quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

UM IDIOTA SENTIMENTAL, de Thomas Hardy

 



Chegou a época de matar o porco que Judas e Arabela haviam engordado durante os meses de outono. Combinaram sangrá-lo num alvorecer, de modo a Judas poder partir para Alfredston sem perder mais do que um quarto de dia.

A noite parecera estranhamente silenciosa. Judas espiou pela janela bem antes da aurora e viu que o solo estava coberto de neve — de uma neve bastante espessa para o pouco adiantado da estação. Alguns flocos ainda caíam.

— Receio que o carniceiro não possa vir — disse Judas a Arabela.

— Qual nada, ele virá. É preciso que você se levante e faça esquentar a água, se quiser que Challow escalde o porco. Por minha parte, preferiria que o chamuscassem.

— Vou levantar-me — disse Judas. — Prefiro seguir o costume da minha terra.

Desceu, acendeu o fogo debaixo do caldeirão e nele jogou talos de vagens secas. Não tinha vela, mas as chamas projetavam na sala sombras alegres. Para ele, essa impressão de alegria se atenuava sempre que pensava no que ali se preparava: era preciso esquentar água para escaldar um animal que ainda vivia e cuja voz continuamente se ouvia, no fundo do jardim.

Às seis e meia, a água fervia e Arabela desceu a escada.

— Challow já chegou? — perguntou ela.

— Não.

Esperaram. Estava um pouco mais claro, mas a aurora, envolta em neve, não trazia senão uma luz triste. Arabela saiu de casa, lançou um olhar sobre o caminho e voltou dizendo:

— Ele não vem. Com certeza, embebedou-se ontem à noite, porque não pode ter sido a neve que o tenha detido.

— Então, é preciso esperar para amanhã. A água terá fervido em vão, paciência! Talvez a neve esteja muito espessa lá no vale.

— É impossível esperar. O porco não tem mais nada para comer. Dei-lhe a última ração ontem de manhã.

— Ontem de manhã? De que viveu, desde então?

— De nada.

— Como assim? Jejuou?

— Sim. Fazemos sempre assim, durante um ou dois dias, para termos menos trabalho com as tripas. Que ignorância a sua, não saber disso!

— É por isso que ele está gritando tanto. Pobre criatura!

— Pois bem, vai ser preciso que você o sangre. Não há outro jeito. Eu ensinarei como. Ou melhor: farei eu mesma. Creio que saberei fazê-lo. O porco é tão grande que preferiria muito que fosse Challow a fazê-lo. Mas ele já mandou as suas facas e apetrechos. Poderemos nos servir deles.

— Naturalmente, não será você a fazê-lo — disse Judas. — Já que é preciso, eu o sangrarei.

Judas saiu de casa, tirou a neve de diante do chiqueiro num espaço de dois ou três metros, instalou o tamborete, tendo as facas e as cordas bem à mão. Do alto de uma árvore vizinha, um pintarroxo observava curiosamente os preparativos. Amedrontado pelo aspecto sinistro da cena, levantou voo, se bem que tivesse fome. Arabela se juntara a Judas. Este, então, com a corda na mão, penetrou no chiqueiro e laçou o animal apavorado que, depois de um grito pungente, lançou prolongados grunhidos de raiva. Arabela abriu a porta, e os dois juntos puseram o porco em cima do tamborete, as patas voltadas para o ar. Enquanto Judas o mantinha nessa posição, Arabela o amarrava solidamente, enrolando a corda em volta de suas patas para impedi-lo de se debater.

O tom do animal mudou. Não era mais raiva, apenas desespero — uma lamúria lenta e desesperançada.

— Pela minha salvação, teria preferido renunciar ao porco do que ser obrigado a fazer isso — disse Judas. — Uma criatura que nutri com as minhas próprias mãos!

— Vamos deixar de sentimentalismos! Apanha a faca mais pontiaguda. Esta, aqui. E, agora, sobretudo, não enterre profundamente demais.

— Darei um golpe só, para que acabe logo. É o que interessa mais.

— Não — gritou Arabela. — A carne deve ficar bem sangrada e, para isso é preciso que ele morra lentamente. Perderemos quase uma libra, se estiver vermelha e sanguinolenta. Você atinja apenas a veia. Basta isso. Sei o que digo, porque fui criada vendo sangrar porcos. Um bom carniceiro leva muito tempo sangrando. É preciso que o animal leve uns oito a dez minutos morrendo.

— Nem meio minuto, no que dependa de mim! A carne ficará como tiver de ficar — disse Judas num tom decidido. Raspou os pelos ásperos do pescoço do porco, como vira fazer nos açougues, e cortou a gordura. Depois, enfiou a faca com toda a força.

— Que o diabo carregue você! — gritou Arabela. — Você enfiou a faca demais. E isso, depois de tudo o que eu disse!

