Nelson Rodrigues se dizia
leitor assíduo de Gilka Machado, e acrescentava que ela o havia influenciado.
[1] Embora a frase fique um tanto ameaçada pela paixão do “Anjo Pornográfico”
por Eros Volúsia (filha da poetisa, notável bailarina), os versos de Gilka
condizem de fato com a temperatura transgressiva e com certa marginalidade,
típicas da obra do dramaturgo brasileiro. [2]
A poetisa, que deslumbrara e
desorientara a crítica a partir de Cristais partidos (sua ruidosa estreia em
1915), fora muito pobre: sujara sempre as mãos para ganhar a vida e trazia os
estigmas do trabalho. Desde moça, era diarista da Estrada de Ferro Central do
Brasil e, da morte do marido (1924) até a formação dos filhos, seria cozinheira
da pensão com que sobreviveu no Rio de Janeiro, para “não morrer de fome” –
segundo ela mesma nos informa. [3] Seus poemas foram escritos “à beira do
fogão”, onde preparava refeições para os fregueses, dentre os quais dois
eméritos intelectuais: Andrade Muricy e Tasso da Silveira, fundadores da
revista Festa em 1927, na qual Gilka passaria a publicar.
Se, durante a sua vida, ela
foi agraciada com o aceno de ser uma das maiores senão a “maior poetisa
brasileira”, [4] tudo não passara de prêmio de consolação ou, no dizer de
Wilson Martins, de “tentativa psicanalítica de reduzir-lhe a importância”, [5]
de neutralizá-la. Osório Duque Estrada vem a público em 1937, para defender a
reputação da amiga e para esclarecer que seu nome glorioso angariara rancor e
despeito dos “pequeninos, venenosos e malevolentes rivais”. Sendo odiada e
invejada por alguns desses, foi afrontada “covardemente com as mais repugnantes
e mais nojentas maldades”. [6] Eis aqui alguns de seus versos para que se tenha
ideia da especulação que em torno dela se nutria, visto que neste nosso país,
em trânsito da República para o Estado Novo, nem todos “os brasileiros estavam
preparados para lê-los, sem extrapolações falazes”. [7] Eis o soneto:
Beijas-me tanto, de uma tal
maneira,
boca do meu Amor, linda
assassina,
que não sei definir, por
mais que o queira,
teu beijo que entontece e
que alucina!
Busco senti-lo, de alma e
corpo, inteira,
e todo o senso aos lábios
meus se inclina:
morre-me a boca, presa da
tonteira
do teu carinho feito de
morfina.
Beijas-me e de mim mesma vou
fugindo,
e de ti mesmo sofro a imensa
falta,
no vasto voo de um delíquio
infindo…
Beijas-me e todo o corpo meu
gorjeia,
e toda me suponho uma árvore
alta,
cantando aos céus, de
passarinhos cheia… [8]
O poema, emblemático da
postura pioneira de Gilka, enuncia, como se vê, a rendição da fala diante do
prazer que, aliás, vai se multiplicando até convertê-la em puro princípio de
vida: em árvore cantante. A mulher abdica do dizer (dizendo isso) para usufruir
o gozo – legenda que talvez sugira o quanto Gilka foi, pela inteligência
nacional, simultaneamente apreciada, criticada, vilipendiada e ridicularizada.
A Academia Brasileira de Letras lhe outorga em 1979, um ano antes da sua morte
com 87 anos, o prêmio Machado de Assis pela publicação da Poesia Completa. No
entanto, o que se coroava ali era um silêncio, uma desistência. Porque, a bem dizer,
essa poesia já se completara há mais de quarenta anos, quando, depois de muito
dialogar na intimidade de seus versos com seus detratores, Gilka abandonara o
ofício, se suicidando em vida.
