esqueletos medonhos, vapores pestilentos! Acreditem, não é um lugar em que eu vá para procurar diversão.”[6]

 

O anfiteatro cirúrgico do University College Hospital era mais ou menos igual aos outros da cidade. Consistia num palco parcialmente cercado por uma arquibancada semicircular, cujos degraus subiam em direção a uma grande claraboia que iluminava a área abaixo. Nos dias em que nuvens carregadas bloqueavam a luz solar, o palco era iluminado por velas grossas. No centro do aposento ficava uma mesa de madeira, manchada por sinais reveladores de carnificinas anteriores. Embaixo dela, o piso era coberto de serragem, para absorver o sangue que logo brotaria do membro amputado. Na maioria dos dias, os gritos dos que se debatiam sob a faca se misturavam numa sinfonia dissonante com os sons corriqueiros que vinham da rua: crianças rindo, gente conversando, charretes ribombando ao passar.

Na década de 1840, a cirurgia era um trabalho imundo, repleto de perigos ocultos, que deveria ser evitada a todo custo. Em função dos riscos, muitos cirurgiões se recusavam categoricamente a operar, optando, em vez disso, por restringir sua alçada ao tratamento de problemas externos, como doenças de pele e ferimentos superficiais. Os procedimentos invasivos eram muito raros, uma das razões por que tantos espectadores compareciam aos anfiteatros cirúrgicos em dias de procedimento. Em 1840, por exemplo, apenas 120 operações foram realizadas na Royal Infirmary de Glasgow.[7] A cirurgia era sempre o último recurso, realizada apenas em casos de vida ou morte.

O médico Thomas Percival recomendava aos cirurgiões que trocassem de avental e limpassem a mesa e os instrumentos entre as cirurgias, não por medida de higiene, mas para evitar “tudo que possa incitar pavor”.[8] Poucos, no entanto, seguiam o conselho. O cirurgião, usando um avental imundo de sangue, raras vezes lavava as mãos ou os instrumentos, e empestava o anfiteatro com o cheiro inconfundível de carne em putrefação, que os profissionais da área chamavam animadamente de “a boa e velha fedentina hospitalar”.

Numa época em que os cirurgiões achavam que o pus era parte natural do processo curativo, e não um sinal sinistro de sépsis, a maioria das mortes decorria de infecções pós-operatórias. Ou seja, os anfiteatros cirúrgicos eram portais para a morte. Era mais seguro fazer uma operação em casa do que num hospital, onde os índices de mortalidade eram de três a cinco vezes mais altos do que no ambiente doméstico. Ainda em 1863, Florence Nightingale declarou: “A mortalidade real nos hospitais, sobretudo naqueles em cidades grandes e populosas, é muito maior do que nos levaria a imaginar qualquer cálculo baseado na mortalidade dos mesmos tipos de doenças entre pacientes tratados fora do hospital.”[9] Ser tratado em casa, entretanto, era dispendioso.

As infecções e a imundície não eram os únicos problemas; a cirurgia era muito dolorosa. Durante séculos, as pessoas buscaram maneiras de diminuir o sofrimento nesses procedimentos. Embora o óxido nitroso tivesse sido reconhecido como um analgésico eficiente desde que o químico Joseph Priestley o havia sintetizado pela primeira vez, em 1772, o “gás hilariante” não era normalmente usado nas cirurgias, porque seus resultados não eram confiáveis. O mesmerismo — baseado no médico alemão Franz Anton Mesmer, que inventou essa técnica hipnótica na década de 1770 — também não fora aceito na prática da corrente dominante da medicina no século XVIII. Mesmer e seus seguidores achavam que, ao moverem as mãos diante dos pacientes, gerava-se um tipo de influência física sobre eles. Essa influência provocava mudanças fisiológicas positivas, que ajudavam os pacientes a sarar, e também podia imbuir as pessoas de poderes psíquicos. A maioria dos médicos não se convencia de sua eficácia.

O mesmerismo gozou de um breve ressurgimento na Grã-Bretanha dos anos 1830, quando o médico John Elliotson começou a realizar demonstrações públicas no University College Hospital nas quais duas de suas pacientes, Elizabeth e Jane O’Key, conseguiram prever o destino de outros pacientes do hospital. Sob a influência hipnótica de Elliotson, elas afirmaram ver o “Big Jacky” (a morte) pairando sobre os leitos dos que viriam a falecer. No entanto, qualquer interesse sério despertado pelos métodos de Elliotson teve curta duração. Em 1838, ao induzir as irmãs O’Key a confessarem sua fraude, o editor da revista The Lancet — o maior periódico médico do mundo — denunciou Elliotson como charlatão.

O gosto amargo desse escândalo ainda estava fresco na memória dos que compareceram ao University College Hospital na tarde de 21 de dezembro, quando o renomado cirurgião Robert Liston anunciou que testaria a eficácia do éter em seu paciente. “Senhores, hoje vamos experimentar um truque ianque para deixar os homens insensíveis!”, declarou, enquanto se dirigia ao centro do palco.[10] O silêncio desceu sobre o anfiteatro quando ele começou a falar. Tal como o mesmerismo, o uso do éter era visto como uma técnica estrangeira suspeita, usada para colocar as pessoas num estado de consciência suavizado. Era chamado de “truque ianque” por ter sido usado como anestésico geral, pela primeira vez, nos Estados Unidos. Oficialmente, porém, fora descoberto em 1275, embora seus efeitos entorpecentes só tivessem sido sintetizados em 1540, quando o botânico e químico alemão Valerius Cordus criou uma fórmula revolucionária, que envolveu o acréscimo de ácido sulfúrico ao álcool etílico. Seu contemporâneo Paracelso fez experiências com éter em galinhas e notou que, quando bebiam esse líquido, as aves caíam num sono prolongado e despertavam ilesas. Ele concluiu que a substância “acalma todo o sofrimento, sem nenhum prejuízo, e alivia todas as dores, aplaca todas as febres e previne complicações em todas as enfermidades”.[11] Mesmo assim, o éter só seria testado em humanos centenas de anos depois.

