Orgulhosa de si mesma, rica em vocabulos, mais do que rica, poderosa, a lingua portugueza!
Porque?
Vasta, immensuravel, capaz de qualquer manejo; ora prompta à subfracção de uma letra principal, como o A, ora docil e obediente à falta de uma particula importante do estylo, como o Verbo.
Entretanto, sempre bella e sempre magestosa. Quer na prosa, como nos ensinamentos de Castilho e Herculano, quer no verso dôce ou candente de Guerra Junqueiro ou Castro Alves.
Que de mysterios na sua origem e que de belezas na sua formação !
Que de encantos na sua existencia e quanto de importante e transcendente nas suas ligações com as outras linguas do universo !
Que de carinho e doçura em muitas de suas expressões, e que de propriedade, de força, de symbolismo, em um numero sem conta de seus termos!
Dahi , a sua grandeza, a sua importancia, o seu valor, até mesmo no conhecimento parcial ou incompleto das suas profundezas, das suas fontes, dos seus segredos occultos quaes outras gemmas de subido valor ou inexhauriveis e inestimaveis filões de ouro de lei. Por isso, ao trabalhador paciente e infatigavel no descobrimento dos seus mysterios, a recompensa, a paga, o lucro certo em thesouros inexgotaveis.
E bem assim o prazer, a gloria do conhecimento e trato com esse idioma commum a dois povos, irmãos em raça, irmãos em origem, quer no passado repleto de veneras e honrarias, quer no presente todo cheio de esperanças em um futuro ainda melhor e mais explendoroso.
Para quem o convivio intimo e discerimonio com essa soberana tão altiva de sua linhagem mais que nobre, tão imponente nos seus foros de fidalga cortezã?
Para bem poucos, em relação ao numero extraordinário de seus vassallos.
A uns, como Camões, Frei Luis de Souza, João de Deus, Vieira, Latino Coelho, Filinto, Bernardes, Eça de Queiroz e tantos outros, por indole, inclinação, intuição, gosto, prazer, necessidade, a exploração minuciosa, methodica e circumstanciada da formosura de seus arcanos, do não apparente de seus opulentos escrinios. A outros, por desejo imitativo, tendencia ao estudo, ou como eu, por divertimento ou passatempo. Todos, porem, grandes e pequenos, philologos ou não, sob o poderio dessa magestade irradiante, util e proveitosa, immarcessivel e bemfazeja como a luz do sol.
Della mil proveitos, della mil ensinamentos. Sem ella, para nós, povos latinos, a ignorancia de deslumbrantes riquezas, no conchego, na intimidade dos grandes mestres, desde os seculos remotos até aos nossos dias. Ali, Luiz Camões, poeta, guerreiro e mendigo, eterno consultor das analyses, super constructor da phrase tersa, alti eloquente cantor dos feitos gloriosos das gentes de Portugal, nos immortaes "Luziadas".
E, porque não Bocage, tão grande no seu estylo limpo e nitido, quão livre soberano, altivo e independente, verdadeiro e consiso na linguagem ?
No manuseio dos seus livros, a verdade do seu quilate, a expressão sincera do estylista como classico, e do classico como escriptor.
Depois, Alexandre Herculano, nas fontes abundantes de suas lições na nossa lingua; já nas maximas philosophicas de um profundo ensino ao povo, já entre o mais, no transumpto fiel de uma paixãao humana no peito de um sacerdote, fóra da vida real, mas, debaixo do grilhão dos olhos de Hermengarda, imagem do sacrifício do orgulho e preconceito de uma raça.
Batalhador audaz e destemido, corajoso e invencivel, tanto de homem quanto da féra, em "Eurico" o amor inextinguivel, e neste livro, em lanço por lanço, o manancial infindavel de uma literatura sadia e confortavel, pura e bôa, agradável e escorreita.
E o grande Camillo Castello Branco ? Em suas obras, o amor e as convenções sociaes sempre em lucta sem treguas e sem quartel. Em sua penna, o gladio vingador, a punição constante ao orgulho, sem visos de razão. Em seus assumptos, um grande bem às almas, um enorme prazer aos corações, uma nenia à paixão terrena e infeliz, uma benção, em summa, à pureza e à sublimidade dos mais serios e mais caros sentimentos affectivos.
Ao mesmo passo, o estudo profundo da nossa lingua, o ensino a todos nós, por meio das suas bellezas, o encantamento de um estylo todo delle, e, por isso mesmo, ao alcance de poucos e longe, da imitação de outrem.