Olhando-a partir daqui, vejo
que os ataques desferidos contra a sua prática poética mais se adensam na
altura da publicação de Meu glorioso pecado, em 1928. Nesse volume, ela assumia
com orgulho, e desde o título, as pechas culturais do feminino que vinha
exaltando em poemas sensuais sobre o interdito, tanto em Estados d’alma (1917)
quanto em Mulher nua (1922). De maneira que é a partir de então que passam a
frequentar a cena pública certos preconceitos desembainhados contra ela: a sua
carência de educação formal, a sua origem familiar e a cor da sua pele. E o
pior: muitas vezes esses ataques se originavam de fogo amigo, como se, para
perdoar a vocação de Gilka para o impronunciável fosse preciso assacar
intangíveis razões. Ao mesmo tempo, os editores abusam dela. É verdade que seus
volumes se esgotam: mas apenas porque todo mundo tem curiosidade de conhecer o
“livro imoral” – como ela mesma sublinha em entrevista. No entanto, para vender
mais, e sem o seu aval, os editores publicam edições apressadas, com profusão
de erros tipográficos, com omissão de versos e, além de tudo, com
arbitrariedades chocantes: trocam o inefável título Meu glorioso pecado por um
anódino “Poemas”, talvez com o interesse de angariar também um outro
público-leitor, além daquele afoito a fantasias sexuais, há muito assegurado.
Denunciando a impunidade de “barbaridades assim”, Nestor Vitor insiste que
“seria irrisório um autor, sem dinheiro, questionar judicialmente a propósito”.
E concluía reparando como, nessa atual fase da carreira de Gilka, a tratavam de
forma tão “displicente”. [9]
Outro crítico (que não se
identifica, mas que busca defendê-la da acusação de pouca leitura e de pífia
formação intelectual) comenta que Gilka é “limitada, por circunstâncias
diversas, a uma cultura quase exclusivamente intuitiva” e que, portanto, não
tem podido contar com “os recursos maravilhosos de um conhecimento claro da
poesia universal”. Todavia (era necessário compreender) nunca fora seu fito a
“construção magnífica”, mas antes o “direito de sentir e de pensar como os
impulsos íntimos lhe ordenam”. [10] Ora, nesse contexto tacanho, o argumento
cai como mosca no mel. Eram justos os “impulsos íntimos”, a “sensualidade
exaltada”, a “embriaguez dos sentidos”, a “vertigem sensual” que semeavam na
sua poesia essa suspeição moral. “Bacante dos trópicos”, é como Agripino Grieco
a chamara; “tempestades de carne” é como Humberto de Campos denominara seus
versos; “bailado voluptuoso”, é como Emílio Moura cunhara sua obra. [11] Ainda
assim, faz espécie que seja por tal viés que as cogitações acerca dos frenesis
poéticos de Gilka deságuem na sua ancestralidade familiar e na sua tez.
O argumento de que a poetisa
era uma “artista nata e impetuosa” [12] entra aqui como consequência de Gilka
ser proveniente de uma família de artistas, músicos, poetas e atores, enfim, de
gente boêmia. De maneira que (como mexerica o ferino Lindolfo Gomes para o não
menos fofoqueiro Humberto de Campos) ela padeceria “da tara da família”, muito
embora fosse menos “vítima” do “sangue familiar” que do marido. Este a
obrigaria a escrever “aqueles versos escandalosos”, só para tirar disso [sic]
“proveito de empregos e de relações”. [13] Ajunte-se a estas ferinas suposições
um depoimento não menos empenhado de Afrânio Peixoto a Humberto de Campos,
datado de 1930, e ver-se-á do que é capaz a maledicência – contanto que apoie o
preconceito.
Todo compungido e tocado
pela miséria e pela sujeira da escura “alfurja” [14] onde residia Gilka na Rua
da Misericórdia, Afrânio revela ao amigo que Gilka não é “aquela moça branca e
vistosa” que se mostra “nos retratos”, mas sim aquela “mulatinha escura, de
chinelos, num vestido caseiro” que lhe aparecera então à porta. [15] Só à luz
desta citação pode-se entender por que Gilka, na dita entrevista, se refere a
Humberto de Campos com tanto rancor, asseverando que se tratava de um inimigo,
de um difamador. E a opinião a seguir, que é da lavra dele, possui a bondade de
insinuar, para além da mordacidade contumaz, aquilo que Humberto de Campos (e,
por que não a intelectualidade brasileira da altura?) entende por “maldito” – acepção
divulgada por Verlaine a partir de 1883. Eis o seu veredicto sobre Gilka:
Leal com a sua musa,
imaginou a ilustre carioca que poderia externar em versos, impunemente no
Brasil, como Lucie Delarue-Mardrus, Marceline Desbordes-Valmore ou a condessa
de Noialles, todo o ardor da sua mentalidade de crioula. E foi uma temeridade.
