sexta-feira, 28 de abril de 2023

POEMA, de Micheliny Verunschk

 



[para Ana Cristina César]



I



retalhar a carne

que a carne é fraca

tanto se lhe bata

chicote ou sálvia

tanto se lhe faça

desenho a faca

pau pedra porra

brava brecha brasa

cantemos aleluias

pele pica pala

retalhar a carne

que a carne é graça

renda e louvor

céu e pássara.



II



se render à carne

que a carne é fraca

tanto se lhe queira

o lume a brasa

tanto se lhe bata

onda ou palma

espinho que penetre

uva vulva gruta

cantemos nossa graça

e a pele mais elástica

se render à carne

que a carne é graça

dobra e redobra

peixe e água.



III



se fartar de carne

que a carne é fraca

tanto se lhe morda

o dente a acha

tanto se lhe busque

a mão a alma

olho que a desnude

peitopêlo lábios

broto lua grelo

saudemos nossa caça

se fartar de carne

que a carne é graça

tecido que se esgarça

terra e casa.



(Ilustração: foto de Katia Muricy: Ana Cristina César)

terça-feira, 25 de abril de 2023

DISCURSO NA INAUGURAÇÃO DE BRASÍLIA, Juscelino Kubitschek

 


Não me é possível traduzir em palavras o que sinto e o que penso nesta hora, a mais importante de minha vida de homem público. A magnitude desta solenidade há de contrastar por certo com o tom simples de que se reveste a minha oração.

Dirigindo-me a todos os meus concidadãos, de todas as condições sociais, de todos os graus de cultura, que, dos mais longínquos rincões da Pátria, voltais os olhos para a mais nova das cidades que o Governo vos entrega, quero deixar que apenas fale o coração do Vosso Presidente.

Não vos preciso recordar, nem quero fazê-lo agora, o mundo de obstáculos que se afiguravam insuportáveis para que o meu Governo concretizasse a vontade do povo, expressa através de sucessivas constituições, de transferir a Capital para este planalto interior, centro geográfico do País, deserto ainda há poucas dezenas de meses.

Não nos voltemos para o passado, que se ofusca ante esta profusa radiação de luz que outra aurora derrama sobre a nossa Pátria.

Quando aqui chegamos, havia na grande extensão deserta apenas o silêncio e o mistério da natureza inviolada. No sertão bruto iam-se multiplicando os momentos felizes em que percebíamos tomar formas e erguer-se por fim a jovem Cidade. Vós todos, aqui presentes, a estais vendo, agora, estais pisando as suas ruas, contemplando os seus belos edifícios, respirando o seu ar, sentindo o sangue da vida em suas artérias.

Somente me abalancei a construí-la quando de mim se apoderou a convicção de sua exequibilidade por um povo amadurecido para ocupar e valorizar plenamente no território que a Providência Divina lhe reservara. Nosso parque industrial e nossos quadros técnicos apresentavam condições para traduzir no betume, no cimento e no aço as concepções arrojadas da arquitetura e do planejamento urbanístico modernos.

Surgira uma geração excepcional, capaz de conceber e executar aquela “arquitetura em escala maior, a que cria cidades e, não, edifícios”, como observou um visitante ilustre. Por maior que fosse, no entanto, a tentação de oferecer oportunidade única a esse grupo magnífico, em que se destacam Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, não teria ela bastado para decidir-me a levar adiante, com determinação inflexível, obra de tamanha envergadura. Pesou, sobretudo, em meu ânimo, a certeza de que era chegado o momento de estabelecer o equilíbrio do País, promover o seu progresso harmônico, prevenir o perigo de uma excessiva desigualdade no desenvolvimento das diversas regiões brasileiras, forçando o ritmo de nossa interiorização.

No programa de metas do meu Governo, a construção da nova Capital representou o estabelecimento de um núcleo, em torno do qual se vão processar inúmeras realizações outras, que ninguém negará fecundas em consequências benéficas para a unidade e a prosperidade do País.

Viramos no dia de hoje uma página da História do Brasil. Prestigiado, desde o primeiro instante, pelas duas Câmaras do Congresso Nacional e amparado pela opinião pública, através de incontável número de manifestações de apoio, sinceras e autenticamente patrióticas, dos brasileiros de todas as camadas sociais que me acolhiam nos pontos mais diversos do território nacional, damos por cumprido o nosso dever mais ousado; o mais dramático dever.

Só nos que não conheciam diretamente os problemas do nosso Hinterland percebemos, a princípio, dúvida, indecisão. Mas no País inteiro sentimos raiar a grande esperança, a companheira constante em toda esta viagem que hoje concluímos; ela amparou-nos a todos, a mim e a essa esplêndida legião que vai desde Israel Pinheiro, cujo nome estará perenemente ligado a este cometimento, até ao mais obscuro, ao mais ignorado desses trabalhadores infatigáveis que tornaram possível o milagre de Brasília.

Em todos os instantes nas decepções e nos entusiasmos, levantando o nosso ânimo e multiplicando as nossas forças, mais de que qualquer outro amparo ou guia, foi a Esperança valimento nosso. Um homem, cujos olhos morreram e ressuscitaram muitas vezes na contemplação da grandeza - aludo, novamente, a André Malraux - viu em Brasília a Capital da Esperança.

Seu dom de perceber o sentido das coisas e de encontrar a expressão justa fê-lo sintetizar o que nos trouxe até aqui, o que nos deu coragem para a dura travessia, que foi a substância, a matéria-prima espiritual desta jornada.

Olhai agora para a Capital da Esperança do Brasil. Ela foi fundada, esta cidade, porque sabíamos estar forjada em nós a resolução de não mais conter o Brasil civilizado numa fímbria ao longo do oceano, de não mais vivermos esquecidos da existência de todo um mundo deserto, a reclamar posse e conquista.

Esta cidade, recém-nascida, já se enraizou na alma dos brasileiros; já elevou o prestígio nacional em todos os continentes; já vem sendo apontada como demonstração pujante da nossa vontade de progresso, como índice do alto grau de nossa civilização; já a envolve a certeza de uma época de maior dinamismo, de maior dedicação ao trabalho e à Pátria, despertada, enfim, para o seu irresistível destino de criação e de força construtiva.

