A quem, entre aqueles que hoje cruzam a Place Saint-Michel, as figuras da fonte de mesmo nome, cercada de garrafas de cerveja e de Coca-Cola, têm ainda algo a dizer? Quem seria capaz de decifrar historicamente aquela alegoria para turistas, de reconhecer que o arcanjo de espada em punho, nos ombros de Satanás, devia representar na época a vitória da ordem imperial e burguesa sobre a revolução, o triunfo do bem sobre o povo do mal de junho de 1848?
Alguns contemporâneos conceberam as jornadas de junho de 1848, esse primeiro embate de vulto entre a república liberal e o proletariado insurrecto em Paris, como um genocídio social, uma tentativa sem precedentes de exterminar toda uma classe da sociedade. Em razão de sua monstruosidade, esse acontecimento logo foi presa do recalque, e com ele a literatura que, de uma forma ou de outra, quisera lhe dar voz.
“A revolução de junho proporciona o espetáculo de um combate encarniçado como nem Paris nem o mundo jamais viram”, escreve em 28 de junho de 1848 Friedrich Engels na Neue Rheinische Zeitung. Alexandre Dumas, redator e repórter de Le Mois, seu periódico “suprapartidário”, pensa que, comparados a esse combate, tanto a queda da Bastilha quanto o levante monarquista de 13 vendemiário de 1795, esmagado com sangue - é a primeira vez que se usam canhões em Paris -, foram meras brincadeiras de criança, o mesmo valendo para a revolução de julho de 1830 e a Revolução de fevereiro de 1848.
Os romancistas republicanos Erckmann-Chatrian julgam a batalha de junho “mil vezes mais terrível que a de Waterloo”, e Tomasi de Lampedusa apazigua o herói de seu Gattopardo, pouco antes de estourar a revolução siciliana, com a ideia de que todas as revoluções logo se transformam em comédias e que mesmo na França, “com ressalva do junho de 1848, no fundo nunca se deu nada de sério". Herzen, Baudelaire e Flaubert – e também Heine – não economizam superlativos; o significado peculiar que eles conferem às Journées de Juin ressuma do teor e da estrutura de seus próprios textos.
Em fevereiro de 1848, o povo e a burguesia haviam trocado olhares apaixonados. Depois de poucos meses, se não semanas, a atmosfera modificara-se, a percepção social mudara radicalmente: as antigas imagens do inimigo, tidas por superadas, emergiram novamente. Seu uso demagógico pela imprensa contribuiu para o desenrolar catastrófico da repressão, que por sua vez só fez confirmar vencedores e vencidos em seus fantasmas de classe. Desse modo, os acontecimentos de junho de 48 puderam reforçar perenemente um maniqueísmo social já existente na França.
A fórmula “novos bárbaros” aplicada ao proletariado remonta à primeira insurreição dos tecelões lioneses, de 1831. Le Constitutionnel e, com ele, todos os adversários dos insurgentes e dos socialistas advertem, em junho de 1848, com mais urgência do que nunca, sobre os “bárbaros do século XIX”, tomados como o perigo mais manifesto para a civilização. Quer se trate da Kölnische Zeitung ou de um órgão da grande burguesia como a Revue des Deux-Mondes (“Que requinte de barbárie!”), ou ainda do Frankfurter Journal (“esses atos refinados de barbárie selvagem cometidos pelos insurrectos”): qualquer um que teme pela ordem sente os trabalhadores, tão logo façam reivindicações e desçam às ruas para pleiteá-las, como bárbaros – ou age como se eles o fossem. A metáfora dos bárbaros impõe-se como por si mesma a inúmeros contemporâneos, e não só aos jornalistas:
Balzac fala do “longo duelo entre a barbárie da Mão parisiense e a civilização da Cabeça”. Lamartine batiza os insurrectos de “os Bárbaros da república”; Tocqueville, a partir de fevereiro, e Musset, somente em junho, sentem-se impelidos à lembrança dos “vândalos”; a elite intelectual e o burguês mediano recorrem, com espantosa prontidão, a fórmulas como essas ou à bestialização dos adversários sociais e ideológicos, a qual não é mais sentida, por assim dizer, como metafórica. Se em teoria o bárbaro ainda pode ser salvo, já que civilizável – quando ele surge em hordas, é claro, essa possibilidade diminui sensivelmente -, a besta é incorrigível em qualquer hipótese: o inimigo puro e simples, a natureza má, impermeável a motivos razoáveis, movida unicamente por “instintos” e “paixões doentias”. Um protótipo da época como Eugène Pelletan, partidário de Lamartine em 1848, expressa uma opinião corrente quando chama os trabalhadores “a classe tenebrosa que tem paixões e instintos, mas nunca ideias”, e ele não se acha só ao formular com tamanha franqueza a arrogância do burguês em junho.