Ao ler-lhe as rimas, cheirando a pecado, toda a gente supôs que estas subiam
dos subterrâneos de um temperamento quando elas, na realidade, provinham do
alto das nuvens de uma bizarra imaginação. Sátiros que andavam soltos acenderam
subitamente as narinas, aspirando o ar, com os dentes à mostra. Ignoravam eles,
na sua materialidade, que há um vale profundo entre o pensamento e o
sentimento, e que o reflexo do temperamento é este, e não aquele. [16]
A citação é dúbia e
matreira. O crítico parece tomar o partido da poetisa contra os
subdesenvolvidos sátiros da nossa republiqueta de banana, quando, na verdade,
se compraz em explicitar o preconceito pela “mentalidade de crioula”, fortalecido
pelo “pecado” e associado aos “subterrâneos de um temperamento”. Repare-se
também que Campos divide Gilka em duas, dilacerando-a: de um lado, ela é o tal
temperamento ardoroso e o sentimento; de outro, a bizarra imaginação e o
pensamento – cisão que, aliás, já vem percorrendo toda a fortuna crítica de
Gilka, como se verá. No entanto, as poetisas citadas se encontram a salvo, fora
do seu alcance e suspeita, e ali se localizam para contrastar com o
sub-reptício primitivismo intuitivo de Gilka. Elas não são brasileiras –
escrevem em francês (e imediatamente, aqui, a mítica geográfica entra em ação).
Assim, embora externem em versos suas “mentalidades” femininas (e, certamente
Lucie Delarue-Mardrus lhe fizesse espécie), ficam impunes, fora da sua jurisdição,
visto que só Gilka, dentre elas, é “crioula”. Dentre as três estrangeiras, já
se sabe, há uma “maldita”: a loura Marceline Debordes-Valmore.
Ingressa em 1888 na
coletânea de Verlaine, Marceline é a única mulher a figurar dentre os seis
“malditos”, por “son obscuritée aparente et aussi absolue”. [17] Ao contrário
do que se passa com Gilka, Marceline é estimada por seu crítico, que a leu via
Rimbaud. Segundo saberemos mais tarde, Rimbaud se apropriara, em 1872, de um
dos versos do poema “C’est moi”, escrito em 1825 por Marceline, e que era
assim: “Prends-y garde, ô ma vie absente!”. [18] Tal frase, transcrita pela sua
pena, vai fazer todo o sentido na poética rimbaldiana, a ponto de ser tomada,
dentre outras, como simbólica própria. Reformulada por Rimbaud, ela ficará
convertida em “la vraie vie est absente”. [19]
Marceline Desborde-Valmore,
além de ter vivido num hemisfério diverso do de Gilka, também existiu num outro
registro temporal; os contextos histórico-literários de ambas são muito
diferenciados. A francesa vem do classicismo e percorre o romantismo francês,
enquanto Gilka sai do parnasianismo e penetra no simbolismo-decadentismo,
naquela zona difusa do pré-modernismo brasileiro. Marceline morreu quase
quarenta anos antes do nascimento de Gilka, que veio ao mundo em 1893 e o
deixou em 1980, com 87 anos. Marceline nasceu ainda no século XVIII, em 1786, e
faleceu na primeira metade do XIX, em 1856, com 73 anos. Tão distantes as duas
poetisas e, no entanto, com tantos pontos de contato biográficos!
Marceline vem, como Gilka,
de uma família de artistas e vai trilhar a carreira de atriz, cantora e
dançarina de teatro para se sustentar. Sua história pessoal é igualmente
coalhada, do início ao fim, de misérias, sacrifícios, de trabalhos domésticos à
beira do fogão, de costuras e da dura disciplina de copista dos papéis
dramatúrgicos; vida madrasta repleta de desgraças e perdas, que lhe valeu o
epíteto final (fornecido por Lucien Descaves) de a Notre-Dame-des-Pleurs.