Deste Planalto Central, Brasília estende aos quatro ventos as estradas da definitiva integração nacional: Belém, Fortaleza, Porto Alegre, dentro em breve o Acre. E por onde passam as rodovias vão nascendo os povoados, vão ressuscitando as cidades mortas, vai circulando, vigorosa, a seiva do crescimento nacional.

Brasileiros! Daqui, do centro da Pátria, levo o meu pensamento a vossos lares e vos dirijo a minha saudação. Explicai a vossos filhos o que está sendo feito agora. É sobretudo para eles que se ergue esta cidade síntese, prenúncio de uma revolução fecunda em prosperidade. Eles é que nos hão de julgar amanhã.

Neste dia - 21 de abril - consagrado ao Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, ao centésimo trigésimo oitavo ano da Independência e septuagésimo primeiro da República, declaro, sob a proteção de Deus, inaugurada a cidade de Brasília, Capital dos Estados Unidos do Brasil.



Brasília, 21 de abril de 1960.




(Ilustração: Juscelino Kubistchek - pronunciamento por ocasião do hasteamento da bandeira nacional - foto arquivo público – DF)

sábado, 22 de abril de 2023

NOITE CLARA DEPOIS DA PRIMEIRA NOITE, de Iara Rennó




ainda sinto seu cheiro que me compele

suspiros e arrepios à flor da pele

pois ele veio em cheio lobo e homem

quando só com mais fome se mata a fome

porque olhos nos olhos penetrou-me

enquanto mordíamos ambos os lábios

carnudos doces úmidos e cálidos



entre as ancas beijou-me com calma

como se quisesse penetrar minh’alma

como quem reza se ajoelha e agradece

reverencia a lua cheia que desce

recebe a luz do novo dia que nasce



me deito só mas em sua companhia

em meio a bruma da memória viva

minha vulva pulsa e se regozija

excita-se e seus licores regurgita

toco meu seio esquerdo que se entumece

por onde andará quem já não aparece?

largo-me nos braços largos da lembrança

e caio em sono bendito feito criança



(Língua brasa carne flor)



(Ilustração: Kate Halsall - sleeping portraits)

quarta-feira, 19 de abril de 2023

GRANDE SERTÃO: VEREDAS – CARTA A JOÃO GUIMARÃES ROSA, de Manuel Bandeira


AMIGO MEU, J. Guimarães Rosa, mano-velho, muito saudar!

Me desculpe, mas só agora pude campear tempo para ler o romance de Riobaldo.

Como que pudesse antes? Compromisso daqui, obrigação dacolá… Você sabe: a vida é um Itamarati – viver é muito dificultoso.

Ao despois de depois, andaram dizendo que você tinha inventado uma língua nova e eu não gosto de língua inventada. Sempre arreneguei de esperantos e volapuques.

Vai-se ver, não é língua nova nenhuma a do Riobaldo. Difícil é, às vezes. Quanta palavra do sertão! A princípio, muito aplicadamente, ia procurar a significação no dicionário. Não encontrava. Pena o título: Grande Sertão: Veredas. Nenhum dicionário dá a palavra “vereda” com o significado que você mesmo define à página 74: “Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico. O resto pequeno é vereda.” Tinha vezes que pelo contexto eu inteligia: “ciriri dos grilos”, “gugo da juriti” etc. Mas até agora não sei, me ensine, o que é “arga”, “suscenso”, “lugugem” e um desadôro de outras vozes dos gerais. Tinha vezes que eu nem podia atinar se a palavra era nome de bicho vivente, plantinha ou coisa sem corpo nem cor nem coragem, abstrato que se diz, não é? Ou é? Ou será?

Ainda por cima disso, você fez Riobaldo poeta, como Shakespeare fez Macbeth poeta. Natural: por que um jagunço dos gerais demais do Urucuia não poderá ser poeta? Pode sim. Riobaldo é você se você fosse jagunço A sua invenção é essa: pôr o jagunço poeta inventando dentro da linguagem habitual dele. O vocabulário dele já é riquíssimo, dá a impressão que não ficou de fora nenhuma dicção de seus pagos e arredores; aumentado com os neologismos, sempre de boa formação linguística, ficou um potosi, nossa! A gente acaba tendo que entregar os pontos, nem que seja um Gilberto Amado. O diabo é que depois de ler você a gente começa a se sentir e cantar eu sou pobre, pobre, pobre, rema, rema, rema, ré.

Só que acho que não precisava contar de um rojão só, como o Joyce do último capítulo de Ulysses, as 594 páginas da história de Riobaldo. Quantas horas levaria? Eu levei dias para ler. Ainda bem que você virgulou tudo, minudente. E o caso de Diadorim, seria mesmo possível? Você é dos gerais, você é que sabe. Mas eu tive a minha decepção quando se descobriu que Diadorim era mulher. Honni soit qui mal y pense, eu preferia Diadorim homem até o fim. Como você disfarçou bem! nunca que maldei nada.

Amigo meu J. Guimarães Rosa, mano-velho, o menino Guirigó e o cego Borromeu são duas criações geniais. Aliás todo esse mundo de gente vive com uma intensidade assombrosa. E o sertão?

O sertão é uma espera enorme.

E o silêncio?

O vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio, põe no colo.

Tão deleitável tudo, nem que estar nos braços da linda moça Rosa’uarda, ou de Nhorinhá, de Ana Dazuza filha, ou daquela prostitutriz que proseava gentil sobre as sérias imoralidades.

Ah Rosa, mano-velho, invejo é o que você sabe:

O diabo não há! Existe é o homem humano.

Soscrevo.

