História
A história sempre acaba em livro
Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:
Papiro palimpsesto casca de árvore
Lugar de talhar palavras
Gralhas e metáforas espalhadas pelo papel —
A história tem a idade de escrever
História
Em mais nada senão mais páginas
Aurora
De dedos rosados é uma palavra
Um cego a estribilhou na ponta da língua
Lésbia é outra palavra
Mil vezes e mais tantas vezes beijada
Catulo a cunhou no côncavo da boca
Fremindo a úvula em latim antes de Virgílio
Dido é outra palavra
E fundou um mundo —
Cartago morreu depois mas ficou em livro
Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:
Beatriz sabe disso
Seu nome é próprio para luz
Uma palavra acima do nono céu e clara
E claro:
Não posso pronunciar palavra a palavra
Cada palavra que me ocorre nos lábios
Mas posso um pouco mais
Posso Isabel e posso Leiria —
A invenção do mundo caravela em minha fala
Lusíada
Uma palavra ou menina
Parideira de mais palavras ou meninas no colo da língua —
Língua tem colo:
Fones brotando de óvulos
Uma fertilidade da história
A glória disso é parir mais e feminina desde o sono:
Paraguaçu deitada no desenho do lago —
“Jararaca vai te morder”
“Vai não” — diz um livro
Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:
Diotima Marília e Lívia
Pastoras de palavras e amor
São palavras
E somente como palavras se bastam
Os bastiões dos dias
Pela criação do verbo: sarça e carne
Ou a invenção da poesia —
Cristabel largada no vazio da floresta
A tantos passos do castelo de seu pai
E de pernas abertas
Cada metade de um livro para um lado
Ou dois prados ou dois bagos:
Bandas de laranja plantando semântica
Marabá
De olhos verdes e cabelo dourado
Uma palavra em formato de pomo:
Anajá —
Uiara que sereia meus passos
Até Cecília e seu silabário mágico
Mais palavras havia
E Dora e Hilda
E Anna cravada no coração de Rannar
De um lado a outro lado
A história sempre acaba em livro
Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:
Casca de árvore talhada à faca
O poema é sempre feminino —
Uma manifestação das Horas e das Graças
Madalena sorrindo no sorriso de Helena
De Jerusalém a Ílion ao resto do mundo
Palavra sempre tem formato de mulher
Por isso Deusa: minha vida mais cara
Por isso sempre palavra dá em mais palavras
Gestação e geração:
Terra livroteca casa ilha cidade —
Signos de Safo solfejando sílabas
Ou um golpe de fada suando em cima de um sapo,
Segundo um livro
Segundo um livro onde houver gente
Para cada macho há pelo menos sete mulheres
Todas aptas ao combate:
Uma combate com os lábios
Outra com a saia e outra com as sandálias
Outra com as pernas e outra com os braços
Uma combate com a cabeleira
E outra com rosas —
Sobretudo todas combatem com palavras
Por isso Deus é feminino:
Pairava sobre as águas fez a luz e se vestiu de sarça
Como antes de rijos
Demiurgos mártires santos meninos heróis e poetas
São sempre suaves —
Segundo Guevara: outro livro
Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:
Estão escritos na história
Péricles Felipe Alexandre e Augusto
Embora seu formato de palavra
Regravam a vida a sua vontade
Como os demais generais a gerarem:
Consentiam apenas seu nome —
O mínimo da pirâmide sempre esmagou a base:
Está escrito
Suserano vassalo colono
E clérigos no meio
Fazendo ponte para cobrar pedágio
De cima abaixo
O mais raso somente recebe necessidade
Um dia Joana, e Joana era inconsútil,
Se despiu da cabeleira de Circe
E se banhou com os porcos para ombrear varões —
Conta um livro que sua bainha era impenetrável
Sua espada nunca amolecia
E não usava escudo
Li que antes de mudar o mundo o desordenou
E morreu —
Ainda vejo em Chiquinha Arendt Lou Salomé e Aninha, a Coralina,
Seu feitio de sandálias agraçando a história
Num formato de cântico
E todo cântico tem formato de livro
Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:
Quando chega a idade e as dores nos ossos
Com o primeiro derrame do lado esquerdo
A história desenha um mito —
Entre os fósseis e a cadeira de balanço
A dentadura mergulha precipício abaixo
Para fecundar uma nova queda
E queda tem signo de história:
Dormem nessa hora os filhos em seu casulo ou cegueira