Marceline levou uma existência errante, de Douai a Guadalupe, ao Havre, a
Lille, a Paris, a Bruxelas, a Milão, a inúmeras cidadezinhas da província
francesa. Só na Paris dos seus derradeiros tempos, mudou-se catorze vezes de
morada, vitimada pela carência de recursos, muito embora socorrida por pensões
governamentais, insuficientes, no entanto, para arcar com a família e o
desemprego final do marido, Prosper Valmore, que também era ator. Como Gilka,
Marceline não brilha pela cultura e menos ainda pelo conhecimento aprofundado
do ofício poético, posto que quase não leu e que teve apenas uma formação
mediana. Era autodidata e sua ortografia se manteve sempre abaixo da média:
je
ne suis pas plus instruite que les arbres qui se dressent et se penchent sans
savoir pourquoi [20]
diz ela. Marceline também
sofreu, como Gilka, o descaso dos editores, ela que, segundo consta, também
teria negligenciado sua obra. [21] Como Gilka, Marceline escreveu sobre os
filhos e se dedicou, com rebeldia, a denunciar os maus tratos e injustiças
sofridos pelos humildes e desvalidos. Em “Dans la Rue par un jour funèbre de
Lyon”, a “mulher”, personagem do poema, reclama:
Nous n’avons plus d’argent
pour enterrer nos morts.
Le prêtre est là, marquant
le prix des funérailles ;
Et les corps étendus, troués
par les mitrailles,
Attendent un linceul, une
croix, un remords. [22]
A desconfiança que paira
sobre os versos de Gilka e que atinge a sua biografia – paira igualmente sobre
a vida de Marceline, mas não sobre seus versos. No caso desta, devido a um
episódio de sedução que redundou em desprezo imposto pelo amante, na existência
e na morte prematura do filho dessa união. Todavia, desconfianças sobre a
continuidade desse relacionamento clandestino depois do casamento de Marceline
com Valmore, acabaram dando trela a várias especulações. O bisbilhoteiro de
plantão é agora Sainte-Beuve, que não mediu esforços para tentar decifrar o
enigma do “Olivier” que comparece nos versos de Marceline. O crítico francês,
que também pretendeu casar-se com uma das filhas da poetisa, suspeita que o
sedutor da mãe tivesse sido o poeta Henri de Latouche, o conhecido “Loup de la
Vallée”, com quem o casal Valmore manteve amizade durante vinte anos. Há,
inclusive, uma deplorável versão de ruptura entre o casal e Latouche, que
envolve a pretensão do Lobo de seduzir a filha de Marceline – de quem (se
supõe) seria… o próprio pai.
Mas se entro nessas
minudências biográficas mesquinhas e nessas suposições picantes, é simplesmente
porque, no caso de Marceline, há uma expandida crença de que sua vida é sua
poesia, de que toda a sua história pessoal de vicissitudes e sofrimentos pode
ser lida, capítulo a capítulo, na sua poesia, que não passaria, afinal, de um
documento inestimável sobre ela. Por isso referem tanto a espontaneidade da sua
obra quanto a franqueza e a honestidade de sua pessoa, que jamais se censura,
correndo até um risco quase perigoso. Compreende-se, nessa linhagem
interpretativa, que o ritmo e a melodia ímpar de seus versos advenham, então,
do abandono da sua carreira musical, visto que, deixando o canto,
entregar-se-ia Marceline ao domínio da palavra escrita. Stefan Zweig, um de
seus biógrafos, afirma que “é
sem
exemplo, na literatura universal, esse delicioso milagre de uma sinceridade sem
reservas, graças à qual, com a ajuda de pequenas canções, linha por linha,
pode-se retraçar um destino feminino, edificar toda uma biografia sobre as
poesias, sem que se encontre ali uma mentira ou uma hipocrisia”. De maneira que
não há intervalo entre o que ela sente e o que ela escreve, e a sua poética,
como o quer Jeanine Moulin, encerra “uma poesia do imediato, toda vibrante
ainda do transe que a fez brotar”; daí a propalada “autenticidade” da obra da
poetisa francesa.
Marceline parece de fato
cooperar para tanto. Lendo-a, a gente se sente tentado a montar os vários
quebra-cabeças que seus poemas vão desenhando ao longo de cada livro, graças ao
clima de meias-palavras, segredos, mistérios e enigmas semeados, que funcionam
como eficaz chamariz para o leitor vir a conferir o próximo desenrolar. De uma
feita é o desafio de compor o nome verdadeiro do amante por meio do seu
próprio; de outra, dele são fornecidos alguns índices, idade, viagens, fortuna
poética; e assim por diante, num desfile de ingredientes pitorescos, sedutores
e dramáticos, que atraem o leitor, como se ele se encontrasse diante de… um
folhetim lírico – o que talvez explique simultaneamente a sua popularidade e a
obscureza que atrai Verlaine:
Ma soeur, il est parti! ma
soeur, il m’abandonne!
