domingo, 20 de março de 2022

REALIDADE DEMENCIAL, de Ernesto Sábato

 



Estava eu numa barca, e a barca deslizava por um lago imenso de águas calmas, negras e insondáveis. O silêncio era angustiante e, ao mesmo tempo, inquietante, pois eu desconfiava de que naquela penumbra (não havia luz solar, mas a luminosidade ambígua e fantasmática vinda do sol noturno) eu não estava só, mas era vigiado e contemplado por seres que não conseguia ver, e que, certamente, moravam fora do alcance de minha visão imperfeita. O que esperavam de mim e, sobretudo, o que me esperava naquela extensão desolada de águas paradas e lúgubres?

Mas eu não conseguia pensar, embora mantivesse uma espécie de consciência vaga e de memória pesada de minha infância. Pássaros cujos olhos eu arrancara naqueles anos sangrentos pareciam voar nas alturas, pairando sobre mim como se vigiassem minha viagem; sem pensar, já que estava privado de pensamento, eu remava numa direção que, pelo visto, era onde o sol noturno se poria horas ou séculos depois. Tive a impressão de ouvir as batidas pesadas de suas grandes asas, como se os pássaros de minha infância tivessem se transformado em pterodátilos enormes ou morcegos gigantescos. Acima e atrás de mim, quer dizer, onde seria o leste do imenso oceano negro, pressentia um ancião que, cheio de ressentimento, também vigiava minha viagem: tinha um só olho na testa, enorme, qual um ciclope, e suas dimensões eram tais que a cabeça estava mais ou menos no zênite enquanto o corpo descia até o horizonte. Sua presença, que eu sentia de modo quase intolerável, a ponto de poder descrever a horrenda expressão de seu rosto, não me deixava virar para trás e mantinha meu corpo e meu rosto na direção oposta.

“Tudo dependerá de eu conseguir chegar à margem antes do pôr-do-sol”, flagrei-me pensando ou dizendo. Remei até lá, mas avançava tão lentamente como nos pesadelos. Os remos afundavam nas águas negras e lamacentas e eu sentia o marulho pesado.

Grandes folhas flutuantes e flores lembrando vitórias-régias, mas lúgubres e podres, se afastavam a cada movimento do remo. Eu tentava me concentrar em minha árdua tarefa, nem querendo imaginar a forma e o horror dos monstros que, tinha certeza, povoavam aquelas águas abismais e infectas: com os olhos cravados no poente, ou no que imaginava ser o poente, limitava-me, amedrontado e tenaz, a remar, tentando chegar antes do pôr-do-sol.

A navegação era angustiantemente difícil e vagarosa. O sol descia com a mesma lentidão, a oeste, e um único pensamento guiava a fúria com que eu movia os remos pesados e lentíssimos: chegar antes do ocaso.

O astro já estava perto do horizonte quando senti minha barca tocando o fundo. Larguei os remos e me precipitei para a proa. Lancei-me fora da barca e, com a água lamacenta batendo nos joelhos, andei para a costa, que já avistava na semiescuridão. Logo senti que estava no que se poderia chamar terra firme, mas na verdade era um pântano, onde andar era tão difícil como navegar na barca: dar um passo e avançar exigiam imenso esforço. Mas meu desespero era tamanho que fui andando, devagar e sempre. E, assim como antes minha ideia era alcançar a terra firme, agora me animava a perspectiva de chegar a uma montanha que eu mal vislumbrava a oeste. “Ali está a gruta”, lembro-me de ter pensado. Que gruta? E por que eu precisava chegar lá? Na hora, não formulei essas perguntas, e agora não conseguiria responder a nenhuma delas. Só sabia que precisava chegar e, a qualquer preço, entrar na gruta. Devo dizer que continuava a sentir a presença colossal do desconhecido atrás de mim. Com seu único olho, permanentemente aberto, resplandecendo de ódio, parecia vigiar e até dirigir, como um pérfido oficial de náutica, minha marcha para oeste. Seus braços abertos abarcavam todo o céu atrás de mim, e suas mãos pareciam apoiar-se no norte e no sul, ocupando assim toda a metade da abóbada. Não havia outro jeito senão andar rumo ao poente, o que, nessa realidade demencial, eu considerava uma conclusão lógica e sensata. A ideia era fugir de seu olhar, meter-me na gruta, onde sabia que seus olhos seriam impotentes. Assim caminhei por muito tempo, que para mim pareceu um ano. O astro continuava descendo, e, ainda que a montanha estivesse mais perto, a distância continuava aterradora. Percorri o último trecho lutando contra o cansaço, o medo e a desesperança. Atrás de mim sentia o sorriso sinistro do Homem. Acima de mim sentia o voo pesado dos pterodátilos, que planavam e às vezes até roçavam suas asas em mim. Eu temia não só esse contato gelatinoso e frio, mas a possibilidade de, com seus bicos dentados, finalmente se atirarem em cima de mim e arrancarem meus olhos. Pelo visto, queriam que eu me esgotasse num esforço inútil, durante anos de marcha estúpida e estafante, para, quando eu imaginasse estar o fim ao alcance da mão, arrancar meus olhos e minha esperança desvairada.