Mas ainda aguenta o tranco
A velha Hannan Arendt
E domina o silêncio
Mansa
Mais mansa do que criança
De sono solto
No último século vestia saias
Somente
Assinava nome de macho
Se trocou num par de calças
E escala até edifícios
Quando quer faz filhos
E ainda vive estupros latejando bigorna martelo e estribo
Ou tapa na cara ou signo da mal-falada
Segundo o prontuário de delegacias e cartórios:
Um corpo de livro
Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:
Era uma vez uma lua que se chamava Jaci
Se esqueceu do Sol
E foi se banhar nua nas ruas
Veio a polícia e lhe enquadrou num código —
Tudo, Jaci, acaba em livro
Inclusive são livros a jaula e o absurdo
Outra se chamava Aninha, a Coralina,
E também era uma vez
Conheceu o grito o silêncio a indiferença e o barulho
Ainda lhe restam as sandálias
O quintal com cheiro de mato de avó
E disputa com rio e igrejas roteiro turístico
Quando chega a idade e as dores nos ossos
Com o primeiro derrame do lado esquerdo
A história desenha um mito —
Vai haver atestado de óbito:
Daqui para lá para um filho
De lá para cá para o outro
E um registro em folha de livro:
Pedrinhas brotando em canteiros de terra
A hora certa da cadeira na rua
O cochilo na hora do filme
E o badalo do sino na igreja mais antiga
Lembrando que a vida pulsa em formato de sílaba
Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:
Não faz de conta que a história existe
Quando a idade chega
Até os pássaros sentem dor no cântico dos bicos
E os dicionários crescem nessa hora
Seu tamanho de livro na história
Ou arquipélago de palavras
Que pela semântica das bandas da laranja é a mesma coisa
Então se expira a lâmpada de um verbete
Ou se um verbete se fossiliza
Uma palavra inventa de usá-lo sem vestido
Como rapariga moça puta são ao contrário a mesma coisa:
Desígnio de livro
A história nasce galopando sobre chamas
Estende suas veias ilha ao mundo todo
Pela vagina sopra e espalha antigo fogo
Do mesmo fogo originário das palavras
O fogo queima, e disse Edmar: recusa corpo
Este axioma é quase exato e porque canta
Ala ardentias de fonemas trota e rubra
A vida e morte que rubrica todo um povo
Todos sabemos que a história não se apaga
Pétalas caem para fazer crescerem árvores
A mais e aléias a mais também até onde a carne
É cada golpe de uma fada sobre um sapo —
Longo fagote que estruge até o mais fundo
Do fim do mundo nas entranhas das idades
Conclamando o rosto dos homens em seus olhos
Toda palavra desenrola a cabeleira
Como a sereia que ao cantar domina o mundo
Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:
Depois de um soneto e um estrambote
A poesia cabe em tudo:
É filha das palavras e feminina
Como Dona Jaideth ou mainha
Ensinando-me ciranda e roda —
A dança é sempre fêmea e cabe em livro
Como a saia rodada de Deusa
Dançando em passo ou galope de sílabas
Para a beira do mar ou qualquer lugar
Transformando insânia em fome
O que era insânia arde em palavras
Agora e sempre no cerne ou vulva das ilhas
Ilha é livro: uma palavra
Falena feita de mulher forjando a terra
Eva Pandora Lilith Safo e mais beldades
Bem como Cléa e sua fome de fiéis
Por isso a história não desiste:
Mainha nos ouvindo disquinhos
Amarelo e azul e vermelho e verde
Histórias de fantasmas e mais folclore
E contos da saga dos Buarque —
Vovó Hilda escondida num lago
O cajado de ordem de Mãe Fana
E o sorriso de Ismênia num álbum:
Outro livro
Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:
A história de uma pessoa é a história do planeta
Inteiro e arde
Nasci do batuque de tambores e da transmissão
Digitalizada de dados —
Mulher em homem fazendo páginas:
Dona Isabel fez uma igreja e roseiras
Dom Dinis, as caravelas
Igreja roseira e caravela são mulheres
Inclusive é mulher a guerra
E a paz vem sempre no feminino
Em língua de elfo de libélula ou em português moderno —
O Cristo sabia disso
Por isso desposou Madalena para beata
Num madeiro
E crucificado
Segundo a Bíblia, este organismo feminino:
Outro livro
(Meditações)
(Ilustração: Édouard Manet - Portrait de Stéphane Mallarmé, 1876)
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