Je sais qu’il m’abandonne,
et j’attends, et je meurs,
Je meurs. Embrasse-moi,
pleure pour moi… pardonne (…)
Mais retiens tes sanglots.
Il m’appelle, il me touche,
Son souffle en me cherchant
vient d’effleurer ma bouche.
Se os três primeiros versos
ilustram as cenas teatralmente românticas que apontei, os dois últimos expõem o
cerne da afirmação de Humberto de Campos a propósito da legitimidade cultural
em se “externar em versos”.
Mas, com Marceline, acontece
o contrário de Gilka. Pintada por Goya, fotografada por Nadar, críticos e
escritores de renome são seus fãs: Rilke, Balzac, Victor Hugo, Lamartine,
Baudelaire, Sainte-Beuve, Vigny, Samain, Anatole France, Alexandre Dumas, e até
mesmo o misógeno Barbey d’Aurevilly, sem falar em Rimbaud e em Verlaine. Tais
apreciações tão unânimes esconderiam talvez algum travo da “complacência”
masculina diante de uma mulher escritora tão modesta, ingênua e infortunada?
Stefan Zweig conclui com uma asserção que pode botar lenha na fogueira. Segundo
ele, Marceline “reconhece que a mulher, apenas pelo sofrimento e não pela alegria,
desempenha seu papel na grande comunidade humana”.
Por seu turno, a
interpretação de Verlaine não fica longe das versões mecanicistas de que a obra
é vida e vice-versa. É verdade que ele puxa a questão para o nível formal,
comentando que não há em Marceline nada de ênfase, de afetação ou de má-fé, e
que seu grande mérito teria sido o de ter empregado com maior fortuna os ritmos
desusados, sobretudo o de onze pés. Todavia, ele a apresenta por meio de
transcrição de trechos de poemas, como num álbum biográfico: a mãe, a filha, a
moça, a inquieta e sincera cristã, a jovem romântica, a grande amiga, a mulher
de paixão mais casta e discreta, a mulher terna e altiva – conjunto de poemas
que extrai dele vivas lágrimas. Também a aproxima de Évarist de Parny – como se
sabe, autor de Poèsies erotiques, de Elégies, de Chanson Madécasse. Verlaine a
vê como um “casto Parny” – o que é, aliás, um notável paradoxo. E postula: com
George Sand (com quem não simpatiza), Marceline Desbordes-Valmore “é a única
mulher de gênio e de talento deste século, e de todos os séculos, em companhia
de Safo, talvez, e de Santa Teresa.”
Se, entretanto, Marceline
não parece incomodar ninguém com o seu choro e os seus gritos de dor,
conformando-se com o lugar que lhe foi oferecido socialmente como feminino, o
que se vê em Gilka é bem o contrário. A maioria de seus comentadores atenta
para o dado bizarro que patenteia sua obra (e de que ela seria a pioneira no
Brasil): a “inversão de papéis” de gênero. Agripino Grieco se dá conta de que
ela se apressa a dizer aos homens, como poetisa, “certas coisas que devia
esperar que eles lhe dissessem primeiro.” [23] Medeiros e Albuquerque,
refletindo que é muito “embaraçosa” a posição das mulheres, sobretudo quando se
põem a cantar o amor, repara que Gilka tem coragem de “confessar certas
inclinações que, em geral, as poetisas escondem”. Esse privilégio, que ela se
arroga para si, de aludir ao sentimento amoroso descendo às “minúcias
descritivas”, seria própria dos homens que, aliás, se comprazem com tais delícias.