A todo “cidadão honesto” impunham-se nos lábios e na pena tais referências animais, e isso sem prejuízo de seu grau de cultura; Mérimée, Musset ou Berlioz falam e escrevem com a mesma naturalidade, a propósito dos insurrectos, como de animais selvagens, cães raivosos, tigres, hienas, lobos e parasitas imundos, a exemplo dos escrevinhadores de segunda, dos romancistas de folhetim ou dos filisteus. Não há mais diferença digna de menção entre o que se diz privadamente e o discurso público. Berlioz vê a França como “uma floresta povoada de homens inquietos e lobos raivosos”, Mérimée pergunta a uma amiga se ela é capaz de compreender “esses enraivecidos” e logo arremata: “Eles aprendem do melodrama umas migalhas de heroísmo, e todos têm os mesmos instintos de animal feroz”. Em outra ocasião, ele elogia um amigo da província por ter atirado nos trabalhadores como se fossem coelhos de sua fazenda; depois, ele se rejubila novamente com as delações entre a população operária: “Sabeis que é um bom sinal quando os lobos se batem entre si”.
Não era nada incomum – e isso também foi dito do republicano Cavaignac – falar do povo como da “canalha” que devia ser fuzilada tão logo arreganhasse os dentes. Seria possível coligir volumes inteiros com tais citações, que não se restringem ao momento específico do junho de 48, mas pertencem ao repertório da retórica contrarrevolucionária e florescem especialmente nas situações de crise. Quanto mais os conflitos se agravam, menores são os escrúpulos, parece, em recorrer à bestialização do inimigo, o que explica por que, na história da França moderna, esse fenômeno nunca foi tão observado quanto na época da Revolução Francesa, no verão de 1848 e durante a Comuna de Paris. (Dessa perspectiva, também, o maio de 68 foi um eco remoto).
Para os partidários da ordem, todos os "vermelhos" sonham com um futuro irrealizável. Em junho, a associação do revolucionário ou socialista ao sonhador é um reflexo conservador; por exemplo, cite-se aqui o Le Contitutionnel de 24 de junho de 1848: "Os sonhos, as extravagâncias [...], as quimeras orgulhosas renderam os seus frutos". Entretanto, observadores moderados ainda distinguem os sonhadores inofensivos dos sonhadores perigosos, como por exemplo os socialistas utópicos, que querem realizar seus objetivos sem violência, e os blanquistas, que, "em outras épocas, teriam incitado uma noite de São Bartolomeu"; porém todos se inclinam a acusar os representantes da esquerda radical de serem os sonhadores que confundiram os sentidos dos bravos trabalhadores. Não raro essa censura prende-se à da perfídia diabólica, da barbárie, do delírio ou da bestialidade. Assim diz Hugo sobre o antes tão belo povo de fevereiro, corrompido pelas "más leituras": "Há os que alimentam não sei que tristes sonhos de pilhagem, de massacre e de incêndio", e acrescenta que os panfletistas tornaram selvagens os mesmos homens dos quais Napoleão teria transformado em heróis. E o tom de Hugo é o de toda a imprensa burguesa, o da literatura panegírica de junho dos Prarond-Le Vavasseur, de Boullaye, de Dügge, o das declarações privadas do mais obscuro filisteu de província, como aquele Vachez de Lyon, que numa carta emprega a expressão "veneno dos sonhos socialistas".
(O Velho Mundo Desce aos Infernos; tradução de José Marcos Macedo.)
(Ilustração: Saint Michel terrassant le dragon by Francisque Duret)
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