A lâmpada pendia do fio empoeirado, que desaparecia no alto, entre os caibros grossos, cujas ripas negras e grandes telhas vãs. Gélida, imóvel e ameaçadora. Um anteparo de cartão deixava meio quarto na penumbra. Na zona mais escura, hirto em sua cadeira de vime, Bernardo olhava a mulher e o berço de pinho. Fazia tempo que os dois estavam em silêncio, estremecendo de leve a cada movimento do menino. Quantas manhãs e tardes, pensava o homem, quantas noites duraria ainda o suplício? A sombra do anteparo envolvia Teresa e a criança, uma cadeira vazia, o berço, o toucador.
Nas ruas, a noite emudecera. Sob as aglaias, à sombra dos portões, ao pé das janelas meio fechadas, os namorados haveriam trocado seus adeuses. Com uns gestos cheios de torpor, sem alegria e como sem esperança, as famílias tinham recolhido as cadeiras dos passeios e era quase certo que todas as portas já estavam fechadas. As luzes amarelas dos postes, nas esquinas, iluminavam um mundo semimorto e quente.
O menino gemeu. Teresa estremeceu e curvou-se. O homem voltou o rosto. No fundo de seus olhos azuis houve um lampejo, um brilho intenso de tristeza e raiva. Que cena tão simples havia sido – lembrava. Tão mansa e tão dilacerante. Sua mãe não faria aquilo. Era mulher para levar três noites acordada, para esquecer de si e a ninguém abandonar na hora da aflição. Mas que existia agora, de tudo o que ela fora, de sua como que secreta e áspera, porém inabalável afeição? Que cena simples! “Agora, Teresa, ele está dormindo – tinha falado Suzana. E são horas, Ascânio vai deitar-se, tem aula amanhã. Qualquer coisa que houver...”. Nem ao menos acrescentara: “Chame-me.” Tocara de leve na fronte cada vez mais óssea de José, no ombro da filha e saíra do quarto, sem falar com ele, Bernardo, que por sua vez não levantara a cabeça. Ascânio demorara-se ainda um instante, de pé junto ao berço, fitando o companheiro de brinquedos, sobre quem se habituara a exercer uma vigilância cheia de cuidados. Mas a avó chamara-o autoritária, ele beijara Teresa, abraçara-a, beijara a mão de Bernardo, e saíra correndo. A porta da sala fora fechada. Teresa continuara sentada, sem dizer palavra, olhando para o rosto da criança.
Bernardo refletia: Agira erradamente? Era justa a atitude que assumira, tudo para obedecer a uma exigência íntima, convicção que ninguém – Teresa, sim – parecia entender? E seria que ela realmente a houvera aceito e compreendido? Dentro na alma, no coração? Decerto que um dia, mais cedo ou mais tarde, ele abandonaria o emprego, onde se sentia um pouco desprezível, e onde tinha a certeza de que seu coração murchava, definhava aos poucos, como um preso. Sim, um dia entregaria o lugar. Mas não naquela hora, não assim. Seria tão simples condescender, deixar o tempo passar! E fora tão insensato o que fizera! Se bem executava o seu trabalho, importava-lhe o resto? O certo era contar devidamente, como sempre fizera, os volumes conduzidos pelos caminhões, cobrar o imposto devido, prestar as devidas contas. Que Agripa Coutinho e seu tesoureiro, e seus secretários, fossem todos ladrões, dizia-lhe respeito? Não era ele que roubava o dinheiro arrecadado. E no entanto, se continuasse...
Levantou-se. Trancou a porta da sala, voltou ao quarto e ficou de pé por trás da mulher. Aquela espera, aquelas noites sem sono destruíam-na. Ele recordou com pesar a pacífica beleza que a envolvera sempre e que, até bem pouco tempo, parecia-lhe guardada, externa, imune às violências da vida. Mesmo agora, essa beleza como que pulsava, surdamente, no corpo castigado.
- Teresa...
Não houve resposta e tudo continuou em silêncio, a casa, as ruas desertas. Um homem passou cantando, foi embora, a voz e o rumor de seus passos se perderam. Ele pôs as mãos nos ombros de Teresa, que respirou fundo e, com um movimento súbito, agarrou-as. Bernardo sentiu, por baixo de suas mãos, o corpo da mulher estremecer, arfar e explodir em soluços.
- Teresa... – O menino, prostrado, parecia morto. – Isso não pode continuar assim.
Ela moveu a cabeça, num gesto que podia significar assentimento, impaciência ou temor. Ergueu-se, foi sentar-se na cama, sob a luz da lâmpada, lutando contra o pranto. Estendia as mãos, num gesto de perplexidade:
- Ele, ele... – repetia. Se fosse um de nós... Mas ele! Olhe para o rosto dele, veja o nosso filho.
- Nem tudo pode ser como a gente quer, Teresa.
- Nada tem sido como a gente quer.
O homem veio devagar, sentou-se pesadamente a seu lado.
- Eu sei. Tudo meu é assim.
Espaçaram-se os soluços, cessaram. Uma brisa que ninguém sentiu fez oscilar o duro fio da lâmpada. Ambos, ao mesmo tempo, souberam que a hora temida estava próxima, e deram-se as mãos.
- Não faz dois anos, foi a minha mãe. E agora... Ela estaria aqui. E também Suzana devia ter ficado...
- Foi melhor assim. O que vai acontecer é penitência nossa.
- Eu sei porque ela não ficou.
- Não vale a pena falar nisto, Bernardo. Não importa o que ela diga ou pense. Importa o que eu penso, o que eu sinto.