E conclui ele: “Até hoje pelo menos não se tem permitido” às mulheres fazerem o
mesmo: é “impróprio o elogio do corpo masculino pela mulher, pois parece coisa
brutal, luxuriosa, cínica”. [24]
Mas, para tentar explicar
tal “inversão” sem constranger ainda mais a vitimada poetisa, aparece com
propriedade a assacada cisão interna, aliás, uma vênia estratégica. Bem na
contramão do que ocorre com Marceline, se olharmos para a fortuna crítica de
Gilka, concluiremos que ela se empenhou em assegurar que a vida pessoal da
poetisa não tem vínculo algum com a sua poesia. Assim, a mulher que comparece
nos seus poemas não é aquela que os produz. Esta última, a crer ainda em
Humberto de Campos, era “a mais virtuosa das mulheres” e “a mais abnegada das
mães”. [25]
Agrippino Grieco também não
faz diferente. Para ele é premente o ditame de advertir aos leitores de Gilka
que as atitudes da poetisa pertencem apenas à esfera do “domínio da arte”, o
que significa que são, em verdade, mui diversas daquelas que Gilka, a autora,
desempenhava na sua “vida”, real, que ele qualifica, então, como “modesta e
altiva”. [26] E é notável como Gilka, sempre em interlocução interna com a sua
crítica, tematiza essa mesma divisão – mas enquanto prerrogativa feminina.
Num soneto de Meu glorioso
pecado, Gilka expõe a sua existência de permeio, exibindo uma vida que se
desenvolve num entrelugar de si mesma. Esse eu, assim apertado, e que floresce
apenas num intervalo, se manifesta com a inconveniência de uma tara, como uma
existência fantasmática. Todavia, tal mulher espremida, apertada dentro da
outra, é aquela que a seu lado se debate na cena sexual, protagonizando o outro
lado do feminino, pois que nesse ato que se chocam, face a face (e em litígio),
a mulher de carne e a mulher de espírito. Eis o soneto:
A que buscas em mim, que
vive em meio
de nós, e nos unindo nos
separa,
não sei bem aonde vai, de
onde me veio,
trago-a no sangue assim como
uma tara.
Dou-te a carne que sou… mas
teu anseio
fora possuí-la – a
espiritual, a rara,
essa que tem o olhar ao
mundo alheio,
essa que tão somente astros
encara.
Por que não sou como as
demais mulheres?
Sinto que, me possuindo, em
mim preferes
aquela que é o meu íntimo
avantesma…
E, ó meu amor, que ciúme
dessa estranha,
dessa rival que os dias me
acompanha,
para ruína gloriosa de mim
mesma!
Focando este poema,
parece-me, ao fim e ao cabo, que aquela frase de Marceline, surrupiada por
Rimbaud, não era sintomática apenas da modernidade desse poeta maldito.
Pleiteiam-na, no contexto das relações entre vida e obra (afinal sempre à mercê
da conveniência dos entornos), tanto Marceline Desbordes-Valmore quanto Gilka
Machado, posto que nessa equação feminina alguma vida fica sempre ausente.
NOTAS
1. Cf. CASTRO, Ruy. O anjo
pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras,
2001. Em 1932, Nelson pede a mão de Eros à Gilka, que a recusa.
2. Eros é a pesquisadora e a
criadora da chamada dança brasileira, extraordinária bailarina de formação
clássica que interpretou, em registro mestiço, desde Zequinha de Abreu a Villa-
Lobos. Primeira mulher latina a ser capa da Life americana (em 1941), fora para
ela que Carmen Miranda pedira licença para adotar sua definitiva coreografia de
bahiana hollywoodiana.
3. Declaração de Gilka na
entrevista à Nádia Batella Gotlib e a Ilma Ribeiro, em final de 1979, e
transcrita em GOTLIB, Nádia B. “Gilka Machado: a mulher e a poesia”. Mulher
& Literatura. 5º. Seminário Nacional Mulher e Literatura (org. Constância
Lima Duarte). Natal: UFRGN, Ed. Universitária, 1996, pp. 17-30.
4. De fato, em 1933, a
revista O Malho do Rio de Janeiro, realizou um plebiscito, e Gilka foi eleita a
“maior poetisa brasileira”.
5. Cf. MARTINS, Wilson –
História da inteligência brasileira, vol. VI (1915-1933). São Paulo: Cultrix, 1978,
pp. 32-38.
6. Cit. por BRITO, Cândida.
Antologia feminina. Rio de Janeiro: Edição de “A Dona de Casa”, 1937, 3ª. ed. ,
p.18. | ESTRADA, Osório Duque – (1937)
7. CF. CAMPOS, Humberto.
Crítica. Rio de Janeiro: José Olympio, 1935, 2ª. série, 1ª. ed., pp. 314-315.