13/3/1957



(Poesia completa e prosa, 1967)



(Ilustração: Arlindo Daibert - Diadorim II - série de xilogravuras a partir de Grande Sertão Veredas)

domingo, 16 de abril de 2023

DESDÉM, de Eliana Iglesias

 




Tinha na boca o gosto do desejo

O corpo inquieto, obra do diabo

Fazia sexo sem o menor pejo

Envolvimento algum levava a cabo



Alardeava sua liberdade

Satirizando os apaixonados

Assim criou a própria identidade

Sem se importar em ter alguém ao lado



Passa-se o tempo e tantas certezas

Agora meras bolhas de sabão

Não mais asseguram-lhe a beleza



Vai pela noite em louca procura

Esvai-se o poder de sedução

Hoje, na boca, o gosto da amargura



(Ilustração: Kupka - La Môme à Gallien – 1910)


quinta-feira, 13 de abril de 2023

JULGAR OU COMPREENDER?, de Marc Bloch

 


A fórmula do velho Ranke é célebre: o historiador propõe apenas descrever as coisas “tais como aconteceram, wie es eigentlich gewesen”. Heródoto o dissera antes dele, “ta eonta legein, contar o que foi”. O cientista, em outros termos, é convidado a se ofuscar diante dos fatos. Como muitas máximas, esta talvez deva sua fortuna apenas à sua ambiguidade. Podemos ler aí, modestamente, um conselho de probidade: este era, não se pode duvidar, o sentido de Ranke. Mas também um conselho de passividade. De modo que eis, colocados de chofre, dois problemas: o da imparcialidade histórica; o da história como tentativa de reprodução ou como tentativa de análise.

Mas haverá então um problema da imparcialidade? Ele só se coloca porque a palavra, por sua vez, é equívoca.

Existem duas maneiras de ser imparcial: a do cientista e a do juiz. Elas têm uma raiz comum, que é a honesta submissão à verdade. O cientista registra, ou melhor, provoca o experimento que, talvez, inverterá suas mais caras teorias. Qualquer que seja o voto secreto de seu coração, o bom juiz interroga as testemunhas sem outra preocupação senão conhecer os fatos, tais como se deram. Trata-se, dos dois lados, de uma obrigação de consciência que não se discute.

Chega um momento, porém, em que os caminhos se separam. Quando o cientista observou e explicou, sua tarefa está terminada. Ao juiz resta ainda declarar sua sentença. Calando qualquer inclinação pessoal, pronuncia essa sentença segundo a lei? Ele se achará imparcial. Sê-lo-á, com efeito, no sentido dos juízes. Não no sentido dos cientistas. Pois não se poderia condenar ou absolver sem tomar partido por uma tábua de valores, que não depende de nenhuma ciência positiva. Que um homem tenha matado um outro é um fato eminentemente suscetível de prova. Mas castigar o assassino supõe que se considere o assassino culpado: o que, feitas as contas, é apenas uma opinião sobre a qual todas as civilizações não entraram num acordo.

Ora, por muito tempo o historiador passou por uma espécie de juiz dos Infernos, encarregado de distribuir o elogio ou o vitupério aos heróis mortos. Acreditamos que essa atitude corresponda a um instinto poderosamente enraizado. Pois todos os professores que tiveram de corrigir trabalhos de estudantes sabem o quão pouco esses jovens se deixam dissuadir de brincar, do alto de suas carteiras, de Minos ou Osíris. São, mais que nunca, as palavras de Pascal: “Todo mundo age como deus ao julgar: isto é bom ou ruim.” Esquecemos que um juízo de valor tem sua única razão como preparação de um ato e com sentido apenas em relação a um sistema de referências morais, deliberadamente aceito. Na vida cotidiana, as exigências do comportamento nos impõem essa rotulagem, geralmente bastante sumária. Ali onde nada mais podemos, ali onde os ideais comumente recebidos diferem profundamente dos nossos, ela é apenas um estorvo. Então estaríamos tão seguros sobre nós mesmos e sobre nossa época para separar, na trupe de nossos pais, os justos dos malditos? Elevando ao absoluto os critérios, todos relativos, de um indivíduo, de um partido ou de uma geração, que brincadeira infligir suas normas à maneira como Sila governou Roma ou Richelieu os Estados do rei Cristianíssimo! Como aliás nada é mais variável, por natureza, que semelhantes decretos, submetidos a todas as flutuações da consciência coletiva ou do capricho pessoal, a história, ao permitir muito frequentemente que o quadro de honra prevaleça sobre a caderneta de experiências, gratuitamente deu-se ares da mais incerta das disciplinas: às ocas acusações sucedem as incontáveis vãs reabilitações. Robespierristas, antirrobespierristas, nós vos imploramos: por piedade, dizei-nos simplesmente quem foi Robespierre.

Além disso, se o julgamento apenas acompanhava a explicação, o leitor estará livre para pular a página. Por infelicidade, à força de julgar, acaba-se, quase fatalmente, por perder até o gosto de explicar. Com as paixões do passado misturando seus reflexos aos partis pris do presente, o olhar se turva sem remédio e, assim como o mundo dos maniqueus, a humana realidade vira apenas um quadro em preto e branco. Montaigne já nos chamara a atenção: “A partir do momento em que o julgamento pende para um lado, não se pode evitar de contornar e distorcer a narração nesse viés.” Do mesmo modo, para penetrar uma consciência estranha separada de nós pelo intervalo das gerações, é preciso quase se despojar de seu próprio eu. Para lhe dizer algumas verdades, basta permanecer o que se é. O esforço é certamente menos rude. Assim como é muito mais fácil escrever pró ou contra Lutero do que escrutar sua alma; acreditar que o papa Gregório VII está acima do imperador Henrique IV ou Henrique IV acima de Gregório VII do que desemaranhar as razões profundas de um dos grandes dramas da civilização ocidental! Vejam ainda, fora do plano individual, a questão dos bens nacionais. Rompendo com a legislação anterior, o governo revolucionário resolve vendê-los em parcelas e sem licitação. Era, incontestavelmente, comprometer gravemente os interesses do Tesouro. Certos eruditos, em nossos dias, ergueram-se veementemente contra essa política. Que coragem caso, presentes na Convenção, ali tivessem ousado falar nesse tom! Longe da guilhotina, essa violência sem perigo diverte. Mais vale investigar o que queriam, realmente, os homens do ano III. Almejavam, antes de tudo, favorecer a aquisição da terra por seu pequeno povo da província; ao equilíbrio do orçamento, preferiam consolar os camponeses pobres, garante de sua fidelidade a uma nova ordem. Estavam errados? Ou tinham razão? Quanto a isso, o que me importa a decisão retardatária de um historiador? Apenas lhe pedimos que não se deixe hipnotizar por sua própria escolha a ponto de não mais conceber que uma outra, outrora, tenha sido possível. A lição do desenvolvimento intelectual da humanidade é no entanto clara: as ciências sempre se mostraram mais fecundas e, por conseguinte, muito mais proveitosas, enfim, para a prática, na medida em que abandonavam mais deliberadamente o velho antropocentrismo do bem e do mal. Hoje riríamos de um químico que separasse os gases ruins, como o cloro, dos bons, como o oxigênio. Mas se a química, em seus primórdios, tivesse adotado essa classificação, teria corrido o sério risco de nela chafurdar, em grande detrimento do conhecimento dos corpos.

