a mulher nascida na serra sem fim surge nua
não há cor em suas unhas, e os fios dos seu cabelo secam ao natural. a planta dos seus pés é mais áspera que a das mulheres das cidades grandes, porque no fim de semana ela caminha descalça no chão de pedra do quintal. estendendo roupa. comendo uva colhida de uma videira tímida
(tímida porque é uma uva que quase não vinga; ainda assim, há famílias que insistem em cultivá-la)
essas famílias são tristes. há todo um reino de azuis em jogo
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ela se olha no espelho. tira a calcinha branca de algodão, velha
sei que é velha porque não a imagino mais tendo o aplique de laço que geralmente acompanha o modelo (no meio do laço, no ponto de encontro das curvas do laço, uma pedrinha de strass). o aplique se soltou, por causa do tempo, das tantas lavagens
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aos domingos, depois de amar e ser amada, ela costuma dormir, de bruços. as pernas semiabertas, imóveis, numa geometria em que poderíamos vislumbrar o ângulo do telhado da casa
quero dizer: o telhado da casa como se o tivéssemos visto antes de sua constituição objetiva, numa fase de pré-realidade
ao anoitecer acorda; levanta-se, caminha em silêncio pelo corredor, pela sala
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a mulher do interior da serra sem fim lava a calcinha sempre no banheiro, sob esse outro paradigma náutico – quando no vapor o espaço-tempo resgata o mar como desolação. e a certa altura do banho nenhum limite separa o que é o vapor da umidade típica de sua respiração e o que é o vapor da água do chuveiro
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por vezes uma pássara prenha entra em algum dos vãos do beiral do telhado. com o ninho já construído, ela se instala e põe seus ovos. em períodos de chuvas mais intensas, de ventos mais fortes, é comum que um dos filhotes caia – recém-nascido, horrível. roxo. sem penas, só cabeça e bico
no dia seguinte a mulher varre o quintal e junta o cadaverzinho com a pá. e ocorre que, em meio às cascas de uvas comidas (um montante delas, reunidas num canto, entre folhas secas), em meio a essa escola rude de tinturaria do que foi vindima
e fome
esse cadaverzinho se torna ainda mais roxo; passa despercebido
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o banho demora em geral uns dez minutos; é um banho rápido. os chuveiros, muito antigos
ao longo desse tempo ela lava a calcinha
molhada de sêmen. ao lavá-la, gosta de pensar que
em vez de descer com a água pelo ralo – o sêmen, tal como o álcool, volatiliza-se, dissipando-se com as gotículas de vapor do ambiente
ela toma banho. e respira fundo, fundo, sentindo como se o homem que há pouco penetrou seu sexo estivesse agora penetrando seu pulmão
depois
com a toalha enrolada no cabelo, como um animal inaudito – uma espécie mítica, meio mulher, meio rinoceronte (a toalha enrolada como um corno imenso no centro da cabeça)
anda. abre a porta de acesso aos fundos. pega um prendedor da cestinha – e, de pés descalços, ainda morna e predatória, pendura a calcinha no varal
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pernoitam e amanhecem nos varais, as calcinhas. as mulheres recolhem-nas perto do meio-dia, depois do período do vapor
vestem-nas. passam a tarde com elas.
à noite surgem nuas, e os homens amam-nas e dizem que seus grandes lábios cheiram a cerração
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pela manhã, o sol aparece aos poucos. com seus cabelos volumosos, ondulados, as mulheres mimetizam em menor escala a cena da travessia da claridade nas copas das árvores
a cerração imanta os quartos, imanta os móveis e as cortinas; e os mortos participam desse processo todo, no espaço; em silêncio
de fora, a certa distância, a casa nessas manhãs mal pode ser vista. o contorno dos telhados e das chaminés se perde
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na casa fabula-se outra casa – em ruínas
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(caderno da serra sem fim, excerto de prosa poética maior, narrativa em trabalho)
(Ilustração: Niceas Romeo Zanchett - mulher na hora de dormir -1980)
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