Comecei a ter essa sensação no trecho final da marcha, como se tudo tivesse sido planejado para me fazer mal o mais possível. “Pois”, pensava com razoável lucidez, “se tivessem arrancado meus olhos no início eu não teria nenhuma esperança e não teria tentado essa travessia penosíssima por mares desconhecidos e pântanos imundos.”

Senti que o rosto do Ancião irradiava uma espécie de alegria feroz enquanto eu fazia essas reflexões. Compreendi que era tudo verdade e agora me esperava a pior calamidade dessa travessia. Não quis, porém, olhar para cima, e nem precisava: meus ouvidos revelavam que os pássaros, com bicos enormes e afiados, iam planando cada vez mais perto de minha cabeça; percebia suas asas batendo pesadas, asas que deviam ter dois metros, e de vez em quando sentia seu contato leve mas asqueroso, fugacíssimo, nas faces e no cabelo.

Faltava pouco, muito pouco, para chegar à gruta que eu já entrevia numa penumbra fosforescente. Meu corpo estava coberto de lodo pegajoso e eu me arrastava de quatro. Minhas mãos tocavam e afastavam uma profusão de cobras repugnantes que se agitavam no pântano infinito, mas o pavor do que me esperava era tão grande que isso era quase desprezível.

Finalmente, o cansaço venceu o desespero, e caí.

Tentei manter a cabeça fora da lama, com a fronte erguida, enquanto o resto do corpo afundava nas águas nauseabundas.

“Preciso respirar”, pensei.

Mas também pensei: “Assim mantenho meus olhos ao alcance deles”.

E pensei como se estivesse amaldiçoado e condenado à horrível operação, como se eu mesmo me prestasse ao rito atroz e, tudo indica, inelutável.

Afundado na lama, com o coração batendo agitado, em plena imundície, olhando para a frente e para cima, vi os grandes pássaros pairarem vagarosos sobre minha cabeça. Percebi que um deles descia, vindo por trás, e o vi, gigantesco e próximo, recortado contra o ocaso, depois virando-se para mim e pousando na lama com um baque surdo, bem diante da minha cabeça. O bico era afiado como um estilete, sua expressão reproduzia o olhar absorto dos cegos, pois não tinha olhos: consegui ver suas órbitas vazadas. Parecia uma antiga divindade no instante que precede o sacrifício.

Senti o bico entrando em meu olho esquerdo e por instantes percebi a resistência elástica de minha pupila, e depois o bico penetrando áspera e dolorosamente, enquanto sentia o líquido começando a escorrer por minha face. Por um mecanismo que ainda não consigo entender tendo em vista a sua falta de lógica, eu mantinha a cabeça sempre na mesma posição, como se quisesse facilitar a perversa tarefa, da mesma forma que, mesmo sofrendo, oferecemos a boca e a cabeça ao dentista.

E enquanto sentia a água de meu olho e o sangue descendo pela face esquerda, pensava: “Agora terei de suportar no outro olho”. Com calma, creio que sem ódio, o que lembro ter-me assustado, o grande pássaro terminou seu trabalho no olho esquerdo e, recuando um pouco, repetiu com o bico a mesma operação no olho direito. E voltei a sentir a leve e fugaz resistência elástica de meu olho, e depois a penetração áspera e dolorosa e, mais uma vez, o líquido cristalino e o sangue deslizando por minha face: líquidos que eu diferenciava perfeitamente, por ser, um, o cristalino tênue e gelado, e outro, o sangue quente e viscoso.

Depois o grande pássaro levantou voo e seus companheiros foram atrás, e os ouvi começando a voejar, pesados, e logo se afastando de mim. “O pior já passou”, pensei.

Agora eu não enxergava nada, mas, com a dor imensa e a curiosa repugnância que sentia por mim mesmo, não recuei na intenção de me arrastar até a gruta.

Assim fiz, penosamente.

Pouco a pouco, meu esforço foi recompensado: o pântano ia desaparecendo sob meus pés e minhas mãos, e logo essa espécie de silêncio singular, essa sensação de nevoeiro e também de segurança, revelou-me que, enfim, eu entrara na grande gruta. E desabei no sono. 



(Sobre heróis e tumbas; tradução de Rosa Freire d’Aguiar)



(Ilustração: Odilon Redon - the cyclops)


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