Resguardemo-nos, contudo, de precipitar a analogia. A nomenclatura de uma ciência dos homens terá sempre seus traços específicos. A das ciências do mundo físico exclui o finalismo. Palavras como sucesso ou acaso, inabilidade ou habilidade, apenas seriam capazes de desempenhar aí, no melhor dos casos, o papel de ficções, sempre prenhes de perigos. Elas pertencem, ao contrário, ao vocabulário normal da história. Pois a história lida com seres capazes, por natureza, de fins conscientemente perseguidos.

Podemos admitir que um comandante de exército que trava uma batalha empenhe-se, ordinariamente, em vencê-la. Caso a perca, sendo as forças, de ambos os lados, aproximadamente iguais, será perfeitamente legítimo dizer que manobrou mal. Era-lhe habitual um acidente assim? Tampouco escaparemos do mais escrupuloso julgamento de fato observando que este não era provavelmente um estratagema muito bom. Seja ainda uma mudança monetária, cujo objeto era, suponhamos, favorecer os devedores à custa dos credores. Qualificá-la de excelente ou deplorável seria tomar partido em favor de um dos dois grupos; por conseguinte, transportar arbitrariamente, para o passado, uma noção toda subjetiva do bem público. Mas imaginemos que, casualmente, a operação destinada a aliviar o peso das dívidas tenha desembocado, na prática — isso foi visto —, em um resultado oposto. “Fracassou”, dizemos, sem nada fazer com isso senão constatar, honestamente, uma realidade. O ato falho é um dos elementos essenciais da evolução humana. Assim como de toda psicologia.

E mais. Nosso general, por acaso, conduziu voluntariamente suas tropas à derrota? Ninguém hesitará em declarar que traiu: porque, sem rodeios, é assim que a coisa se chama. Mostrar-se-ia, por parte da história, uma delicadeza algo pedante em recusar o socorro do simples e correto léxico do uso comum. Restará depois investigar o que a moral comum da época ou do grupo pensava de tal ato. A traição pode ser, a seu modo, um conformismo: como testemunham os condottieri da antiga Itália.

Uma palavra, para resumir, domina e ilumina nossos estudos: “compreender”. Não digamos que o historiador é alheio às paixões; ao menos, ele tem esta. Palavra, não dissimulemos, carregada de dificuldades, mas também de esperanças. Palavra, sobretudo, carregada de benevolência. Até na ação, julgamos um pouco demais. É cômodo gritar “à forca!”. Jamais compreendemos o bastante. Quem difere de nós — estrangeiro, adversário político — passa, quase necessariamente, por mau. Inclusive, para travar as inevitáveis lutas, um pouco mais de compreensão das almas seria necessário; com mais razão ainda para evitá-las, enquanto ainda há tempo. A história, com a condição de ela própria renunciar a seus falsos ares de arcanjo, deve nos ajudar a curar esse defeito. Ela é uma vasta experiência de variedades humanas, um longo encontro dos homens. A vida, como a ciência, tem tudo a ganhar se esse encontro for fraternal.



(Apologia da história ou o ofício do historiador; tradução de André Telles)



(Ilustração: Karl Brullov - The Last Day of Pompeii - 1827-1833)

segunda-feira, 10 de abril de 2023

BANHO (RURAL), de Zila Mamede


 



De cabaça na mão, céu nos cabelos

à tarde era que a moça desertava

dos arenzés de alcova. Caminhando



um passo brando pelas roças ia

nas vingas nem tocando; reesmagava

na areia os próprios passos, tinha o rio



com margens engolidas por tabocas,

feito mais de abandono que de estrada

e muito mais de estrada que de rio



onde em cacimba e lodo se assentava

água salobre rasa. Salitroso

era o também caminho da cacimba



e mais: o salitroso era deserto.

A moça ali perdia-se, afundava-se

enchendo o vasilhame, aventurava



por longo capinzal, cantarolando:

desfibrava os cabelos, a rodilha

e seus vestidos, presos nos tapumes



velando vales, curvas e ravinas

(a rosa de seu ventre, sóis no busto)

libertas nesse banho vesperal.



Moldava-se em sabão, estremecida,

cada vez que dos ombros escorrendo

o frio d’água era carícia antiga.



Secava-se no vento, recolhia

só noite e essências, mansa carregando-as

na morna geografia de seu corpo.



Depois, voltava lentamente os rastos

em deriva à cacimba, se encontrava

nas águas: infinita, liquefeita.



Então era a moça regressava

tendo nos olhos cânticos e aromas

apreendidos no entardecer rural.



(Ilustração: Henri Matisse - the blue nude – 1907)

sexta-feira, 7 de abril de 2023

SEXO VIRTUAL, de Zygmunt Bauman

 




Emily Dubberley, autora de Brief Encounters: The Women’s Guide to Casual Sex, escreveu que, em nossos dias, obter sexo “é como encomendar uma pizza. … Agora você pode conectar-se à internet e encomendar genitália”. Não há mais necessidade de flertar ou fazer a corte, não é preciso empenhar todas as energias para obter a aprovação do(a) parceiro(a), nem mover mundos e fundos para merecer e conquistar o consentimento do outro; é dispensável insinuar-se aos olhos dela ou dele e esperar um longo tempo, quiçá uma eternidade, para que todos esses esforços deem resultados.