Esse momento veio em 1842, quando Crawford Williamson Long se tornou o pioneiro no uso de éter como anestésico geral ao retirar um tumor do pescoço de um paciente na cidade de Jefferson, estado da Geórgia. Infelizmente, Long só publicou os resultados de seus experimentos em 1848. Na ocasião, o dentista bostoniano William T.G. Morton já tinha ganhado fama, em setembro de 1846, ao usá-lo numa extração dentária num paciente. Uma descrição desse procedimento bem-sucedido e indolor tinha sido publicada num jornal, o que levara um cirurgião eminente a pedir que Morton o auxiliasse numa operação para retirada de um grande tumor no maxilar inferior de um paciente, no Massachusetts General Hospital.

Em 18 de novembro de 1846, o dr. Henry Jacob Bigelow escreveu sobre esse momento inovador no Boston Medical and Surgical Journal: “Faz muito tempo que um problema importante da ciência médica é conceber um método para atenuar a dor das cirurgias. Descobriu-se, finalmente, um agente eficaz para esse propósito.”[12 ] Bigelow descreveu, então, como Morton havia administrado o que chamava de “Letheon” ao paciente antes de iniciar a cirurgia. Tratava-se de um gás cujo nome era inspirado no rio Lete. Segundo a mitologia clássica, as águas do Lete faziam as almas dos mortos esquecerem sua vida terrestre. Morton, que havia patenteado a composição do gás logo depois da operação, manteve em segredo seus componentes, ocultando-os inclusive dos cirurgiões. Bigelow, no entanto, revelou ter detectado no produto o cheiro enjoativo e doce do éter. A notícia sobre essa substância milagrosa, capaz de deixar os pacientes inconscientes durante a cirurgia, espalhou-se rapidamente pelo mundo, à medida que os cirurgiões se apressavam para testar os efeitos do éter em seus pacientes.

 

Notas:

1. Arthur C. Clarke, Profiles of the Future (Londres: Victor Gollancz Ltd., 1962), p. 25 [Perfil do Futuro, Petrópolis: Vozes, col. Presença do Futuro, 1970].

2. John Flint South, Memorials of John Flint South: Twice President of the Royal College of Surgeons, and Surgeon to St. Thomas’s Hospital, collected by the Reverend Charles Lett Feltoe (Londres: John Murray, 1884), p. 27.

3. Ibid., pp. 127-28, 160.

4. Ibid., p. 127.

5. Paolo Mascagni, Anatomia universa XLIV (Pisa: Capurro, 1823), citado em Andrew Cunningham, The Anatomist Anatomis’d: An Experimental Discipline in Enlightenment Europe (Farnham, Reino Unido: Ashgate, 2010), p. 25.

6. Jean-Jacques Rousseau, “Seventh Walk”, in Reveries of the Solitary Walker, (Harmondsworth, Reino Unido: Penguin, 1979), p. 114, citado em Cunningham, The Anatomist Anatomis’d, op. cit., p. 25 [Jean-Jacques Rousseu, Os devaneios do caminhante solitário, trad., introdução e notas de Fulvia Maria Luiza Moretto, São Paulo/Brasília: Hucitec/Ed. UnB, c. 1986].

7. J.J. Rivlin, “Getting a Medical Qualification in England in the Nineteenth Century”, baseado num artigo apresentado numa reunião conjunta da Sociedade de História da Medicina de Liverpool e da Sociedade de Liverpool para a História da Ciência e da Tecnologia, 12 out. 1996. Disponível em: <www.evolve360.co.uk/data/10/docs/09/09rivlin.pdf>. Acesso em: 4 abr. 2019.

8. Thomas Percival, Medical Jurisprudence; or a Code of Ethics and Institutes, Adapted to the Professions of Physic and Surgery (Manchester, 1794), p. 16.

9. Florence Nightingale, Notes on Hospitals, 3ª ed. (Londres: Longman, Green, Longman, Roberts & Green, 1863), p. iii.

10. Citado em Peter Vinten-Johansen et al., Cholera, Chloroform, and the Science of Medicine: A Life of John Snow (Oxford: Oxford University Press, 2003), p. 111. Ver também Richard Hollingham, Blood and Guts: A History of Surgery (Londres: BBC Books, 2008) [Sangue e entranhas: A assustadora história da cirurgia, trad. Mirian Inês Ibañes, São Paulo: Geração Editorial, 2011]; Victor Robinson, Victory over Pain: A History of Anesthesia (Londres: Sigma Books, 1947), pp. 141–50; Alison Winter, Mesmerized: Powers of the Mind in Victorian Britain (Chicago: University of Chicago Press, 1998), p. 180.

11. Citado em Steve Parker, Kill or Cure: An Illustrated History of Medicine (Londres: DK, 2013), p.174.

12. Henry Jacob Bigelow, “Insensibility During Surgical Operations Producedby Inhalation”, The Boston Medical and Surgical Journal, (18 nov. 1846) p. 309.

 

(Medicina dos Horrores: a história de Joseph Lister, o homem que revolucionou o apavorante mundo das cirurgias do século XIX; tradução de Vera Ribeiro)

 

(Ilustração: foto da sala de operações da Escola de Medicina de Paris, 1890)

terça-feira, 28 de novembro de 2023

CARPE DIEM, de Mário Faustino

 





Que faço deste dia, que me adora?

Pegá-lo pela cauda, antes da hora

Vermelha de furtar-se ao meu festim?

Ou colocá-lo em música, em palavra,

Ou gravá-lo na pedra, que o sol lavra?

Força é guardá-lo em mim, que um dia assim

Tremenda noite deixa se ela ao leito

Da noite precedente o leva, feito

Escravo dessa fêmea a quem fugira

Por mim, por minha voz e minha lira.



(Mas já de sombras vejo que se cobre

Tão surdo ao sonho de ficar — tão nobre.

Já nele a luz da lua — a morte — mora,

De traição foi feito: vai-se embora.)



(Ilustração : Edward Hopper: morning sun – 1952)

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

A IDIOTIZAÇÃO DA SOCIEDADE COMO ESTRATÉGIA DE DOMINAÇÃO, de Fernando Navarro


As pessoas estão tão comprometidas com o sistema estabelecido, que são incapazes de pensarem em alternativas contrárias aos critérios impostos pelo poder.

Para conseguir isso, o poder se vale do entretenimento a partir do vazio, com o objetivo de aumentar nossa sensibilidade social fazendo com que nos acostumemos a ver a vulgaridade e a estupidez como as coisas mais normais do mundo, incapacitando-nos para alcançarmos uma consciência crítica da realidade.