Ele se desprendeu, ficou de pé entre a penumbra e a claridade. Por que aquela lembrança, repentina e vívida? Por que aquela lembrança, enquanto o filho morria? Às noites de sexta-feira, até de madrugada e entrando pelo sábado, passavam caminhões para o Recife, carregados. Ele ficava na estrada, fazendo a cobrança das taxas municipais, metido num capote grosso, o parabellum escondido na cintura. Serviço ingrato. Mas então... Se a noite era limpa e se havia uma pausa no incessante passar de caminhões, ele ficava na ponte olhando a luz das estrelas sobre o rio e se lembrava das grandes noites antigas, de suas viagens passadas, ou com Antônio Chá, ou com Dominicano. Então prometia a si mesmo que um dia largaria aquele posto, meteria as alpercatas nas estradas, lavaria o sangue e os pulmões com ventos novos.
- Eu queria que você compreendesse.
- Não precisa explicar-me, Bernardo.
- Mas eu tenho culpa. É preciso...
- Eu não quero saber se você tem culpa.
- Mesmo agora, se tivesse que decidir, eu fazia o mesmo. Apesar de tudo, fazia de novo o que fiz. Esse prefeito agora é um ladrão, Teresa. Eu posso ter errado, mas não estava em mim continuar. Outro qualquer ficava, lavava as mãos. – Sentou-se outra vez na cadeira de vime, que rangeu. – É o que todo mundo diz.
- Eu já disse que não era preciso explicar.
- Não tenho mais onde buscar dinheiro. Todos têm juízo, todos acham que eu pedi demissão porque quis e que ninguém tem nada com o que eu faço. Ninguém diz nada, mas eu sinto. Só mesmo sua mãe diz com franqueza o que pensa.
Ambos ficaram a olhar para o menino, fixo. A lâmpada imobilizara-se outra vez e pairava sobre o quarto. Inflexível. Ao longe, uma criança chorava e ainda mais distante, talvez na cadeia, um homem pôs-se a uivar como um demônio. Na sala ou na cozinha, um caibro gemeu. Bernardo cerrou os dentes, cruzou as mãos. Sem se voltar, feriu com brutalidade o núcleo ardente e oculto, em torno do qual, desde a véspera, giravam todos os seus atos e palavras:
- Nós estamos loucos. Esta miséria! Como foi possível a gente ficar de acordo numa decisão como aquela?
Teresa começo a murmurar, os lábios trêmulos:
- Nós ficamos, Bernardo, nós ficamos...
Parecia castigada, supliciada pela evocação do diálogo, aquele surdo, incrível diálogo, ao fim do qual – havendo concordado, por falta de meios, em nada mais fazer pela criança – ambos haviam como que ruído sobre o leito, exaustos, cada um para seu lado e receando tocar-se, os braços em cruz, os olhos nas telhas vãs.
- Deixá-lo morrer! – continuava o homem. Seremos dois monstros? Como é que você pôde concordar?
Ela se levantou, ficou de costas:
- Não fale mais, Bernardo. Eu sabia!
- Que é que você sabia?
- Você tinha de terminar acusando-me. Não me acuse – suplicou.
Ele escondeu o rosto nas mãos. Era a história de sempre -as traições da alma. E chegaria assim ao fim de sua vida, jamais se dominando por completo, sempre em luta com as partes odiosas de si mesmo, aquelas que fugiam, que acusavam, que condescendiam. A quem sobre a terra, a quem no mundo quisera proteger como a Teresa? A quem mais fortemente amara? E quem, mais do que ela, merecia a sua proteção, o seu querer, seu zelo?
- Teresa, eu não queria que você sofresse.
Ela moveu a cabeça tristemente:
- Eu sei. – Permanecia curvada sob o jorro vertical e como abrasador da lâmpada, os braços fortemente cruzados sobre o peito, os pés unidos na sombra. A claridade ocre se enredava, morria em seus cabelos apagados; mas a alvura do colo, apenas inclinado, refletia-a com uma espécie de doçura. – Eu sei.
O homem ergueu-se outra vez, mas não avançou um passo: ficou olhando o dorso da mulher, sem ousar tocá-la, até que ela se volveu penosamente e fitou-o. Aqueles olhos sempre calmos e agora tão desesperados, ardendo numa chama interna e sombria!
Mais uma vez chamou-a – e arrependeu-se, pois a sua voz desvelara no silêncio um círculo acerado, uma ausência ou uma presença, um peso. Que faltava na noite, que laço de esperança lhes fora retirado? Nas têmporas suaves da mulher, Bernardo via o sangue latejar. E de súbito, ela estremeceu, aproximou-se do berço, estendeu a mão. Bernardo chegou perto e se deteve, os punhos cerrados, colérico, olhando os finos dedos trêmulos, erguidos sobre a face tranquila da criança. Naquele instante, pensava, tinha início para ambos uma vida mais severa e mais sábia.
Teresa voltou-se, encontrou seus olhos, baixou a cabeça. Veio devagar, ergueu lentamente os braços e apertou-o de encontro a si. Não tocara o filho – mas sabia! E ali ficaram os dois, de olhos fechados, até que um duplo soluço trespassou-os e eles se abraçaram com mais força.
O anteparo na lâmpada, agora, resguardava o morto. Os galos cantaram nos quintais, silenciaram, voltaram a cantar. Madrugada alta, o homem na cadeia pôs-se novamente a uivar. Depois, as luzes da cidade se apagaram, veio confuso rumor dos passarinhos e uma claridade fresca desceu pelas frestas do telhado.
(O fiel e a pedra)
(Ilustração: Omer Charlet - Mère au chevet de son enfant mort)
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