Isso significa, porém, que acabaram todas aquelas coisas que costumavam fazer do encontro sexual um acontecimento tão estimulante, embora incerto, uma busca de aventura romântica, arriscada e cheia de armadilhas. Não há ganhos sem perdas. O sexo pela internet, entusiasticamente recebido por tanta gente, não é exceção a essa regra melancólica. Alguma coisa se perdeu – se bem que é comum ouvir muitos homens e quase igual número de mulheres dizerem que os ganhos valeram o sacrifício. Os ganhos são: conveniência – redução do esforço a um mínimo; velocidade – encurtamento da distância entre o desejo e sua satisfação; e garantia contra as consequências – que, como é próprio das consequências, nem sempre seguem o roteiro estabelecido e desejado. Consequências raramente são antecipadas, cobiçadas e bem-recebidas. Elas tanto podem se revelar desagradáveis e problemáticas quanto alegres e auspiciosamente agradáveis.

A publicidade de um website que vende sexo rápido e seguro (“sexo sem compromisso”), e se vangloria de ter 2,5 milhões de assinantes, diz o seguinte: “Encontre parceiros sexuais de verdade esta noite mesmo”. Outro site, que conta com milhões de associados espalhados pelo mundo afora, especializado em satisfazer o espírito aventureiro de parte do público gay, escolheu um slogan diferente: “O que você quiser, quando quiser”.

Os dois slogans mal conseguem esconder a mesma mensagem: os produtos ambicionados estão prontos para o consumo instantâneo, imediato; o desejo e sua satisfação fazem parte do mesmo pacote; você é que manda, mensagem que soa doce e apaziguadora a ouvidos treinados por milhões de comerciais (cada um de nós é obrigado/manipulado a assistir a mais comerciais por ano que nossos avós durante a vida inteira). Hoje, ao contrário do que ocorria no tempo de nossos avós, esses anúncios prometem prazeres sexuais tão instantâneos quanto café ou sopa em pó (“basta adicionar água quente”). Eles degradam, condenam e ridicularizam os prazeres espacial ou temporalmente remotos, que só podem ser obtidos com paciência, abnegação e muita boa-vontade, longo e árduo aprendizado, esforços desajeitados, complicados e às vezes extremamente difíceis – e que fazem pressentir tantos erros quanto as tentativas necessárias.

Algumas décadas atrás, esse tipo de “complexo de impaciência” foi sintetizado na famosa reclamação de Margareth Thatcher contra o Sistema Nacional de Saúde britânico e as razões que apontou para explicar por que era melhor deixar ao mercado a prestação de serviços médicos: “Quero um médico de minha escolha no momento que eu quiser.” Pouco tempo depois, inventaram-se os meios – varinhas mágicas no formato de cartão de crédito; mesmo que não realizasse integralmente o sonho da sra. Thatcher, o cartão pelo menos contribuiu para torná-lo plausível e crível. Esses instrumentos puseram a filosofia consumista ao alcance de um número crescente de indivíduos que bancos e financeiras consideravam merecedores de atenção e benevolência.

A sabedoria popular antiga e atemporal adverte-nos que “não se deve contar com os ovos antes de serem postos”. Acontece que agora os ovos da nova estratégia do prazer instantâneo já foram postos em profusão, toda uma geração deles, e temos todo o direito de começar a contar com eles. O psicoterapeuta Phillip Hodson já os contou, e suas conclusões mostram o resultado da fase eletrônica virtual da revolução sexual em curso como uma faca de dois gumes.

Hodson identificou o paradoxo do que qualifica como “cultura da gratificação instantânea, descartável” (que ainda não é universal, mas está em rápida expansão): pessoas que, numa só noite, podem namorar (eletronicamente) mais gente que seus pais – para não falar nos pais deles – teriam encontrado durante toda a vida, mais cedo ou mais tarde descobriam que, como acontece com todos os vícios, a satisfação obtida diminui a cada nova dose da droga. Tivessem elas a possibilidade de examinar com atenção o que suas experiências propiciam, descobririam, para sua surpresa e frustração (embora tarde demais), que o romantismo, o lento e complicado processo de sedução que hoje só lhes é dado ler nos velhos livros, não significava obstáculos desnecessários, redundantes, cansativos e irritantes a bloquear o caminho para a “coisa em si” (como os fizeram crer); estes são ingredientes importantes e até cruciais da própria “coisa”, aliás, de todas as coisas eróticas e “sensuais”, partes de seu charme e atrativo.

Em suma, ganhou-se em quantidade o que se perdeu em qualidade. O “novo sexo melhorado” via internet na verdade não é a “coisa” que fascinara e encantara nossos ancestrais e os inspirara a escrever inúmeros volumes de poesia para louvar sua glória e esplendor, para confundir o êxtase conjugal com o céu. Hodson, a exemplo de muitos outros pesquisadores, também descobriu que, mais que ajudar a criar vínculos e diminuir a tragédia dos sonhos não realizados, o sexo pela internet ajuda a enfraquecer e tornar mais superficiais as relações laboriosamente construídas na vida real off-line; por isso mesmo, é menos satisfatório e cobiçado, menos “valioso” e valorizado.

Georg Simmel observou muito tempo atrás que a medida do valor das coisas é o sacrifício necessário para obtê-las. Um número maior de pessoas pode “fazer sexo” com maior frequência. Porém, paralelamente a isso, cresce o número dos que vivem sozinhos, se sentem solitários e sofrem de agudos sentimentos de abandono. Essas pessoas que buscam com desespero fugir à dor desses sentimentos são assediadas pelas promessas de mais “sexo on-line”. E acabam compreendendo que, em vez de lhes saciar a fome de companhia humana, o sexo proporcionado pela internet só aumenta a sensação de perda e o sentimento de humilhação, solidão e privação da experiência do calor humano.

