Mas no meio do dia o mico-estrela fugiu, correu arrepulando pelas moitas de carquejo, trepou no cajueiro, pois antes de trepar ainda caçou maldade de correr atrás da perua, queria puxar o rabo dela. Todo mundo perseguiu ligeiro pra pegar, a cachorrada latindo, Vovó Izidra gritava que os meninos estavam severgonhados, Mãe gritava que a gente esperasse, que a Rosa sozinha pegava, Drelina gritava que deixassem o bichinho sonhim ganhar a liberdade do mato que ela dele, o Papaco-o-Paco gritava: “Mãe, olha a Chica me beliscando! Ai, ai, ai, Pai, a Chica puxou meu cabelo!...” – era copiadinho o choro do Tomezinho. A gente tinha de fazer diligência, são já estava em d’os cachorros espatifarem o pobre do mico. Não se pegou: ele mesmo, sozinho por si, quis voltar para a cabacinha. Mas foi aí que o Dito pisou sem ver num caco de pote, cortou o pé: na cova-do-pé, um talho enorme, descia de um lado, cortava por baixo, subia da outra banda.
- “Meu-deus-do-céu, Dito!” Miguilim ficava tonto de ver tanto sangue. “- Chama Mãe! Chama Mãe!” – o Dito pedia. A Rosa carregou o Dito, lavaram o pé dele na bacia, a água ficava vermelha só sangue, Vovó Izidra espremia no corte talo de bálsamo da horta, depois puderam amarrar um pano em cima de outro, muitos panos, apertados; ainda a gente sossegou, todo o mundo bebeu um gole d’água, que a Rosa trouxe, beberam num copo. O Dito pediu para não ficar na cama, armaram a rede para ele no alpendre.
Miguilim queria ficar sempre perto, mas o Dito mandava ele fosse saber todas as coisas que estavam acontecendo. – “Vai ver como é que o mico está.” O mico estava em pé na cabacinha, comendo arroz, que a Roa dava. – “Quando o vaqueiro Saluz chegar, pergunta se é hoje que a vaca Bigorna vai dar cria.” “- Miguilim, escuta o que Vovó Izidra conversar com a Rosa, do vaqueiro Jé mais a Maria Pretinha”. O Dito gostava de ter notícia de todas as vacas, de todos os camaradas que estavam trabalhando nas outras roças, enxadeiros que meavam. Requeria se algum bicho tinha vindo estragar as plantações, de que altura que o milho estava crescendo. – “Vovó Izidra, a senhora já vai fazer o presépio?” “- Daqui a três dias, Dito, eu começo.” O Dito não podia caminhar, só podia pulando num pé só, mas doía, porque o corte tinha apostemado muito, criando matéria. Chamando, Gigão vinha, vigiava a rede, olhava, olhava, sacudia as orelhas. – “Você está danado, Dito, por causa?” “- Estou não, seo Lusaltino, costumei muito com essas coisas...” “- Depressa que sare!” “- Uê, p’ra se sarar basta estar doente.”
Meu-deus-do-céu, e o Dito já estava mesmo quase bom, só que tornou outra vez a endefluxar, e de repente ele mais adoeceu muito, começou a chorar – estava sentindo dor nas costas e dor na cabeça tão forte, dizia que estavam enfiando um ferro na cabecinha dele. Tanto gemia e exclamava, enchia a casa de sofrimento. Aí Luisaltino montou a cavalo, ia daí a mais de um de viagem, aonde tinha um fazendeiro que vendia, buscar remédio para tanta dor. Vovó Izidra fez um pano molhado, com folhas-santas amassadas, amarrou na cabeça dele. – “Vamos rezar, vamos rezar!” – Vovó Izidra chamava, nunca ela tinha estado tão sem sossego assim. Decidiram dar ao Dito um gole d’água com cachaça. Mas ele tinha febre muito quente, vomitava tudo, nem sabia quando estava vomitando. Vovó Izidra veio dormir no quarto, levaram a caminha do Tomezinho para o quarto de Luisaltino. Mas Miguilim pediu que queria ficar, puseram uma esteira no chão, para ele, porque o Dito tinha de caber sozinho no catre. O Dito gemia, e a gente ouvia o barulhinho da Vovó Izidra repassando as contas do terço.
