domingo, 12 de novembro de 2023

“ODE À ALEGRIA”, de Otto Dov Kulka

 


       

Naquele campo havia coisas verdadeiramente extraordinárias, que são parte da minha mitologia particular e permanecem alojadas em algum canto da minha memória e adejam por lá de alguma forma. Uma delas — e agora não falo da exterminação em massa e dos acontecimentos que determinaram o destino de todos, mas de mim mesmo —, uma delas, particularmente insólita, cristalizou-se na minha memória, ou tomou forma na minha memória, entrou em minha memória em duas fases bem singulares da vida naquele campo. No alojamento das crianças havia um regente de coro. O nome dele, pelo que me lembro, era Imre. Um homem grandalhão, enorme. Ele organizou um coro infantil, e nós ensaiávamos. Não me lembro se também fizemos apresentações do coro, embora não fosse parte da ópera, que era outra coisa. Os ensaios quase sempre aconteciam em um dos longos salões. Falo de um daqueles alojamentos compridos que os prisioneiros usavam como banheiro; canos perfurados dispunham-se ao longo de cerca de cinquenta metros da estrutura: uma excelente invenção alemã que encontrei mais tarde, depois da guerra, no banheiro público da estação Friedrichstrasse, em Berlim Oriental, logo que cheguei lá. Em segundos essa visão levou-me de volta àquele lugar em Auschwitz. Mas isso é outra coisa.

Aquele alojamento tinha uma acústica excepcional — quando não havia prisioneiros lá dentro, naturalmente. Pela manhã ou à noite, depois do trabalho, ficava abarrotado com milhares, mas durante o dia era vazio. Ali, nos meses de outono — chegamos em setembro —, nos meses de outono e inverno de 1943 aconteceram os nossos ensaios. Eu me recordo principalmente de uma peça que cantamos e também me recordo da letra. As palavras tinham a ver com alegria e com a fraternidade entre os homens. Não produziram em mim nenhuma impressão especial, e tenho certeza de que teria esquecido completamente tudo isso não fosse por outro incidente no qual a experiência, a melodia e a letra voltaram. Mais ou menos meio ano depois, quando o campo já não existia, quando a maioria de seus prisioneiros já tinham sido cremados ou mandados como escravos para todo o Reich, e apenas algumas dezenas de jovens lá permaneciam, e tínhamos sido transferidos para o Männerlager, o grande campo de escravos, não sei como uma gaita veio parar na minha mão. Aprendi a tocá-la, e tocava coisas que me vinham à mente, entre elas uma das melodias que cantávamos no coro das crianças. Era mais ou menos assim:






Estou tocando a melodia em um daqueles raros momentos de silêncio e tranquilidade naquele campo, quando um jovem prisioneiro judeu de Berlim se aproxima de mim — eu era então um menino de onze anos — e diz: “Sabe o que está tocando?”. E eu digo a ele: “Ah, é uma melodia que a gente cantava naquele campo, que não existe mais”. Ele então me explicou o que eu estava tocando e o que cantávamos lá e o significado daquelas palavras. Creio que também tentou explicar o terrível absurdo daquilo, o terrível assombro daquilo, que uma música de louvor à alegria e à fraternidade entre os homens, a “Ode à alegria” de Schiller, da Nona sinfonia de Beethoven, fosse tocada defronte aos crematórios de Auschwitz, a algumas centenas de metros do local de execução, onde a maior conflagração já vivenciada pela mesma humanidade de que falava a canção estava acontecendo naquele exato momento em que conversávamos e em todos os meses em que estivemos lá.

Na verdade, àquela altura eu já sabia sobre Beethoven. Não sabia quando cantamos sua música. Entre aquela primeira situação, quando cantamos, e a surpreendente descoberta e identificação da melodia, eu estivera no hospital, com difteria, e no palete acima do meu ficava um dos jovens prisioneiros, de mais ou menos vinte anos. O nome dele era Herbert. Acho que ele não sarou, e se tiver sarado terá acabado onde acabaram muitos outros na Metrópole da Morte. Uma das nossas distrações, embora principalmente dele, era me explicar, ou me transmitir, alguma coisa das riquezas culturais que ele havia acumulado, como se estivesse me deixando aquela herança. A primeira coisa que ganhei dele foi um livro, o único livro que ele possuía, e que eu leria. Começava com a descrição de uma velha e de um moço que a golpeia com um machado, que assassina e é atormentado: Crime e castigo, de Dostoiévski. Foi isso que ele levou para Auschwitz, e essa foi a primeira grande obra literária que li desde que fui apartado da biblioteca dos meus pais na Tchecoslováquia, aos nove anos. Não parou em Dostoiévski. Fomos para Shakespeare e Beethoven e Mozart e tudo da cultura europeia que ele conseguiu despejar em mim. E eu absorvi um bocado.