8. Uso a edição de Gilka
Machado. Poesias Completas. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial Ltda,
1992, apres. de Eros Volúsia Machado. A partir daqui cito as páginas em seguida
à transcrição do poema.
9. Cf. “Gilka Machado”. O
Globo. Rio de Janeiro, 8 de julho de 1928. É Nestor Vitor quem nos fornece tais
informações sobre o procedimento da Livraria Azevedo/Erbas de Almeida & Cia
Editores do Rio de Janeiro.
10. Informação prestada pela
revista carioca Terra do sol. Revista de Arte e Pensamento, n. 7, de julho de
1924, por meio de um comentário não assinado acerca das “Mulheres poetas do
Brasil”. Trata-se de um texto publicado em 1924 na revista carioca Sol Poente.
11. MOURA, Emílio. “Poetisas
(do “Esfinges” ao “Nunca mais”)”. Revista Terra de Sol, agosto de 1924, nº.8
(vol. 3), pp. 197.
12. Cit. por GÓES, Fernando.
“Gilka da Costa Melo Machado”. Panorama da Poesia Brasileira (O
Pré-Modernismo). Vol. V. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A.,
1960, pp. 165-175.
13. O verrino comentário
citado por Humberto de Campos, no seu Diário Secreto .Vol.II (Rio de
Janeiro:José Olympio Ed., 1954, p.63), teria ocorrido em 4 de junho de 1919, a
propósito da publicação de Estados de alma.
14. O leitor estranhará o
termo, para o qual há estas acepções: pátio interno descoberto, destinado a
ventilar e iluminar os aposentos de uma casa; rua estreita, ou qualquer área,
onde se atirava o despejo das casas; monte de detritos, de objetos velhos ou
gastos, sem préstimo; monturo; lugar freqüentado por gente desclassificada;
antro. Dentre todas podemos eleger aquela escolhida por Afrânio Peixoto.
15. Afrânio teria lhe
revelado tais fatos em 18 de agosto de 1930. Cf. Diário Secreto, Opus Cit.p.
50.
16. CAMPOS, Humberto.
Crítica. Opus Cit. p. 400. Os negritos são meus.
17. Uso ambas as edições:
VERLAINE, Paul – Les poètes maudits. Paris/Genève: Ressources, 1979 e Los
poetas malditos. Buenos Aires: Editorial GLEM, 1942 (traduzido a partir da
edição de 1888, por M. Bacarisse). A citação pertence à ed. de 1942, p. 59.
18. Élégies et poésies
nouvelles, Paris, Ladvocat, 1825. Cf. OEuvres poétiques de Marceline
Desbordes-Valmore.Grenoble: Presses Universitaires, t. I, 1973, p. 111-112. ed.
de Marc Bertrand.
19. Cf. Bivort Olivier, «
Les « vies absentes » de Rimbaud et de Marceline Desbordes-Valmore”, Revue
d'histoire littéraire de la France, 2001/4 Vol. 101, p. 1269-1273.
20. Cit por ZWEIG, Stefan.
Marceline Desbordes-Valmore. Paris: Éditions de la Nouvelles Revue Critique,
1945, p. 51.
21. O parecer é de Jeanine
Moulin, em Marceline Desbordes-Vamore (une étude par Jeanine Moulin, inédits,
oeuvres choisies, bibliographie, fac-similé, portraits, documents. Paris:
Seguers Éditeur, 1955, p. 10). Ela reclama por edições recentes, pois que nada
mais foi editado até aquela altura. Não esquecer, entretanto, que Marceline é a
primeira mulher a fazer parte da “Galerie Seghers”.
22. Cit. na antologia de
MOULIN, Jeanine. Opus Cit, pp. 187-188.
23. GRIECO, Agripino.
Evolução da poesia brasileira. Rio de Janeiro: José Olymío, 1947, 3ª. ed., p.
93
24. ALBUQUERQUE, Medeiros e.
Páginas de crítica. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro Maurillo, 1920, p. 67.
25. CAMPOS, Humberto de –
Crítica. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre, W.M. Jackson, 1945, 2ª ed., p.
400.
26. GRIECO, Agrippino – “As
poetisas do Segundo Império”. Evolução da poesia brasileira. Rio de Janeiro,
José Olympio, 1947, 3ª ed. rev., p. 93.
(Ilustração: Gilka Machado – desenho em lápis de cera de Amaury Menezes, neto da escritora).
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