No entretenimento vazio, o comportamento desagradável e desrespeitoso é considerado positivo, como vemos constantemente na televisão, nos programas que são lixos chamados “do coração”, e nos encontros de espetáculos em que os gritos e a falta de respeito são a norma, o futebol, a forma mais completa e eficiente que o sistema estabeleceu para converter a sociedade.

Nesta subcultura do entretenimento vazio, o que é promovido é um sistema baseado nos valores do individualismo possessivo, no qual a solidariedade e o apoio mútuo são considerados ingênuos. No entretenimento vazio, tudo é projetado para que o indivíduo suporte estoicamente o sistema estabelecido sem questionar. A história não existe, o futuro não existe; apenas o presente e a satisfação imediata que o entretenimento vazio procura. Por isso não é estranho que se proliferem os livros de autoajuda, autêntica porcaria psicológica, o misticismo à Coelho, ou variantes infinitas do clássico “como se tornar um milionário sem esforço”.

Em última análise, o que está envolvido no entretenimento vazio é convencer-nos de que nada pode ser feito: que o mundo é como está e é impossível mudá-lo e que o capitalismo e o poder opressivo do Estado são tão naturais e necessários como a força da própria gravidade. Por isso, é comum ouvir: “É algo muito triste, é verdade, mas sempre houve oprimidos pobres e ricos opressores e sempre haverá. Não há nada que possa ser feito.”.

O entretenimento vazio alcançou o feito extraordinário de fazer com que os valores do capitalismo também sejam os valores daqueles que são escravizados por ele. Isso não é algo recente, La Boétie, naquele distante século XVI, viu claramente, expressando seu estupor em seu pequeno tratado de servidão voluntária, no qual ele declara que a maioria dos tiranos perdura apenas por causa da aquiescência dos próprios tiranizados.

O sistema estabelecido é muito sutil, com suas estupidezes, forja nossas estruturas mentais, e para isso, usa o púlpito que todos temos em nossas casas: a televisão. Nela não há nada que seja inocente; em todos os programas, em todos os filmes, em todas as notícias, sempre inculta os valores do sistema estabelecido, e sem perceber, fazendo com que as pessoas acreditem que a vida real é assim. Desta forma, introduz os valores que se deseja em nossas mentes.

O entretenimento vazio existe para esconder a evidente relação entre o sistema econômico capitalista e as catástrofes que assolam o mundo. Por isso, é necessário que exista o espetáculo do tipo vácuo: para que enquanto o indivíduo se auto degrada revirando-se no lixo que a televisão exerce sobre ele, não veja o óbvio, não proteste e continue permitindo que os ricos e poderosos aumentem seu poder e riqueza, enquanto os oprimidos do mundo continuam sofrendo e morrendo em meio às existências miseráveis.

Se continuarmos permitindo que o entretenimento vazio continue modelando nossa consciência e, portanto, o mundo à sua vontade, acabará destruindo-nos. Porque seu objetivo não é senão criar uma sociedade de homens e mulheres que abandonem os ideais e aspirações que os fazem rebeldes, para se contentar com a satisfação das necessidades induzidas pelos interesses das elites dominantes. Assim, os seres humanos são despojados de toda personalidade, transformados em animais vegetativos, com a desativação da antiga noção de lutar contra a opressão, se tornam atomizados em um enxame de desenfreados egoístas, desta forma, as pessoas ficam sozinhas e desvinculadas entre elas mais do que nunca, absorvidas na auto exaltação.

Assim, desta forma, os indivíduos não têm mais energia, mudam as estruturas opressivas (que não são percebidas como tais), não têm mais a força ou a coesão social para lutarem por um mundo novo.

No entanto, se queremos reverter esta situação de alienação a que estamos sujeitos, nos resta lutar, como sempre; somente nos toca nos opor aos outros valores diametralmente opostos aos do show vazio, de modo que uma nova sociedade emerge. Uma sociedade em que a vida dominada pelo absurdo do entretenimento vazio seja apenas uma lembrança dos tempos estúpidos, quando os seres humanos permitiram que suas vidas fossem manipuladas tão obscenamente.




(Publicado originalmente na revista Al Margen, Valencia (Ruptura Colectiva). Tradução de Elissandro Santana)



(Ilustração: Al Margen – Argentina)

terça-feira, 21 de novembro de 2023

NEGRA. NUA. CRUA., de Mel Duarte

 




Eu não preciso tirar a roupa pra mostrar que sou atraente

Minha postura e ideia é que fazem atrair tanta gente.

Da minha boca disparam palavras

Verdades, viveres

E através dela trago coisas que fazem fluir a mente...



Também ingiro dores é fato, mas só quem sabe sente

E para amenizar, solto sentenças contundentes.

Não me distraio com comentários hipócritas só porque não uso pente

Minha avó já dizia: Respeito te faz manter os dentes!



A carta de alforria há tempos foi assinada

Mas ainda vejo o negro como obra de mão barata,

A mulher negra sendo chamada de mulata

E minha fé a todo tempo sendo testada.



Eu exijo respeito, novo-velho senhor de engenho

Ser considerada “a carne mais barata do mercado’’ EU NÃO ACEITO!

Trago calos em minhas mãos sim, pelo trabalho que desempenho

E enquanto a caneta for minha enxada não me faltará alimento.



Minhas curvas mais bonitas

Desfilam através de devaneios

E minha fala hoje é bruta pra fincar dentro do peito.

Sou poeta e das rimas faço meu sustento.

Me apresento:

- Mel

Negra, nua, crua de sentimento.



(Negra, nua, crua. 2016)



(Ilustração : Lanise Howard - Contemplating Impermanence, 2020)

sábado, 18 de novembro de 2023

TODO FILHO É PAI DA MORTE DE SEU PAI, de Fabrício Carpinejar

 





Há uma quebra na história familiar onde as idades se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem sentido: é quando o filho se torna pai de seu pai.

É quando o pai envelhece e começa a trotear como se estivesse dentro de uma névoa. Lento, devagar, impreciso.

É quando aquele pai que segurava com força nossa mão já não tem como se levantar sozinho. É quando aquele pai enfraquece de vez e demora o dobro da respiração para sair de seu lugar.

É quando aquele pai, que antigamente mandava e ordenava, hoje só suspira, só geme, só procura onde é a porta e onde é a janela - tudo é corredor, tudo é longe.

É quando aquele pai, antes disposto e trabalhador, fracassa ao tirar sua própria roupa e não lembrará de seus remédios.