No outro dia, o Dito estava melhorando. Só que tinha soluço, queira beber água-com-açúcar. Miguilim ficava sentado no chão, perto dele. Vovó Izidra tinha de principiar o presépio, o Dito não podia ver quando ela ia tirar os bichos do guardado na canastra – boi, leão elefante, águia, urso, camelo, pavão – toda qualidade bichos que nem tinha deles ali no Mutum nem nos Gerais, e Nossa Senhora, São José, os Três Reis e os Pastores, os soldados, o trem-de-ferro, a Estrela, o Menino Jesus. Vovó Izidra vez em quando trazia uma coisa ou outra para mostrar ao Dito: os panos, que ela endurecia com grude – moía carvão e vidro, e malacacheta, polvilhava no grude. Mas Dito queria tanto poder ver quando ela estava armando o presépio, forrando os tocos e caixotes com aqueles panos – fazia as serras, formava a Gruta. Os panos pintados com anil e tinta amarela de pacari, misturados davam um verde bonito, produzido manchado, como todos os matos no rebroto. E tinha umas bolas grandes, brilhantes de muitas cores, e o arroz plantado numa lada e deixando nascer no escuro, para não ser verde e crescer todo amarelo descorado. Tinha a lagoa, de água num prato-fundo, com os patinhos e peixes, o urso-branco, uma rã de todo tamanho, o cágado, a foquinha bicuda. Quase a maior parte daquelas coisas Vovó Izidra possuía e carregava aonde ia, desde os tempos de sua mocidade. Depois de pronto, era pôr o Menino Jesus na Lapinha, na manjedoura, com a mãe o pai dele e o boizinho e o burro. E punha um abacaxi-maçã, que fazia o presépio cheirar bonito. Todos os anos, o presépio era a coisa mais enriquecida, vinha gente estranha dos Gerais, para ver, de muitos redores. Mas agora o Dito não podia ir ajudar a arrumação, e então Miguilim gostava de não ir também, ficar sentado no chão perto da cama, mesmo quando o Dito tinha sono, o Dito agora queria dormir quase todo o tempo.
A Chica e o Tomezinho podiam espiar armar o presépio o prazo que quisessem, mas eram tão bobinhos que pegavam inveja de Miguilim e o Dito não estarem vendo também. E então vinham, ficavam da porta do quarto, os dois mais o Bustica – aquele filho pequeno do vaqueiro Saluz. – “Vocês não podem ir ver presepe, vocês então vão para o inferno!” – isso a Chica tinha ensinado Tomezinho a dizer. E tinha ensinado o Bustica a fazer caretas. O Dito não se importava, até achava engraçado. Mas então Miguilim fez de conta que estava contando ao Dito uma estória – do Leão, do Tatu e da Foca. Aí Tomezinho, a Chica e aquele menino Bustica também vinham escutar, se esqueciam do presépio. E o Dito mesmo gostava, pedia: - “Conta mais, conta mais...” Miguilim contava, sem carecer de esforço, estórias compridas, estava tão alegre nervoso, aquilo para ele era o entendimento maior. Se lembrava de seo Aristeu. Fazer estórias, tudo com um viver limpo, novo, de consolo. Mesmo ele sabia, sabia: Deus mesmo era quem estava mandando! – “Dito, um dia eu vou tirar a estória mais linda, mais minha de todas: que é a com a Cuca Pingo-de-Ouro!...” O Dito tinha alegrias nos olhos; depois dormia, rindo simples, parecia que tinha de dormir a vida inteira.
A Pinta-Amarela tirou os pintinhos, todos vivos, e no meio as três perdizinhas. A Rosa trouxe as três, em cima de uma peneira, para o Dito conhecer. Mas o Dito mandava Miguilim ir espiar, no quintal, e depois dizer para ele como que elas viviam de verdade. A dor-de-cabeça do Dito tinha voltado forte, mas agora Luisaltino tinha trazido as pastilhazinhas, ele engolia, com gole d’água, melhorava. – “Dito, as três perdizinhas são diabinhas! A galinha pensa que elas são filhas dela, mas parece que elas sabem que não são. Todo o tempo se assanham de querer correr para o bamburral, fogem do meio dos pintinhos irmãos. Mas a galinha larga os pintos, sai atrás delas, chamando, chamando, cisca para elas comerem os bichinhos da terra...” A febre era mais muita, testa do Dito quente que pelava. – “Miguilim, vou falar uma coisa, para segredo. Nem p’ra mim você não torna a falar.” O Dito sentava na cama, mas não podia ficar sentado com as pernas esticadas direito, as pernas só teimavam em ficar dobradas nos joelhos. Tudo endurecia, no corpo dele. – “Miguilim, espera, eu estou com a nuca tesa, não tenho cabeça pra abaixar...” De estar pior, o Dito quase não se queixava.
