I
Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO
Alta, dourada, me pensei.
Não esta pardacim, o pelo fosco
Pois há de rir-se de mim O PRECIOSO.
Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO
Lavei com a língua os cascos
E as feridas. Sanguinolenta e viva
Esta do dorso
A cada dia se abre carmesim.
Se me vires, SENHOR, perdoa ainda.
É raro, em sendo mula, ter a chaga
E ao mesmo tempo
Aparência de limpa partitura
E perfume e frescor de terra arada.
II
Há nojosos olhares sobre mim.
Um rei que passa
E cidadãos do reino, príncipes do efêmero.
Agora é só de dor o flanco trêmulo.
Há nojosos olhares. Rústicos senhores.
Açoites, fardos, vozes, alvoroço.
E há em mim um sentir deleitoso
Um tempo onde fui ave, um outro
Onde fui tenra e haste.
Há alguém que foi luz e escureceu.
E dementado foi humano e cálido.
Há alguém que foi pai. E era meu.
III
Escrituras de pena (diria mais, de pelos)
De infinita tristura, encerrada em si mesma
Quem há de ouvir umas canções de mula?
Até das pedras lhes ouço a desventura.
Até dos porcos lhes ouço o cantochão.
E por que não de ti, poeta-mula?
E ornejos de outras mulas se juntaram aos meus.
Escoiceando os ares, espumando de gozo
Assustando mercado e mercadores
Alegrou-se de mim o coração.
IV
Um dia fui o asno de Apuléius.
Depois fui Lucius, Lucas, fui Roxana.
Fui mãe e meretriz e na Betânia
Toquei o intocado e vi Jeshua.
(Ele tocou-me o ombro aquele Jeshua pálido).
Um tempo fui ninguém: sussurro, hálito.
Alguém passou, diziam? Ninguém, ninguém.
Agora sou escombros de um alguém.
Só caminhada e estio. Carrego fardos
Aves, patos, esses que vão morrer.
Iguais a mim também.
V
Ditoso amor de mula, Te ouvi murmurando
Ó Amoroso! Ditoso amor de mim!
Poder amar a Ti com este corpo nojoso
Este de mim, pulsante de outras vidas
Mas tão triste e batido, tão crespo
De espessura e de feridas.
Ditoso amor de mim! Tão pressuroso
De amar! (E de deitar-se ao pé
De tuas alturas). Corpo acanhado de mula
Este de mim, mas tão festivo e doce
Neste Agora
Porque banhado de ti, ó FORMOSURA.
VI
Tu que me vês
Guarda de mim o olhar.
Guarda-me o flanco.
Há de custar tão pouco
Guardar o nada
E seus resíduos ocos.
Orelhas, ventas
O passo apressado sob o jugo
Casco, subidas
Isso é tudo de mim
Mas é tão pouco...
Tu que me vês
Guarda de mim, apenas
Minha demasiada coitadez.
VII
Que eu morra junto ao rio.
O caudaloso frescor das águas claras
Sobre o pelo e as chagas.
Que eu morra olhando os céus:
Mula que sou, esse impossível
Posso pedir a Deus. E entendendo nada
Como os homens da Terra
Como as mulas de Deus.
VIII
Palha
Trapos
Uma só vez o musgo das fontes
O indizível casqueando o nada
Essa sou eu.
Poeta e mula
(Aunque pueda parecer
Que del poeta es locura).
(Estar sendo. Ter sido.)
(Ilustração: Aleah Chapin - Seattle, Estados Unidos – 1986 - And We Were Birds)
Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO
Alta, dourada, me pensei.
Não esta pardacim, o pelo fosco
Pois há de rir-se de mim O PRECIOSO.
Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO
Lavei com a língua os cascos
E as feridas. Sanguinolenta e viva
Esta do dorso
A cada dia se abre carmesim.
Se me vires, SENHOR, perdoa ainda.
É raro, em sendo mula, ter a chaga
E ao mesmo tempo
Aparência de limpa partitura
E perfume e frescor de terra arada.
II
Há nojosos olhares sobre mim.
Um rei que passa
E cidadãos do reino, príncipes do efêmero.
Agora é só de dor o flanco trêmulo.
Há nojosos olhares. Rústicos senhores.
Açoites, fardos, vozes, alvoroço.
E há em mim um sentir deleitoso
Um tempo onde fui ave, um outro
Onde fui tenra e haste.
Há alguém que foi luz e escureceu.
E dementado foi humano e cálido.
Há alguém que foi pai. E era meu.
III
Escrituras de pena (diria mais, de pelos)
De infinita tristura, encerrada em si mesma
Quem há de ouvir umas canções de mula?
Até das pedras lhes ouço a desventura.
Até dos porcos lhes ouço o cantochão.
E por que não de ti, poeta-mula?
E ornejos de outras mulas se juntaram aos meus.
Escoiceando os ares, espumando de gozo
Assustando mercado e mercadores
Alegrou-se de mim o coração.
IV
Um dia fui o asno de Apuléius.
Depois fui Lucius, Lucas, fui Roxana.
Fui mãe e meretriz e na Betânia
Toquei o intocado e vi Jeshua.
(Ele tocou-me o ombro aquele Jeshua pálido).
Um tempo fui ninguém: sussurro, hálito.
Alguém passou, diziam? Ninguém, ninguém.
Agora sou escombros de um alguém.
Só caminhada e estio. Carrego fardos
Aves, patos, esses que vão morrer.
Iguais a mim também.
V
Ditoso amor de mula, Te ouvi murmurando
Ó Amoroso! Ditoso amor de mim!
Poder amar a Ti com este corpo nojoso
Este de mim, pulsante de outras vidas
Mas tão triste e batido, tão crespo
De espessura e de feridas.
Ditoso amor de mim! Tão pressuroso
De amar! (E de deitar-se ao pé
De tuas alturas). Corpo acanhado de mula
Este de mim, mas tão festivo e doce
Neste Agora
Porque banhado de ti, ó FORMOSURA.
VI
Tu que me vês
Guarda de mim o olhar.
Guarda-me o flanco.
Há de custar tão pouco
Guardar o nada
E seus resíduos ocos.
Orelhas, ventas
O passo apressado sob o jugo
Casco, subidas
Isso é tudo de mim
Mas é tão pouco...
Tu que me vês
Guarda de mim, apenas
Minha demasiada coitadez.
VII
Que eu morra junto ao rio.
O caudaloso frescor das águas claras
Sobre o pelo e as chagas.
Que eu morra olhando os céus:
Mula que sou, esse impossível
Posso pedir a Deus. E entendendo nada
Como os homens da Terra
Como as mulas de Deus.
VIII
Palha
Trapos
Uma só vez o musgo das fontes
O indizível casqueando o nada
Essa sou eu.
Poeta e mula
(Aunque pueda parecer
Que del poeta es locura).
(Estar sendo. Ter sido.)
(Ilustração: Aleah Chapin - Seattle, Estados Unidos – 1986 - And We Were Birds)
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