E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão trocar de papel e aceitar que somos responsáveis por aquela vida. Aquela vida que nos gerou depende de nossa vida para morrer em paz.

Todo filho é pai da morte de seu pai.

Ou, quem sabe, a velhice do pai e da mãe seja curiosamente nossa última gravidez. Nosso último ensinamento. Fase para devolver os cuidados que nos foram confiados ao longo de décadas, de retribuir o amor com a amizade da escolta.

E assim como mudamos a casa para atender nossos bebês, tapando tomadas e colocando cercadinhos, vamos alterar a rotina dos móveis para criar os nossos pais.

Uma das primeiras transformações acontece no banheiro.

Seremos pais de nossos pais na hora de pôr uma barra no box do chuveiro.

A barra é emblemática. A barra é simbólica. A barra é inaugurar um cotovelo das águas.

Porque o chuveiro, simples e refrescante, agora é um temporal para os pés idosos de nossos protetores. Não podemos abandoná-los em nenhum momento.

Pois envelhecer é andar de mãos dadas com os objetos, envelhecer é subir escada mesmo sem degraus.

Seremos estranhos em nossa residência. Observaremos cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e preocupação. Seremos arquitetos, decoradores, engenheiros frustrados. Como não previmos que os pais adoecem e precisariam da gente?

Nos arrependeremos dos sofás, nos arrependeremos de cada obstáculo e tapete.

E feliz do filho que é pai de seu pai antes da morte, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se despede um pouco por dia.

Meu amigo José Klein acompanhou o pai até seus derradeiros minutos.

No hospital, a enfermeira fazia a manobra da cama para a maca, buscando repor os lençóis, quando Zé gritou de sua cadeira:

- Deixa que eu ajudo.

Reuniu suas forças e pegou pela primeira vez seu pai no colo.

Colocou o rosto de seu pai contra seu peito.

Ajeitou em seus ombros o pai consumido pelo câncer: pequeno, enrugado, frágil, tremendo.

Ficou segurando um bom tempo, um tempo equivalente à sua infância, um tempo equivalente à sua adolescência, um bom tempo, um tempo interminável.

Embalou o pai de um lado para o outro.

Aninhou o pai.

Acalmou o pai.

E apenas dizia, sussurrado:

- Estou aqui, estou aqui, pai!

O que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é que seu filho está ali.



(Ilustração: Stephen Kaltenbach, Portrait of My Father, 1972–79)

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

DO CORAÇÃO E SUAS AMARRAS (CANTIGA D´AMOR DE REFRÃO), de João de Jesus Paes Loureiro

 

 




Esconde o oceano em uma lágrima,

acumula navalhas na memória,

em óvulo reparte o nascituro,

cala os apelos da noite, silencia

todas as falas orantes por amor,

apaga-me as lembranças, retira-me

a força de meus braços, sufoca-me

os ais! de gozo, atira-me no abismo,

acumula calvários em meus passos,

embaralha equinócios, desregula

os astros e estações, os hemisférios,

entorna o rio-mar no vão da lua,

emudece o cantar dos encantados,

desvirtua o perdão dos tribunais,

desnatura os semáforos, conflita

o trânsito, embaralha os trilhos,

seca os lábios de preces, degenera

a via-láctea, aparta a unidade

da Santíssima Trindade, cala

o Cântico dos Cânticos, desliga

candelabros no céu, desvaira vídeos,

refaz na aurora a noite, desintegra

o DNA do ser, desassossega

o sono, afasta a mão amiga

e desespera Deus, arranca o sol,

acumula em meu peito as tempestades,

apaga minha sombra, me rumina

em ódio de cruentas profecias,

com sílabas de sabres castra o verso,

retém o curso ávido da vida,

sustém o aracnídeo fio da morte,

faz do Demónio meu Anjo da Guarda,

relega-me vazio no ardil da sorte,

livra meu coração de suas amarras,

desata-me da linha do destino,

quebra os fonemas de mim neste poema,

se eu não morrer de amar de amor amado

se eu não morrer de amor por ti amada.



(Altar em chamas)



(Ilustração: Paul Bond - Manifestations of a lucid dream)

domingo, 12 de novembro de 2023

“ODE À ALEGRIA”, de Otto Dov Kulka

 


       

Naquele campo havia coisas verdadeiramente extraordinárias, que são parte da minha mitologia particular e permanecem alojadas em algum canto da minha memória e adejam por lá de alguma forma. Uma delas — e agora não falo da exterminação em massa e dos acontecimentos que determinaram o destino de todos, mas de mim mesmo —, uma delas, particularmente insólita, cristalizou-se na minha memória, ou tomou forma na minha memória, entrou em minha memória em duas fases bem singulares da vida naquele campo. No alojamento das crianças havia um regente de coro. O nome dele, pelo que me lembro, era Imre. Um homem grandalhão, enorme. Ele organizou um coro infantil, e nós ensaiávamos. Não me lembro se também fizemos apresentações do coro, embora não fosse parte da ópera, que era outra coisa. Os ensaios quase sempre aconteciam em um dos longos salões. Falo de um daqueles alojamentos compridos que os prisioneiros usavam como banheiro; canos perfurados dispunham-se ao longo de cerca de cinquenta metros da estrutura: uma excelente invenção alemã que encontrei mais tarde, depois da guerra, no banheiro público da estação Friedrichstrasse, em Berlim Oriental, logo que cheguei lá. Em segundos essa visão levou-me de volta àquele lugar em Auschwitz. Mas isso é outra coisa.