Cabe lembrar outra questão que vem à tona quando se avalia o saldo de perdas e ganhos. Os sites de relacionamento pela internet (e mais, os sites que oferecem sexo instantâneo) tendem a apresentar parceiros para transas de uma só noite em catálogos nos quais os “produtos disponíveis” são classificados de acordo com marcas selecionadas – altura, tipo de corpo, origem étnica, pelos corporais etc. (os critérios variam de acordo com o público-alvo e com o que se considera “relevante”). Desse modo, os clientes podem ajustar o(a) parceiro(a) escolhido(a) a partir de pedaços ou partes que parecem determinar a qualidade do “conjunto” e os prazeres sexuais desejados. Nesse processo, de algum modo, o “ser humano” se desintegra e desaparece: não se vê mais a floresta para além das árvores.

Escolher seu parceiro sexual num catálogo de traços peculiares e usos desejáveis, como se faz com mercadorias selecionadas em catálogos on-line de empresas comerciais, perpetua o mito que o ato origina; e insinua por si mesmo que cada um de nós, seres humanos, somos menos pessoas ou personalidades cujas qualidades não repetíveis estão todas contidas em nossa singularidade ou peculiaridade, mas uma coleção desordenada de atributos vendáveis ou difíceis de vender.



(44 cartas do mundo líquido moderno; tradução de Vera Pereira)



(Ilustração: Gustav Klimt - Danae - 1907)


terça-feira, 4 de abril de 2023

TERNURA, de David Mourão-Ferreira

 





Desvio dos teus ombros o lençol,

Que é feito de ternura amarrotada,

Da frescura que vem depois do sol,

Quando depois do sol não vem mais nada…



Olho a roupa no chão: que tempestade!

Há restos de ternura pelo meio,

Como vultos perdidos na cidade

Onde uma tempestade sobreveio…



Começas a vestir-te, lentamente,

E é ternura também que vou vestindo,

Para enfrentar lá fora aquela gente



Que da nossa ternura anda sorrindo…

Mas ninguém sonha a pressa com que nós

A despimos assim que estamos sós!



(Cinco séculos de sonetos portugueses)



(Ilustração: Frida Castelli 14)

sábado, 1 de abril de 2023

A CASA DE PENSÃO, de James Joyce




A sra. Mooney era filha de um açougueiro. Sabia guardar as coisas para si: era uma mulher determinada. Tinha casado com o capataz do pai e aberto um açougue perto de Spring Gardens. Mas assim que o sogro morreu a vida do sr. Mooney começou a degringolar. Ele bebia, saqueava o caixa, se afundava em dívidas. Não resolvia nada lhe arrancar promessas: sempre as quebrava alguns dias mais tarde. Brigando com a esposa na frente dos fregueses e comprando carne ruim arruinou o negócio. Certa noite foi para cima da esposa com o cutelo e ela precisou dormir na casa de um vizinho.

A partir de então os dois começaram a viver separados. Ela procurou o padre e conseguiu a separação e a guarda das crianças. Recusou-se a dar dinheiro, comida ou alojamento ao ex-marido; e assim ele se viu obrigado a trabalhar como contínuo para o delegado. Era um bêbado corcunda e desleixado com um rosto pálido e um bigode branco e sobrancelhas brancas, desenhadas a lápis acima dos pequenos olhos cheios de veias rosadas e expostas; e passava o dia inteiro na sala do bailio, esperando por um serviço. A sra. Mooney, que havia usado o restante do dinheiro do açougue para abrir uma casa de pensão na Hardwicke Street, era uma mulher grande e imponente. A casa tinha uma população flutuante composta por turistas de Liverpool e da Ilha de Man e às vezes por artistas dos salões musicais. A população residente era composta por trabalhadores da cidade. Ela governava a pensão com astúcia e firmeza e sabia quando dar crédito, quando ser rígida e quando deixar as coisas passarem. Todos os jovens residentes chamavam-na de madame.

Os rapazes da sra. Mooney pagavam quinze xelins por semana pela hospedagem e pelas refeições (cerveja no jantar não inclusa). Tinham gostos e ocupações em comum, e por este motivo eram muito próximos uns dos outros. Sempre discutiam as chances dos favoritos e dos azarões. Jack Mooney, o filho da madame, que trabalhava em um escritório de corretagem na Fleet Street, tinha a fama de ser um caso complicado. Gostava de praguejar como um soldado, e muitas vezes chegava em casa de madrugada. Quando encontrava os amigos, sempre tinha uma boa história para contar e sempre tinha certeza de que estava prestes a se dar bem – o que em geral envolvia um cavalo ou uma artista. Também sabia usar os punhos e cantava músicas cômicas. Nas noites de domingo muitas vezes havia reuniões na sala de estar da sra. Mooney. Os artistas dos salões musicais se apresentavam; e Sheridan tocava valsas e polcas e improvisava acompanhamentos. Polly Mooney, a filha da madame, também costumava cantar. Ela cantava:

I’m a... naughty girl.

You needn’t sham; You know

I am.(*)

Polly era uma moça esbelta de dezenove anos; tinha cabelos claros e macios e uma boquinha carnuda. Os olhos, que eram cinzentos com um brilho esverdeado, tinham o hábito de olhar para cima quando ela falava, o que lhe conferia um certo ar de madona teimosa. A princípio a sra. Mooney tinha mandado a filha para trabalhar como datilógrafa no escritório de um representante comercial de milho, mas a cada dois dias um dos homens do delegado, que tinha uma reputação nada elogiável, aparecia no escritório pedindo para trocar uma palavra com a filha do patrão, e assim ela resolveu trazer a filha de volta para casa e colocá-la para trabalhar com os afazeres domésticos. Como Polly estava sempre muito animada, a ideia era encarregá-la de atender os rapazes. Além do mais, os rapazes gostam de saber que há uma moça por perto. Polly, é claro, flertava com os rapazes, mas a sra. Mooney, que era uma juíza arguta, sabia que os rapazes estavam apenas passando o tempo: nenhum deles levava aquilo a sério. As coisas seguiram assim por um bom tempo e a sra. Mooney começou a pensar em mandar Polly de volta para a datilografia quando notou que havia alguma coisa entre Polly e um dos rapazes. Começou a observar os dois e não falou nada.