- “Miguilim, Vovó Izidra toda hora está xingando Mãe, quando elas estão sem mais ninguém perto?” Miguilim não sabia, Miguilim quase nunca sabia as coisas das pessoas grandes. Mas o Dito, de repente pegava a fazer caretas sem querer, parecia que ia dar ataque. Miguilim chamava Vovó Izidra. Não era nada. Era só a cara da doença na carinha dele.
Depois, a gente cavacava para tirar minhocas, dar para as perdizinhas. Mas o mico-estrela pegou as três, matou, foi uma pena, ele abriu as barriguinhas delas. Miguilim não contou ao Dito, por não entristecer. – “As perdizinhas estão assustadinhas, estão crescendo por demais... Amanhã é o dia de Natal, Dito!” “- Escuta, Miguilim, uma coisa você me perdoa? Eu tive inveja de você, porque o Papaco-o-Paco fala Miguilim me dá um beijim... e não aprendeu a falar meu nome...” O Dito estava com jeito: as pernas duras, dobradas nos joelhos, a cabeça dura na nuca, só para cima ele olhava. O pior era que o corte do pé ainda estava doente, mesmo pondo cataplasma doía muito demorado. Mas o papagaio tinha de aprender a falar o nome do Dito! – “Rosa, Rosa, você ensina o Papaco-o-Paco a chamar alto o nome do Dito?” “- Eu já pelejei, Miguilim, porque o Dito mesmo me pediu. Mas ele não quer falar, não fala nenhum, tem certos nomes assim eles teimam de não entender...” O Dito gostava de comer pipocas. A Rosa estava assando pipoca: para elas estalarem bem graúdas, a Rosa batia na tampa da caçarola com uma colher de ferro e pedia a todos para gritarem bastante, e a Rosa mesma gritava os nomes de toda pessoa que fosse linguaruda: “- Pipoca, estrala na boca de Siá Tonha do Tião! Estrala na boca de dona Jinuana, da Rita Papuxa!...” Miguilim vinha trazer as pipocas, saltantes, contava o que a Rosa tinha gritado, prometia que o Papaco-o-Paco já estava começando a soletrar o nome do Dito. O Dito gemia de mais dor, com os olhos fechados. – “Espera um pouco, Miguilim, eu quero escutar o berro dessas vacas...” Que estava berrando era vaca Acabrita. A vaca Dobradiça. A vaca Atucã. O berro comprido, de chamar bezerro. – “Miguilim, eu sempre tinha vontade de ser um fazendeiro muito bom, fazenda grande, tudo roça, tudo pastos, cheios de gado...” – “Mas você vai ser, Dito! Vai ter tudo...” O Dito olhava triste, sem desprezo, do jeito que a gente olha triste num espelho. – “Mas depois tudo quanto há cansa, no fim tudo cansa...” Miguilim discorreu que amanhã Vovó Izidra ia pôr o Menino Jesus na manjedoura. Despois, cada dia ela punha os Três Reis mais adiantados um pouco, no caminho da Lapinha, todo dia eles estavam um tanto mais perto – um Rei Branco, outro Rei Branco, o Rei Preto – no Dia de Reis eles todos três chegavam... “- Mas depois tudo cansa, Miguilim, tudo cansa...” E o Dito dormia sem adormecer, fica dormindo mesmo gemendo.
Então, de repente, o Dito estava pior, foi aquela confusão de todos, quem não rezava chorava, todo mundo queria ajudar. Luisaltino tornou a selar cavalo, ia tocar de galope, para buscar seo Aristeo, seo Deográcias, trazer remédio de botica. Pai não ia trabalhar na roça, mais no meio dali resistia, com os olhos avermelhados. O Dito às vezes estava zarolho, sentido gritava alto com a dor-de-cabeça, sempre explicavam que a febre dele era mais forte, depois ele falava coisas variando, vomitava, não podia padecer luz nenhuma, e fica dormindo fundo, só no meio do dormir dava um grito repetido, feio, sem acordo de si. Miguilim desentendia de tudo, tonto tonto. Ele chorou em todas partes da casa.