Aquele alojamento tinha uma acústica excepcional — quando não havia prisioneiros lá dentro, naturalmente. Pela manhã ou à noite, depois do trabalho, ficava abarrotado com milhares, mas durante o dia era vazio. Ali, nos meses de outono — chegamos em setembro —, nos meses de outono e inverno de 1943 aconteceram os nossos ensaios. Eu me recordo principalmente de uma peça que cantamos e também me recordo da letra. As palavras tinham a ver com alegria e com a fraternidade entre os homens. Não produziram em mim nenhuma impressão especial, e tenho certeza de que teria esquecido completamente tudo isso não fosse por outro incidente no qual a experiência, a melodia e a letra voltaram. Mais ou menos meio ano depois, quando o campo já não existia, quando a maioria de seus prisioneiros já tinham sido cremados ou mandados como escravos para todo o Reich, e apenas algumas dezenas de jovens lá permaneciam, e tínhamos sido transferidos para o Männerlager, o grande campo de escravos, não sei como uma gaita veio parar na minha mão. Aprendi a tocá-la, e tocava coisas que me vinham à mente, entre elas uma das melodias que cantávamos no coro das crianças. Era mais ou menos assim:






Estou tocando a melodia em um daqueles raros momentos de silêncio e tranquilidade naquele campo, quando um jovem prisioneiro judeu de Berlim se aproxima de mim — eu era então um menino de onze anos — e diz: “Sabe o que está tocando?”. E eu digo a ele: “Ah, é uma melodia que a gente cantava naquele campo, que não existe mais”. Ele então me explicou o que eu estava tocando e o que cantávamos lá e o significado daquelas palavras. Creio que também tentou explicar o terrível absurdo daquilo, o terrível assombro daquilo, que uma música de louvor à alegria e à fraternidade entre os homens, a “Ode à alegria” de Schiller, da Nona sinfonia de Beethoven, fosse tocada defronte aos crematórios de Auschwitz, a algumas centenas de metros do local de execução, onde a maior conflagração já vivenciada pela mesma humanidade de que falava a canção estava acontecendo naquele exato momento em que conversávamos e em todos os meses em que estivemos lá.

Na verdade, àquela altura eu já sabia sobre Beethoven. Não sabia quando cantamos sua música. Entre aquela primeira situação, quando cantamos, e a surpreendente descoberta e identificação da melodia, eu estivera no hospital, com difteria, e no palete acima do meu ficava um dos jovens prisioneiros, de mais ou menos vinte anos. O nome dele era Herbert. Acho que ele não sarou, e se tiver sarado terá acabado onde acabaram muitos outros na Metrópole da Morte. Uma das nossas distrações, embora principalmente dele, era me explicar, ou me transmitir, alguma coisa das riquezas culturais que ele havia acumulado, como se estivesse me deixando aquela herança. A primeira coisa que ganhei dele foi um livro, o único livro que ele possuía, e que eu leria. Começava com a descrição de uma velha e de um moço que a golpeia com um machado, que assassina e é atormentado: Crime e castigo, de Dostoiévski. Foi isso que ele levou para Auschwitz, e essa foi a primeira grande obra literária que li desde que fui apartado da biblioteca dos meus pais na Tchecoslováquia, aos nove anos. Não parou em Dostoiévski. Fomos para Shakespeare e Beethoven e Mozart e tudo da cultura europeia que ele conseguiu despejar em mim. E eu absorvi um bocado.

Quando Schiller e Beethoven foram depois identificados, comecei a refletir, e reflito desde então, sobre as razões e o significado daquela decisão do regente, daquele Imre de quem me lembro como se fosse hoje como uma figura avantajada, desajeitada, em um uniforme azul-cinzento de prisioneiro e grandes tamancos de madeira, com as manzorras de regente, impelindo o coro, fazendo todo mundo cantar junto, para depois afrouxar o controle, e nós cantando como anjinhos, nossa voz servindo de acompanhamento para as procissões de pessoas de preto que lentamente estão sendo engolidas pelos crematórios.

Naturalmente, a pergunta que me fiz, e que continuo a fazer até hoje, é: o que levou aquele Imre — não a organizar o coro das crianças, porque afinal de contas poderíamos dizer que no espírito daquele projeto do centro educacional era necessário, de algum modo, preservar a sanidade, de algum modo se manter ocupado — mas no que ele acreditava. Qual teria sido sua intenção quando escolheu executar aquele texto específico, um texto que é considerado um manifesto universal de todos os que acreditam na dignidade humana, nos valores humanísticos, no futuro, diante daqueles crematórios, no lugar onde o futuro talvez fosse a única coisa definida que não existia? Seria uma espécie de manifestação de protesto, absurda talvez, talvez sem nenhum propósito, mas uma tentativa de não renunciar e não perder, não a crença, mas a devoção àqueles valores a que essencialmente só as chamas podiam dar fim — só aquele fogo, e não tudo o que o precedia vociferando à nossa volta; ou seja, enquanto o homem respira, ele respira liberdade, ou alguma coisa nessa linha?

Essa é uma possibilidade, e uma possibilidade admirável, mas há uma segunda, que aparentemente é bem mais provável, ou pode às vezes ser invocada. Não direi quando prefiro a primeira e quando estou inclinado à segunda. Refiro-me à possibilidade de que aquele tenha sido um ato de extremo sarcasmo, no limite dos limites, de diversão pessoal, de uma pessoa que, no controle de criaturas ingênuas, implanta nelas valores ingênuos, valores sublimes e maravilhosos, sabendo o tempo todo que naqueles valores não há finalidade, nem propósito, nem sentido. Em outras palavras, que aquilo foi uma espécie de diversão pessoal quase demoníaca, tocar melodias para acompanhar aquelas chamas que ardiam silenciosamente dia e noite e aquelas procissões que eram engolidas pelos crematórios insaciáveis.

A segunda ideia parece mais lógica, à primeira vista. Na primeira nos sentimos tentados a acreditar. E talvez eu acredite nela, talvez ela tenha me influenciado, talvez tenha influenciado muitas coisas das quais me ocupo e nas quais acredito. Mas em muitas ocasiões penso que me agarrei a uma ilusão e a transmito de várias maneiras. Porque aquele sarcasmo abissal, supremo, um sarcasmo além de qualquer limite possível, poderia também ser um critério para variações menos extremas na realidade de um mundo onde as coisas não acontecem conforme a cândida crença de Beethoven e Schiller propriamente ditos, mas conforme Beethoven e Schiller que uma vez já foram cantados defronte aos crematórios de Auschwitz. Essa é, obviamente, parte da minha mitologia particular.

Volto a tudo isso com muita frequência, e o assunto também me ocupa profissionalmente, muito embora eu nunca tenha mencionado diretamente o episódio. Mas quando me ponho a interpretar a continuidade da existência de normas sociais, de valores culturais e morais nas condições que foram criadas imediatamente à ascensão dos nazistas ao poder e por todo o caminho até a beira dos fossos dos assassinatos em massa e dos crematórios, então com muita frequência fico propenso, talvez inconscientemente, a escolher a crença naquela manifestação, uma manifestação sem esperança, mas a única possível naquela situação, embora, como já disse, eu pense que a ilusão aqui às vezes é muito maior do que a ferocidade do sarcasmo ou a cínica diversão de alguém que ainda era capaz de brincar com isso em face daquela mortandade. Esse modo de pensar talvez fosse, não direi mais realista, mas mais autêntico.