Polly sabia que estava sendo observada, mas o silêncio persistente da mãe era uma mensagem clara. Não havia cumplicidade declarada entre mãe e filha, não havia compreensão declarada, mas a sra. Mooney não interveio nem quando os hóspedes da pensão começaram a comentar o assunto. Polly começou a agir de maneira um pouco estranha, e o rapaz estava visivelmente perturbado. Por fim, quando julgou ser o momento oportuno, a sra. Mooney interveio. Ela lidava com questões morais da mesma forma como um cutelo lida com a carne: e nesse caso estava decidida.

Era uma bela manhã de domingo no início do verão, que prometia calor apesar da brisa fresca que soprava. Todas as janelas da pensão estavam abertas e as cortinas de renda inflavam-se de leve em direção à rua por baixo das janelas levantadas. Do campanário da George’s Church saíam badaladas constantes, e os fiéis, sozinhos ou em grupo, atravessavam o pequeno circo em frente à igreja, revelando a intenção que os movia não somente pela atitude contida como também pelos pequenos volumes que traziam nas mãos enluvadas. O café da manhã tinha se encerrado na casa de pensão, e a mesa estava coberta de pratos com listras amarelas de ovos e pedaços de gordura e de casca de toucinho. A sra. Mooney estava sentada na poltrona de palha, observando a criada Mary recolher as louças do café. Pediu a Mary que recolhesse as cascas e os farelos de pão para fazer o pudim de pão da terça-feira. Quando a mesa estava limpa e o pão recolhido, e o açúcar e a manteiga trancados a sete chaves, ela começou a reconstruir a conversa com Polly na noite anterior. As coisas eram como havia imaginado: tinha sido franca nas perguntas e Polly tinha sido franca nas respostas. As duas haviam ficado um pouco sem jeito, claro. Ela tinha ficado sem jeito por não querer receber a notícia de maneira cavalheiresca demais nem dar a impressão de ter participado da intriga, e Polly ficou sem jeito não apenas porque alusões daquele tipo sempre a deixavam sem jeito, mas também porque não queria que pensassem que, em uma inocência astuta, tivesse adivinhado as intenções por trás da tolerância da mãe.

A sra. Mooney olhou instintivamente para o pequeno relógio dourado no consolo da lareira ao perceber, através do devaneio, que os sinos da George’s Church haviam parado de soar. Eram 11h17: haveria tempo suficiente para tirar o assunto a limpo com o sr. Doran e depois ir à missa do meio-dia na Marlborough Street. Tinha certeza de que venceria. Para começar, tinha todo o peso da opinião pública a seu lado: era uma mãe indignada. Ela o havia recebido sob o teto da própria casa, imaginando que fosse um homem honrado, e ele tinha simplesmente abusado dessa hospitalidade. Ele tinha 34 ou 35 anos de idade, então a juventude não poderia ser usada como desculpa; tampouco a ignorância, uma vez que era um homem com uma boa experiência de vida. Tinha simplesmente se aproveitado da juventude e da inexperiência de Polly: isso era óbvio. A questão era: como pretendia reparar essa falta?

Uma reparação é sempre necessária em casos como esse. Para o homem é muito conveniente: ele pode ir embora como se nada tivesse acontecido depois de ter desfrutado um momento de prazer, porém a moça tem que arcar com as consequências. Certas mães ficariam satisfeitas se pudessem remediar a situação com uma soma em dinheiro; a própria sra. Mooney sabia de casos assim. Mas para ela não seria o suficiente. Para ela apenas uma reparação poderia compensar a perda da honra da filha: o casamento.

Contou todas as cartas mais uma vez antes de pedir que Mary subisse até o quarto do sr. Doran e dissesse que ela desejava conversar. Tinha certeza de que venceria. O sr. Doran era um rapaz sério, não um degenerado ou um falastrão como os outros. Se tivesse acontecido com o sr. Sheridan ou o sr. Meade ou Bantam Lyons, a tarefa seria muito mais difícil. A sra. Mooney achava que ele não encararia a publicidade. Todos os hóspedes da pensão sabiam alguma coisa sobre o caso; alguns tinham inventado detalhes. Além do mais, ele trabalhava há treze anos no escritório de um grande comerciante de vinhos católico, e qualquer publicidade talvez significasse a perda desse cargo. E se ele concordasse, tudo estaria bem. Ela sabia que ele ganhava uns bons trocados e suspeitava que tivesse economias guardadas.

Já eram quase trinta minutos passados! A sra. Mooney se levantou e se olhou no espelho da sala. Ao ver a expressão decisiva no amplo rosto corado deu-se por satisfeita e pensou em algumas mães que conhecia e que não encontravam jeito de se livrar das filhas.

O sr. Doran estava realmente muito ansioso naquela manhã de domingo. Tinha feito duas tentativas de se barbear, porém a mão estava tão trêmula que foi obrigado a desistir. A barba avermelhada de três dias emoldurava-lhe o rosto, e a cada dois ou três minutos um vapor se condensava nos óculos, de modo que se via obrigado a retirá-los e poli-los com o lenço que trazia no bolso. A lembrança da confissão feita na noite anterior era motivo de uma intensa dor; o padre tinha arrancado todos os ridículos detalhes relativos ao caso e no fim aumentou o pecado a tal ponto que ele quase agradeceu a chance de poder reparar a falta. O mal estava feito. O que mais poderia fazer senão casar-se ou fugir? Não havia como encarar aquela situação. Sem dúvida correriam boatos sobre o caso, e o patrão com certeza ficaria sabendo. Dublin é uma cidade pequena: todos sabem da vida dos outros. Sentiu o coração bater quente na garganta enquanto, na fantasia inflamada, ouvia o velho sr. Leonard dizendo com a voz rouca: Peça ao sr. Doran que venha falar comigo, por favor.