Quando Schiller e Beethoven foram depois identificados, comecei a refletir, e reflito desde então, sobre as razões e o significado daquela decisão do regente, daquele Imre de quem me lembro como se fosse hoje como uma figura avantajada, desajeitada, em um uniforme azul-cinzento de prisioneiro e grandes tamancos de madeira, com as manzorras de regente, impelindo o coro, fazendo todo mundo cantar junto, para depois afrouxar o controle, e nós cantando como anjinhos, nossa voz servindo de acompanhamento para as procissões de pessoas de preto que lentamente estão sendo engolidas pelos crematórios.

Naturalmente, a pergunta que me fiz, e que continuo a fazer até hoje, é: o que levou aquele Imre — não a organizar o coro das crianças, porque afinal de contas poderíamos dizer que no espírito daquele projeto do centro educacional era necessário, de algum modo, preservar a sanidade, de algum modo se manter ocupado — mas no que ele acreditava. Qual teria sido sua intenção quando escolheu executar aquele texto específico, um texto que é considerado um manifesto universal de todos os que acreditam na dignidade humana, nos valores humanísticos, no futuro, diante daqueles crematórios, no lugar onde o futuro talvez fosse a única coisa definida que não existia? Seria uma espécie de manifestação de protesto, absurda talvez, talvez sem nenhum propósito, mas uma tentativa de não renunciar e não perder, não a crença, mas a devoção àqueles valores a que essencialmente só as chamas podiam dar fim — só aquele fogo, e não tudo o que o precedia vociferando à nossa volta; ou seja, enquanto o homem respira, ele respira liberdade, ou alguma coisa nessa linha?

Essa é uma possibilidade, e uma possibilidade admirável, mas há uma segunda, que aparentemente é bem mais provável, ou pode às vezes ser invocada. Não direi quando prefiro a primeira e quando estou inclinado à segunda. Refiro-me à possibilidade de que aquele tenha sido um ato de extremo sarcasmo, no limite dos limites, de diversão pessoal, de uma pessoa que, no controle de criaturas ingênuas, implanta nelas valores ingênuos, valores sublimes e maravilhosos, sabendo o tempo todo que naqueles valores não há finalidade, nem propósito, nem sentido. Em outras palavras, que aquilo foi uma espécie de diversão pessoal quase demoníaca, tocar melodias para acompanhar aquelas chamas que ardiam silenciosamente dia e noite e aquelas procissões que eram engolidas pelos crematórios insaciáveis.

A segunda ideia parece mais lógica, à primeira vista. Na primeira nos sentimos tentados a acreditar. E talvez eu acredite nela, talvez ela tenha me influenciado, talvez tenha influenciado muitas coisas das quais me ocupo e nas quais acredito. Mas em muitas ocasiões penso que me agarrei a uma ilusão e a transmito de várias maneiras. Porque aquele sarcasmo abissal, supremo, um sarcasmo além de qualquer limite possível, poderia também ser um critério para variações menos extremas na realidade de um mundo onde as coisas não acontecem conforme a cândida crença de Beethoven e Schiller propriamente ditos, mas conforme Beethoven e Schiller que uma vez já foram cantados defronte aos crematórios de Auschwitz. Essa é, obviamente, parte da minha mitologia particular.

Volto a tudo isso com muita frequência, e o assunto também me ocupa profissionalmente, muito embora eu nunca tenha mencionado diretamente o episódio. Mas quando me ponho a interpretar a continuidade da existência de normas sociais, de valores culturais e morais nas condições que foram criadas imediatamente à ascensão dos nazistas ao poder e por todo o caminho até a beira dos fossos dos assassinatos em massa e dos crematórios, então com muita frequência fico propenso, talvez inconscientemente, a escolher a crença naquela manifestação, uma manifestação sem esperança, mas a única possível naquela situação, embora, como já disse, eu pense que a ilusão aqui às vezes é muito maior do que a ferocidade do sarcasmo ou a cínica diversão de alguém que ainda era capaz de brincar com isso em face daquela mortandade. Esse modo de pensar talvez fosse, não direi mais realista, mas mais autêntico.

A questão permanece em aberto para mim, como os brações de Imre que se abriam para os lados e lá ficavam pendentes. Quer alguém escolha a esquerda ou a direita, ou quando eu escolho a esquerda ou a direita, esse é de fato todo o decorrer da minha existência ou do meu confronto com o passado e com o presente, daquele tempo até hoje.



(Paisagens da Metrópole da Morte - Reflexões sobre a memória e a imaginação; tradução de Laura Teixeira Motta)



(Ilustração: Entrada de trem de Auschwitz - Getty images)

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