A questão permanece em aberto para mim, como os brações de Imre que se abriam para os lados e lá ficavam pendentes. Quer alguém escolha a esquerda ou a direita, ou quando eu escolho a esquerda ou a direita, esse é de fato todo o decorrer da minha existência ou do meu confronto com o passado e com o presente, daquele tempo até hoje.



(Paisagens da Metrópole da Morte - Reflexões sobre a memória e a imaginação; tradução de Laura Teixeira Motta)



(Ilustração: Entrada de trem de Auschwitz - Getty images)

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

CANÇÃO DE MALLARMÉ, de Jamesson Buarque

 






História

A história sempre acaba em livro

Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:

Papiro palimpsesto casca de árvore

Lugar de talhar palavras

Gralhas e metáforas espalhadas pelo papel —

A história tem a idade de escrever

História

Em mais nada senão mais páginas

Aurora

De dedos rosados é uma palavra

Um cego a estribilhou na ponta da língua

Lésbia é outra palavra

Mil vezes e mais tantas vezes beijada

Catulo a cunhou no côncavo da boca

Fremindo a úvula em latim antes de Virgílio

Dido é outra palavra

E fundou um mundo —

Cartago morreu depois mas ficou em livro



Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:

Beatriz sabe disso

Seu nome é próprio para luz

Uma palavra acima do nono céu e clara

E claro:

Não posso pronunciar palavra a palavra

Cada palavra que me ocorre nos lábios

Mas posso um pouco mais

Posso Isabel e posso Leiria —

A invenção do mundo caravela em minha fala



Lusíada

Uma palavra ou menina

Parideira de mais palavras ou meninas no colo da língua —

Língua tem colo:

Fones brotando de óvulos

Uma fertilidade da história

A glória disso é parir mais e feminina desde o sono:

Paraguaçu deitada no desenho do lago —

“Jararaca vai te morder”

“Vai não” — diz um livro



Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:

Diotima Marília e Lívia

Pastoras de palavras e amor

São palavras

E somente como palavras se bastam

Os bastiões dos dias

Pela criação do verbo: sarça e carne

Ou a invenção da poesia —

Cristabel largada no vazio da floresta

A tantos passos do castelo de seu pai

E de pernas abertas

Cada metade de um livro para um lado

Ou dois prados ou dois bagos:

Bandas de laranja plantando semântica



Marabá

De olhos verdes e cabelo dourado

Uma palavra em formato de pomo:

Anajá —

Uiara que sereia meus passos

Até Cecília e seu silabário mágico

Mais palavras havia

E Dora e Hilda

E Anna cravada no coração de Rannar

De um lado a outro lado

A história sempre acaba em livro



Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:

Casca de árvore talhada à faca

O poema é sempre feminino —

Uma manifestação das Horas e das Graças

Madalena sorrindo no sorriso de Helena

De Jerusalém a Ílion ao resto do mundo

Palavra sempre tem formato de mulher

Por isso Deusa: minha vida mais cara

Por isso sempre palavra dá em mais palavras

Gestação e geração:

Terra livroteca casa ilha cidade —

Signos de Safo solfejando sílabas

Ou um golpe de fada suando em cima de um sapo,

Segundo um livro

Segundo um livro onde houver gente

Para cada macho há pelo menos sete mulheres

Todas aptas ao combate:

Uma combate com os lábios

Outra com a saia e outra com as sandálias

Outra com as pernas e outra com os braços

Uma combate com a cabeleira

E outra com rosas —

Sobretudo todas combatem com palavras

Por isso Deus é feminino:

Pairava sobre as águas fez a luz e se vestiu de sarça

Como antes de rijos

Demiurgos mártires santos meninos heróis e poetas

São sempre suaves —

Segundo Guevara: outro livro



Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:

Estão escritos na história

Péricles Felipe Alexandre e Augusto

Embora seu formato de palavra

Regravam a vida a sua vontade

Como os demais generais a gerarem:

Consentiam apenas seu nome —

O mínimo da pirâmide sempre esmagou a base:

Está escrito

Suserano vassalo colono

E clérigos no meio

Fazendo ponte para cobrar pedágio

De cima abaixo

O mais raso somente recebe necessidade

Um dia Joana, e Joana era inconsútil,

Se despiu da cabeleira de Circe

E se banhou com os porcos para ombrear varões —

Conta um livro que sua bainha era impenetrável

Sua espada nunca amolecia

E não usava escudo

Li que antes de mudar o mundo o desordenou

E morreu —

Ainda vejo em Chiquinha Arendt Lou Salomé e Aninha, a Coralina,

Seu feitio de sandálias agraçando a história

Num formato de cântico

E todo cântico tem formato de livro



Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:

Quando chega a idade e as dores nos ossos

Com o primeiro derrame do lado esquerdo

A história desenha um mito —

Entre os fósseis e a cadeira de balanço

A dentadura mergulha precipício abaixo

Para fecundar uma nova queda

E queda tem signo de história:

Dormem nessa hora os filhos em seu casulo ou cegueira

Mas ainda aguenta o tranco

A velha Hannan Arendt

E domina o silêncio

Mansa

Mais mansa do que criança

De sono solto



No último século vestia saias

Somente

Assinava nome de macho

Se trocou num par de calças

E escala até edifícios

Quando quer faz filhos

E ainda vive estupros latejando bigorna martelo e estribo

Ou tapa na cara ou signo da mal-falada

Segundo o prontuário de delegacias e cartórios:

Um corpo de livro



Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:

Era uma vez uma lua que se chamava Jaci

Se esqueceu do Sol

E foi se banhar nua nas ruas

Veio a polícia e lhe enquadrou num código —

Tudo, Jaci, acaba em livro

Inclusive são livros a jaula e o absurdo

Outra se chamava Aninha, a Coralina,

E também era uma vez

Conheceu o grito o silêncio a indiferença e o barulho

Ainda lhe restam as sandálias

O quintal com cheiro de mato de avó

E disputa com rio e igrejas roteiro turístico



Quando chega a idade e as dores nos ossos

Com o primeiro derrame do lado esquerdo

A história desenha um mito —

Vai haver atestado de óbito:

Daqui para lá para um filho

De lá para cá para o outro

E um registro em folha de livro:

Pedrinhas brotando em canteiros de terra

A hora certa da cadeira na rua

O cochilo na hora do filme

E o badalo do sino na igreja mais antiga

Lembrando que a vida pulsa em formato de sílaba



Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:

Não faz de conta que a história existe

Quando a idade chega

Até os pássaros sentem dor no cântico dos bicos

E os dicionários crescem nessa hora

Seu tamanho de livro na história

Ou arquipélago de palavras

Que pela semântica das bandas da laranja é a mesma coisa

Então se expira a lâmpada de um verbete

Ou se um verbete se fossiliza

Uma palavra inventa de usá-lo sem vestido

Como rapariga moça puta são ao contrário a mesma coisa:

Desígnio de livro



A história nasce galopando sobre chamas

Estende suas veias ilha ao mundo todo

Pela vagina sopra e espalha antigo fogo

Do mesmo fogo originário das palavras



O fogo queima, e disse Edmar: recusa corpo

Este axioma é quase exato e porque canta

Ala ardentias de fonemas trota e rubra

A vida e morte que rubrica todo um povo



Todos sabemos que a história não se apaga

Pétalas caem para fazer crescerem árvores

A mais e aléias a mais também até onde a carne



É cada golpe de uma fada sobre um sapo —

Longo fagote que estruge até o mais fundo

Do fim do mundo nas entranhas das idades



Conclamando o rosto dos homens em seus olhos

Toda palavra desenrola a cabeleira

Como a sereia que ao cantar domina o mundo



Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:

Depois de um soneto e um estrambote

A poesia cabe em tudo:

É filha das palavras e feminina

Como Dona Jaideth ou mainha

Ensinando-me ciranda e roda —

A dança é sempre fêmea e cabe em livro

Como a saia rodada de Deusa

Dançando em passo ou galope de sílabas

Para a beira do mar ou qualquer lugar

Transformando insânia em fome

O que era insânia arde em palavras

Agora e sempre no cerne ou vulva das ilhas



Ilha é livro: uma palavra

Falena feita de mulher forjando a terra

Eva Pandora Lilith Safo e mais beldades

Bem como Cléa e sua fome de fiéis

Por isso a história não desiste:

Mainha nos ouvindo disquinhos

Amarelo e azul e vermelho e verde

Histórias de fantasmas e mais folclore

E contos da saga dos Buarque —

Vovó Hilda escondida num lago

O cajado de ordem de Mãe Fana

E o sorriso de Ismênia num álbum:

Outro livro



Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:

A história de uma pessoa é a história do planeta

Inteiro e arde

Nasci do batuque de tambores e da transmissão

Digitalizada de dados —

Mulher em homem fazendo páginas:

Dona Isabel fez uma igreja e roseiras

Dom Dinis, as caravelas

Igreja roseira e caravela são mulheres

Inclusive é mulher a guerra

E a paz vem sempre no feminino

Em língua de elfo de libélula ou em português moderno —

O Cristo sabia disso

Por isso desposou Madalena para beata

Num madeiro

E crucificado

Segundo a Bíblia, este organismo feminino:

Outro livro





(Meditações)



(Ilustração:  Édouard Manet - Portrait de Stéphane Mallarmé, 1876)

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

O “VIAGRA ROYALE”, Jean-Noel Fabiani

 


Em medicina, uma feliz coincidência significa que uma descoberta científica ou uma invenção tecnológica foi obtida de modo “inesperado”, por um conjunto fortuito de circunstâncias, em um quadro de uma pesquisa orientada para outro fim. Sendo assim, muitas descobertas médicas acontecem por acaso, de forma imprevista ou até mesmo imprevisível. Tudo depende do observador. Ele pode deixar passar o acontecimento que acabou de observar por falta de preparo ou falta de conhecimento, e lamentaremos, portanto, sua falta de perspicácia. Ou, ao contrário, será fonte da descoberta.

“O acaso favorece apenas os espíritos preparados”, afirmou, ao que parece, o grande Pasteur, querendo dizer que a mesma observação não podia ter o mesmo sentido para um douto, cujo sistema de correlações já está bem formado, e para um ingênuo, que só pode, quando muito, manifestar seu espanto. [1]

Até para se espantar é preciso ter discernimento.

Em 1981, o bioquímico norte-americano Robert Furchgott, que pesquisava artérias de coelhos cultivadas in vitro, percebeu que essas veias podiam se dilatar quando recebiam acetilcolina – (ACh) um neurotransmissor – em contato com células musculares de sua parede interna. A essa substância misteriosa, Furchgott deu o nome de EDRF (endothelium-derived-relaxing-factor), o que em química logicamente não quer dizer nada.

Alguns anos mais tarde, depois de batalhas épicas entre pesquisadores, descobre-se que o misterioso EDRF nada mais é do que uma pequena molécula bem conhecida, o óxido nítrico ou NO, presente de forma natural no corpo humano e que tem a capacidade de sintetizar as células que revestem o interior das artérias. Isso valeu, aliás, o prêmio Nobel a Robert Furchgott, mas também desencadeou uma pesquisa clínica orientada para as doenças que causam estreitamento das artérias, na qual o laboratório Pfizer acabou ficando em lugar de destaque.

Os homens da Pfizer (Peter Dunn e Albert Wood, para não deixar de citá-los) tinham de fato desenvolvido uma molécula, o citrato de sildenafila, em Sandwich (GrãBretanha), que tinha a propriedade de aumentar a concentração de NO nas células musculares das artérias, favorecendo, portanto, sua dilatação. Desse modo, podia-se dilatar as artérias coronárias – ou seja, do coração –, tratar a angina pectoris e, talvez, prevenir os infartos do miocárdio.

Tudo parecia ir às mil maravilhas.

Em 1991, teve início, então, um estudo de fase I [2], dirigido por Peter Ellis e Nichola Terret. O estudo era clássico, seguindo um princípio simples. Os pacientes eram escolhidos por sorteio, alguns recebiam comprimidos de citrato de sildenafila, e os demais, placebo (ou seja, comprimidos inócuos), e os efeitos cardíacos obtidos nos dois grupos eram registrados. Não demorou para perceberem que os resultados eram muito decepcionantes, e que a eficácia obtida no nível das artérias do coração parecia ser muito limitada, para não dizer nula. Decidiu-se, então, interromper o estudo, e encarregaram o assessor de pesquisa clínica de recolher os envelopes que continham os compridos que não foram consumidos pelos pacientes.