Todos os longos anos de serviço desperdiçados! Todo o esforço e toda a dedicação jogados no lixo! Na juventude tinha aprontado um bocado, claro; gabava-se de ser um livre-pensador e negava a existência de Deus na frente dos amigos e nos bares. Mas tudo isso era passado... ou quase. Ainda comprava o Reynolds’s Newspaper toda semana, mas observava os deveres religiosos e durante nove décimos do ano levava uma vida regrada. Tinha dinheiro suficiente para sustentar-se; não era esse o problema. Mas a família a desprezaria. Para começar, o pai tinha má reputação, e como se não bastasse a pensão da mãe também começava a ser falada. Teve a impressão de que estavam lhe pregando uma peça. Imaginava os amigos discutindo o assunto e rindo. Ela era um pouco vulgar; às vezes dizia Menas e Quando eu ir. Mas de que importaria a gramática se realmente a amasse? Ele não conseguia decidir se gostava dela ou se a desprezava pelo que havia feito. Claro, ele tinha feito a mesma coisa. O instinto suplicava para que permanecesse livre, não para que casasse. Depois que você casa está tudo acabado, dizia.

Enquanto ele permanecia sentado sem saber o que fazer na lateral da cama trajando camisa e calças ela deu uma leve batida na porta e entrou. Contou-lhe tudo, que tinha aberto o coração para a mãe e que a mãe falaria com ele naquela manhã. Ela chorou e o abraçou, dizendo:

– Ah, Bob! Bob! O que eu vou fazer? O que eu posso fazer?

Ela disse que daria fim à própria vida.

Ele tentou oferecer algum consolo, pedindo que não chorasse e dizendo que tudo ia ficar bem, que não havia o que temer. Sentia contra o peito a agitação no seio dela.

Mas a culpa pelo que havia acontecido não era toda dele. Graças à paciente memória do celibatário, lembrava-se muito bem das primeiras carícias casuais que o vestido, a respiração e os dedos dela haviam lhe feito. Certa noite, enquanto ele tirava a roupa para se deitar ela bateu na porta, tímida. Queria reacender uma vela apagada pelo vento. Era a noite do banho. Ela usava um penhoar aberto de flanela estampada. O arco do pé reluzia na abertura das pantufas fofas e o sangue corria quente por trás da pele fragrante. As mãos e os pulsos também soltaram um perfume suave enquanto ela acendia e firmava a vela.

Nas noites em que ele chegava tarde era ela quem esquentava o jantar. Ele mal sabia o que estava comendo quando os dois ficavam sozinhos à noite na casa adormecida. Quanta consideração! Se a noite estivesse fria ou úmida ou ventosa com certeza um copo de ponche estaria pronto quando chegasse. Talvez pudessem ser felizes juntos...

Os dois também costumavam subir as escadas juntos, na ponta dos pés, cada um com uma vela, e no terceiro patamar trocavam um boa-noite relutante. Costumavam se beijar. Ele lembrava muito bem dos olhos dela, do toque da mão e do delírio que sentia...

Mas o delírio passa. Repetiu a frase dela, aplicando-a a si mesmo: O que eu vou fazer? O instinto do celibato instigava-o a resistir. Mas o pecado fora cometido; o próprio sentimento de honra dizia que um pecado daqueles exigia reparação.

Enquanto estava sentado com ela no lado da cama Mary apareceu na porta e disse que a patroa gostaria de falar-lhe na sala de estar. Ele se levantou e vestiu o colete e o casaco, mais confuso do que nunca. Quando terminou de se vestir tentou mais uma vez oferecer algum consolo a ela. Tudo ficaria bem, não havia o que temer. Ela ficou chorando na cama e gemendo baixinho: Ah meu Deus!

Enquanto ele descia as escadas os óculos ficaram tão embaçados que foi preciso retirá-los para lhes dar polimento. Queria atravessar o teto e voar para outro país onde nunca mais fosse ouvir falar sobre esse problema, e mesmo assim uma força o arrastava escada abaixo, degrau após degrau. Os rostos implacáveis do patrão e da madame observavam aquela descompostura. No último lance de escadas ele passou por Jack Mooney, que estava vindo da despensa com duas garrafas de Bass. Os dois trocaram um cumprimento frio; e os olhos do apaixonado fixaram-se por um ou dois instantes em uma cara achatada de buldogue e em um par de braços atarracados. Quando chegou ao pé da escada ele olhou para cima e viu que Jack o observava de uma porta. De repente lembrou-se da noite em que um dos artistas dos salões musicais, um loirinho de Londres, fez uma alusão um tanto liberal em relação a Polly. A reunião quase foi interrompida por conta da violenta reação de Jack. Todos tentaram acalmá-lo. O artista dos salões musicais, um pouco mais pálido do que o normal, continuou a sorrir e a dizer que não tinha falado por mal: mas Jack continuou a gritar que se alguém tentasse aquele tipo de coisa com a irmã dele ele com certeza faria o sujeito engolir os próprios dentes, ah se faria.

* * *

Polly ficou um tempo sentada na beira da cama, chorando. Depois enxugou as lágrimas e foi até o espelho. Molhou a ponta da toalha na jarra d’água e lavou os olhos com a água fria. Olhou-se de perfil e ajustou um alfinete de cabelo acima da orelha. Em seguida ela voltou e sentou-se no pé da cama. Ficou olhando os travesseiros por um bom tempo, e aquela visão despertou agradáveis memórias secretas. Ela recostou a nuca contra o metal frio do estrado e começou a devanear. Não havia mais nenhuma perturbação visível em seu rosto.

Esperou com paciência, quase com alegria, sem nenhuma apreensão à medida que as memórias davam lugar à esperança e a visões do futuro. As esperanças e as visões eram tão complexas que ela já não enxergava mais os travesseiros brancos em que tinha o olhar fixo e tampouco lembrava que estava esperando qualquer coisa.

Por fim ouviu o chamado da mãe. Pôs-se de pé e correu até os corrimãos.

– Polly! Polly!

– Pois não, mamãe?

– Desça, querida. O sr. Doran quer falar com você.

Nesse instante ela lembrou o que estava esperando. 





(*) Sou uma travessa mocinha

Não é preciso envergonharem-se

Pois bem sabem que o sou.



(Dublinenses; tradução: Guilherme da Silva Braga)



(Ilustração: Balthus - Teresa sonhando)