Nos nossos dias, ainda lá no velho Portugal, "sob a nudez crua da verdade o manto diaphano da phantazia" de Eça de Queiroz, o imenso e incomparavel escriptor contemporaneo; commentador exacto dos usos e costumes da gente de sua terra, ao par de uma linguagem tao incisiva quão eloquente, tão mordaz quão penetrante, tão expressiva quão forte, e tão em harmonia com os sentimentos desses de lá e tambem de nós outros, seus irmãos por tantos laços. Nos seus livros, fieis espelhos do seu tempo, o caracter de um povo superior e o espirito brilhante de um literato immortal. Nas suas obras, a lição, a critica sensata e ferina, a postergação ao vício, o aniquilamento do futil, do hypocryta, na folhagem de falsa competencia ou na veste da honestidade bastarda, à luz diamantina do verdadeiro e impassivel julgamento dos homens, como elle, superiores no criterio e formidaveis na razão.
E, sobre todos, vivos ou mortos, poetas ou prosadores, de mim para commigo, Guerra Junqueiro, o rei da poesia, o sabio emfim, quer na doçura commovente dos versos de "Fiel", do causticante "O Melro", na cadência suave da "Musa em ferias", na delicadeza captivante dos "Simples", nas duras verdades da "Morte de D. João", na pungitiva commoção da "A Lágrima", na contrição das orações à Luz, ao Pão e ao Vinho , e tudo mais desse autor da "Patria" e tantos outros trabalhos de psychologia em rimas dc ferro em ou sopro ameno da brisa ciciante.
Entre nós, tanto na prosa quanto no verso, ora, um poeta sublime como Gonsalves Dias, colosso, na expressão de Vieira de Castro; ora, um condoreiro incomparável, como Castro Alves, o cantor dos escravos, eterno nas "Espumas Flutuante", na "Cachoeira de Paulo Affonso", na "Ode ao 2 de Julho", ou no "Navio Negreiro", em tudo finalmente, derivante de um cerebro ainda em flôr e tão cedo cadáver, mas, sempre o mesmo grandioso lyrico da phalange heróica da ultima geração. Ora, um Alvares de Azevedo, como o outro, flor em pó aos verdes annos, celebre nas "Noites da Taverna" ou na expressão em face à morte: "Que fatalidade, meu Pae!". Excesso de talento contra o excesso da vida, resultado de seiva em demazia em mente pouco sã, ausência de equilibrio natural decorrente do mcthodo ou meio de vida necessarios à conservação da existencia de um homem não commum, em Alvares de Azevedo, uma das mais lidimas esperanças da literatura nacional. Ora, um Tobias Bareto, poeta e doutor, o mestre do direito, o publicista, o humilde musico de philarmonica e sua pequena terra, e, mais tarde, o visionario em relação aos tempos actuaes do direito internacional, nos faucess hiantes do mais moderno canhão. Ora, um Laurindo Rebello, embora triste de mais; um Casimiro de Abreu; um Gonzaga de "Marilia" um Fagundes Varella; um Raymundo Correa, no vôo brando das "Pombas" ou no conceito philosophico do "Mal Secreto"; um Emilio de Menezes, de settas sempre de riste; um Machado de Assis, o grande critico; e, entre os vivos, os Alberto de Oliveira; Olavo Bilac, o principe e o sonhador; o Arthur de Salles o nosso pontifice; Borges dos Reis, lidario das gemmas brasileiras, traductor incomparavel da "Musa Franceza"; e, em summa, Roberto Correa, tão simples no trato e tão rico de inspiração, como o amiguinho das creanças.
Ora, entre os tribunos dos tempos de nós mais proximos, Victorino Pereira, Cesar Zama, Pedro Americano, Fausto Cardoso, a victima da politica por amor à sua terra tão pequena em territorio e tão grande em talentos, e tão feliz com seus filhos de valor. Na epoca presente, em primeiro llogar Ruy Barbosa, o sol deste Brasil, defensor tanto na paz quanto na guerra dos direitos da humanidadc soffredora. Advogado dos grandes e dos humildes, dos poderosos e dos fracos. Delegado do nosso pensamento; embaixador do nosso sentimentalismo.