Veio seo Deográcias, avelhado e magro, dizia que o Patori não era ruim assim como todos pensavam, dizia que Deus para punir o mundo estava querendo acabar com todos os meninos. Veio seo Aristeu, dessa vez não brincava nem ria, abraçou muito Miguilim e falou, apontando para o Dito: - “Eu acho que ele é melhor do que nós... Nem as abelhinhas hoje não espanam asas, tarefazinha... Mas tristeza verdadeira, também nem não é prata, é ouro, Miguilim... Se se faz...” Veio seo Brízido Boi, que era padrinho do Tomezinho: um homem enorme, com as botas sujas de barro seco, ele chorava junto, aos arrancos, dizia que não podia ver ninguém sofrer. Veio a mãe do Grivo, com o Grivo, ela era quase velhinha, beijou a mão do Dito. E de repente veio vaqueiro Jé, com a Maria Pretinha, os dois tão vergonhosos, só olhavam para o chão. Mas ninguém não ralhou, até Pai disse que pelo que tinha havido eles precisavam nenhum de ir s’embora, ficavam aqui mesmo em casa os dois trabalhando; e Vovó Izidra disse que, quando viesse padre por perto, pelo direito se casavam. O vaqueiro Jé concordou, pegou a mão da Maria Pretinha, para chegarem na beira da cama do Dito, ele cuidava muito da Maria Pretinha, com aqueles carinhos, senhoroso. E então o povo todo acompanhou Vovó Izidra em frente do oratório, todos ajoelharam e rezavam chorando, pedindo a Deus a saúde que era do Dito. Só Mãe ficou ajoelhada na beira da cama, tomando conta do menino dela, dizia.
A reza não esbarrava. Uma hora o Dito chamou Miguilim, queria ficar com Miguilim sozinho. Quase que ele não podia mais falar. – “Miguilim, e você não contou a estória da Cuca-Pingo-de-Ouro...” “- Mas eu não posso, Dito, mesmo não posso! Eu gosto demais dela, estes dias todos...” Como é que podia inventar a estória? Miguilim soluçava. – “Faz mal não, Miguilim, mesmo ceguinha mesmo, ela há de me reconhecer...” “- No Céu, Dito? No Céu?!” – e Miguilim desengolia da garganta um desespero. – “Chora não, Miguilim, de quem eu gosto mais, junto com Mãe, é de você...” E o Dito também não conseguia mais falar direito, os dentes dele teimavam em ficar encostados, a boca mal abria, mas mesmo assim ele forcejou e disse tudo: - “Miguilim, Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente não pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro!...” E o Dito quis rir para Miguilim. Mas Miguilim chorava aos gritos, sufocava, os outros vieram, puxaram Miguilim de lá.
Miguilim doidava de não chorar mais e de correr por um socorro. Correu para o oratório e teve medo dos que ainda estavam rezando. Correu para o pátio, chorando no meio dos cachorros. Mãitina caminhava ao redor da casa, resmungando coisas na linguagem, ela também sentia pelo estado do Dito. – “Ele vai morrer, Mãitina?!” Ela pegou na mão dele, levou Miguilim, ele mesmo queria andar mais depressa, entraram no acrescente, lá onde ela dormia estava escuro, mas nunca deixava de ter aquele foguinho de cinzas que ela assoprava. – “Faz um feitiço para ele não morrer, Mãitina! Faz todos os feitiços, depressa, que você sabe...” Mas aí, no voo do instante, ele sentiu uma coisinha caindo em seu coração, e adivinhou que era tarde, que nada mais adiantava. Escutou os que choravam e exclamavam, lá dentro de casa. Correu outra vez, nem soluçava mais, só sem querer dava aqueles suspiros fundos. Drelina, branca como pedra de sal, vinha saindo: - “Miguilim, o Ditinho morreu...”
Miguilim entrou, empurrando os outros: o que feito uma loucura ele naquele momento sentiu, parecia mais uma repentina esperança. O Dito, morto, era a mesma coisa que quando vivo, Miguilim pegou na mãozinha morta dele. Soluçava de engasgar, sentia as lágrimas quentes, maiores do que os olhos. Vovó Izidra o puxou, trouxe para fora do quarto. Miguilim sentou no chão, num canto, chorava, não queria esbarrar de chorar, nem podia. – “Dito! Dito!...” Então se levantou, veio de lá, mordia a boca de não chorar, para os outros o deixarem ficar no quarto. Estavam lavando o corpo do Dito, na bacia grande. Mãe segurava com jeito o pezinho machucado doente, como caso pudesse doer ainda no Dito, se o pé batesse na beira da bacia. O carinho da mão de Mãe segurando aquele pezinho do Dito era a coisa mais forte neste mundo. – “Olha os cabelos bonitos dele, o narizinho...” – Mãe soluçava. – “Como o pobre do meu filhinho era bonito...” Miguilim não aguentava ficar ali; foi para o quarto de Luisaltino, deitou na cama, tapou os ouvidos com as mãos e apertou os olhos no travesseiro – precisava de chorar, toda-a-vida, para não ficar sozinho.
(Manuelzão e Miguilim)
(Ilustração: Simone Matias)