Logo observaram que a maioria dos pacientes devolvia de bom grado seus comprimidos, mas aqueles que não devolviam chamaram a atenção de Peter Ellis e Nichola Terret. E – fato ainda mais estranho –, depois de revogado o anonimato, constataram que aqueles que não tinham devolvido os comprimidos eram pacientes do grupo investigacional, ou seja, do grupo que recebeu o citrato de sildenafila. Faltava saber por que os doentes se recusavam a se separar de seus preciosos comprimidos, pondo em xeque o próprio princípio do estudo científico do qual tinham participado.

Uma pesquisa trouxe a solução do enigma e pôs os pingos nos is: existia um efeito colateral inesperado. O citrato de sildenafila provocava ereções estáveis e duradouras em pacientes que, até então, tinham histórico de impotência.

Sem saber e por meio de uma feliz coincidência bastante engraçada, nossa dupla de pesquisadores tinha encontrado (enfim) a solução médica para o maior drama dos homens. Desde a aurora da humanidade, perdemos a conta das tentativas e das soluções mirabolantes oferecidas por todo tipo de charlatão: de pó de chifre de rinoceronte a extrato de testículo de tigre, passando pelos supostos efeitos do ginseng. E, às vezes, os próprios médicos davam seus pitacos, como o dr. Brown-Séquard que, em 1889, propôs a sequardina, cujo único efeito era dar dinheiro para seu inventor. Depois, nos anos 1930, Serge Voronoff, o primeiro a realizar um transplante de rim, transplantou glandes de macaco em milionários para lhes dar a ilusão de uma nova virilidade. Ainda mais grave: em 1982, em Paris, Ronald Virag, cirurgião cardíaco, propôs a utilização das propriedades vasodilatadoras da papaverina, injetando-a diretamente nos corpos cavernosos. Uma técnica eficaz, cujos preparativos eram, no mínimo, constrangedores. Porque dar uma injeção no pênis logo antes de satisfazer sua parceira demandava, muitas vezes, explicações complicadas e nada glamorosas. No ano seguinte, o fisiologista norte-americano Giles Brindley, maravilhado com as propriedades da papaverina, injetou a droga no próprio pênis, em seu quarto de hotel, durante um congresso da Sociedade Norte-Americana de Urologia em Las Vegas, e apresentou sua ereção para os colegas perante todo o auditório, chegando até a descer do púlpito e convidar os incrédulos a apalpar seu pênis... 

Mas ainda estávamos longe de obter um resultado estável e reprodutível depois da simples ingestão de um comprimido. O desafio portanto era enorme, e as expectativas dos homens (e das mulheres), infinitas. Evidentemente, depois de ter verificado a realidade e a constância desse efeito por meio de um novo estudo, a Pfizer foi logo mudando de tática. Pouco importava o infarto do miocárdio, bom mesmo era apresentar um tratamento elegante para as disfunções eréteis. Um mercado infinito, de valor inestimável para um laboratório. Foi rápido – e com milhões de dólares ao ano – que o sucesso dessas pequenas pílulas azuis se fez conhecer, sobretudo quando seu efeito foi reforçado por um nome comercial provocante como “Viagra”, uma contração de “Vigor” e “Niágara”... Que espetáculo!

A vida é assim mesmo. Não podemos lutar contra os interesses financeiros. Especialmente quando se trata de milhões de dólares... E, afinal de contas, por que não? Pelo menos, essa feliz coincidência pode ter melhorado o dia a dia de milhões de casais. Multiplicados ao infinito. Pois, como outrora previu o dr. Louis-Ferdinand Destouches, mais conhecido na literatura sob seu pseudônimo de escritor, Céline: “A vida é uma orgia que nunca termina”.[3]

 

Notas:

[1] O filósofo Gaston Bachelard assim escreveu: “O microscópio não esclarece o ignorante, ele o deixa tonto...”. (N.A.)

[2] Estudo de fase I (e II, III, IV): um estudo clínico se divide em diversas fases, que ocorrem depois dos ensaios pré-clínicos (experimentos em laboratórios e experimentos em animais). Um estudo de fase I é a preliminar de um estudo de eficácia de um medicamento. Trata-se de avaliar a tolerância e a ausência de efeitos colaterais nos sujeitos que, na maior parte das vezes, são voluntários sadios ou pacientes em impasses terapêuticos, para os quais o tratamento em estudo representa a única chance de sobrevivência. Essa fase também permite observar a cinética e o metabolismo da substância estudada dentro do corpo humano. A fase II ou estudo-piloto consiste em determinar a dose ótima do medicamento e seus eventuais efeitos colaterais. A fase III é o estudo comparativo da eficácia propriamente dita. Compara o tratamento com placebo em relação ao tratamento de referência. Muitas vezes, os grupos são bem grandes e não é raro reunirem milhares de participantes. A fase IV é o acompanhamento a longo prazo do tratamento depois de sua comercialização ter sido autorizada. Deve revelar a incidência de efeitos secundários raros ou complicações tardias.

[3] Louis-Ferdinand Céline. Voyage au bout de la nuit. Paris: Gallimard. [Viagem ao fim da noite. Trad. Rosa Freire d’Águiar. São Paulo: Cia. Das Letras, 2009.] (N.A.)

 

(A fabulosa história do hospital – da Idade Média aos dias de hoje; tradução de Lavínia Fávero)

 

(Ilustração: Fernando Botero)

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

SER MULHER, de Carmen Cinira

 


(à minha amiga Lourdes Palmer)


Ser mulher não é ter nas formas de escultura,

No traço do perfil, no corpo fascinante,

A beleza que um dia o tempo transfigura

E um olhar deslumbrado atrai a cada instante...



Ser mulher não é só ter a graça empolgante,

O feitiço absorvente, a lascívia e a ternura;

Ser mulher não é ter na carne provocante

A volúpia infernal que arrasta e desfigura...



Ser mulher é ter na alma essa imortal beleza

De quem sabe pensar com toda a sutileza

E no próprio ideal rara virtude alcança...



É ter, simples e pura, os sentimentos francos,

E ainda no fulgor dos seus cabelos brancos,

Sonhar como mulher, sentir como criança!




(Ilustração: Fernando Botero – Monalisa)