Traductor impeccavel das nossas aspirações e dos nossos desejos, no concerto dos homens mais eminentes do mundo. Para elle, de nós todos, tudo de melhor nas homenagens, senão, para todos nós o plano inferior da nossa natural e justa veneração. Ao mesmo passo que, em logar de mór destaque, as Americas, a Europa, o universo, emfim, de braços em attitude amiga e cabeça curvas deante desse vulto tão pequeno no physico tão grande quanto um Deus. Para a hora terrivel de provações innominaveis da velha e culta Europa, em guerra de exterminio e de conquista, só o verbo inflamável e divino desse nosso Cicero, só a palavra evangelica do maior dos oradores do Brasil. Só a agua benta das suas conferencias magistraes sobre o direito das gentes na fervura indomavel das paixões em ebulição, no fogo acceso das ambições em jogo. Só o conforto de uma palavra como a desse apostolo do bem, desse missionario da fé, para estimulo dos combatentes, para balsamo às feridas, para allivio aos martyres e retemperamento da fibra dos defensoores impeterritos do sacrosanto pendão das leis da humanidade. A Ruy Barbosa, fiel da balança desta Republica, filho amado da Bahia, orgulho do Brasil, os meus anhelos bonançosos em pról de suas romagens do bem, da justiça, do trabalho e do amor aos fracos sob o poder dos mais fortes. A nós, o jubilo de uma raça inteira, o enthusiasmo de todos os patricios, olhos fixos no reflexo explendoroso desse astro de maior grandeza, no azulino céo da patria brasileira. De mim, pequenos demais, relativamente a sua immensidade o culto fervoroso ao seu talento, a veneração extrema à sua pessôa, o prazer de suas victorias retumbantes, uma homenagem simples como esta: seu nomc, sua lembrança, num trabalho modesto qual o meu. Como philologo, conhecedor profundo da nossa lingua, orador fluente e imaginoso, dominador de massas populares, jornalista invencivel, jurista excelso e inegualavel, de mim, a citação de sua figura estupenda, a referencia à sua inconfundivel individualidade, para honra deste meu devaneio literario, producto exclusivo da minha paciencia e do meu grande esforço.
Agora, um hymno aos pés do throno do preclaro mestre, Dr. Ernesto Carneiro Ribeiro. Quem mais senhor das imponencias da lingua portugueza que esse sabio preceptor de tantas gerações? Quem mais conhecedor das subtilezas do nosso bello idioma que esse glorioso arauto de tanto espirito brilhante, de tantos homens eminentes, sempre repeitadores da prata de sua cabeça, da felicidade do seu lar, da sua vida operosa, dos seus esforços ingentes no ensino da mocidade do Brasil? Ninguém mais do que elle. Em cada dia da sua 1abuta educativa em beneficio dos estudiosos, mais um fio branco como linho, nos seus nevados cabellos, mais um sulco na sua face austera, mais uma benção do ceo sobre o seu casal, todo amor, todo carinho, todo venturas sem par. Immortal nos "Serões Grammaticaes", bem como na celebre discussão do "Codigo Civil"; sublime nas suas conferencias, qual a ultima "Educação e Moral", electrisante, commovedora, eloquente, profunda e classica, em todas as suas obras, a rigidez de uma fibra tensa para o ensino, para a convicção por meio dos bons exemplos e dos melhores principios de sã philosophia. Sem offensas a outrem, sem receio dos milindres alheios, para o mestre excelso da nossa lingua, quer como o mais perfeito e mais completo investigador dos seus veios de ouro; quer como o maior dirigente de milheiros de estudantes, os meus emboras mais erfusivos, os meus applausos mais sinceros. Ao tempo em que, de mim, de todos os seus dilectos alumnos, seus amigos, um voto fervoroso pela conservação da sua vida, tão necessária à familia, quão util e proveitosa à comunhão social. No seu passado, um labaro de esperanças na victoria da instrucção. Nas suas obras, um pendão em frente ao povo, como um incentivo na peleja pela conquista de uma carta de abc. Num pedestal de ouro, tão luzente quão valioso, em relaçao aos sessenta annos de vida trabalhosa, a figura patriarchal e solemne desse idolo da mocidade e, desse homem não commum, o Dr Ernesto Carneiro Ribeiro. E muito abaixo da peanha, na planicie das coisas vulgares, e, por isso mesmo, pequeninas, a plebe dos manuseadores dos bons livros. Mais abaixo ainda, na confusão do pó dos poucos conhecimentos, milhares de neophitos como eu. E para mim, seu nome refulgente, seu alto valimento, com fêcho desta minha variedade literária.
Hosannas, mestre!
Hosannas, grande educador !
(*) Em 1915, o filólogo baiano Antônio Sá proferiu no Instituto Histórico da Bahia um longo discurso no qual em nenhum momento usava a letra “a”. Já neste discurso, proferido no mesmo Instituto, em 1918, ele não usa VERBO. Mantivemos a ortografia original.
(Ilustração: Anton Raphael Mengs: 1728-1779; Il Parnaso -1760 - 61)