— Fique quieta, Arabela, e tenha um pouco de piedade desse pobre animal!

Muito embora tivesse procedido em desacordo com as regras estabelecidas, agira com compaixão. O sangue jorrou aos borbotões, em vez de escoar gota a gota, como Arabela desejava. O grito do animal agonizante assumia uma terceira e última entonação: a da agonia. Seus olhos vidrados se fixavam sobre Arabela com uma expressão eloquente de censura da criatura que percebe, enfim, a traição daqueles que pareciam ser seus únicos amigos.

— Faz com que ele se cale! — disse Arabela. — Esse barulho atrairá gente e não quero que se saiba que fomos nós mesmos que o matamos.

Apanhando a faca que Judas atirara ao solo, Arabela a enfiou na ferida e cortou a artéria do porco, que silenciou imediatamente.

Ouvia-se apenas, agora, o seu ralo de agonia saindo pela garganta aberta.

— Assim é melhor — disse Arabela.

— Que função miserável! — replicou Judas.

— Os porcos têm de ser mortos por alguém, não?

O animal teve uma última convulsão e, apesar da corda, esperneou com todas as forças que lhe restavam. O sangue parou de correr durante alguns segundos, depois um coágulo negro saiu.

— Está liquidado. Agora, vai morrer — disse ela. — São umas criaturas cheias de manhas. Guardam sempre uma última gota, como esta, o máximo de tempo que podem.

O último sobressalto fora de tal modo inesperado que Judas tropeçou e virou o recipiente em que fora recolhido o sangue.

— Pronto! — gritou Arabela com violência. — Agora, não poderei fazer morcela. Mais uma coisa perdida por culpa sua!

Judas levantou o balde. Não continha mais senão um terço, aproximadamente, do conteúdo inicial, o resto se tendo espalhado sobre a neve num espetáculo lastimável e abjeto para quem quer que não visse naquilo senão um meio de obter carne. Os lábios e as narinas do animal se tornaram lívidos, depois inteiramente brancos, e os músculos de suas patas se distenderam.

— Graças a Deus — disse Judas. — Graças a Deus ele morreu!

— Eu gostaria de saber o que é que Deus tem a ver com uma coisa tão asquerosa como a matança de um porco — disse Arabela com desprezo. — É preciso que as pessoas vivam de alguma coisa!

— Eu sei, eu sei. Nem estou censurando você.

Ouviram, de súbito, uma voz bem junto deles.

— Serviço bem feito, ó jovens recém-casados! Certamente eu próprio não o teria feito melhor!

A voz, um pouco rouca, vinha da porta do jardim. Levantando os olhos da cena da matança, os dois se depararam com a forma corpulenta do senhor Challow que, apoiado na cancela, olhava-os com olhos críticos.

— É bem mesmo coisa sua ficar assim de braços cruzados — disse Arabela. — Por causa do seu atraso, a carne está cheia de sangue, meio estragada. Valerá, no mínimo, uma libra a menos.

Challow manifestou seu pesar:

— A senhora devia ter esperado um pouco — disse ele, sacudindo a cabeça —, e nunca ter feito trabalho desses. No estado em que está, é grande imprudência.

— Não se incomode por isso — disse Arabela rindo. Judas também riu, mas havia um pouco de amargor na sua alegria.

Challow se fez perdoar a sua negligência trabalhando com grande afinco nas tarefas de escaldar e raspar o porco. Na sua consciência de homem, Judas estava contrariado com o que fizera, reconhecendo, no entanto, que era ilógico, pois o ato praticado teria sido o mesmo feito por um outro qualquer. Tinha diante dos olhos a neve branca, tinta do sangue de uma criatura inocente: visão revoltante para um homem que amava a justiça, para um cristão. Mas, não havia jeito de conciliar as coisas. Talvez não passasse, como Arabela lhe dissera, de um idiota sentimental.



(Judas, o obscuro; tradução de Octavio de Faria)

(Ilustração: Jean-François Millet, 1814-1875, the death of the pig)


domingo, 26 de dezembro de 2021

POSESIÓN EN EL SUEÑO / POSSE NO SONHO, de Eunice Odio

 




Ven

Amado

Te probaré con alegría.

Tú soñarás conmigo esta noche.

Tu cuerpo acabará

donde comience para mí

la hora de tu fertilidad y tu agonía;

y porque somos llenos de congoja

mi amor por ti ha nacido con tu pecho,

es que te amo en principio por tu boca.

Ven

Comeremos en el sitio de mi alma.

Antes que yo se te abrirá mi cuerpo

como mar despeñado y lleno

hasta el crepúsculo de peces.

Porque tú eres bello,

hermano mío, eterno mío dulcísimo.

Tu cintura en que el día parpadea

llenando con su olor todas las cosas,

Tu decisión de amar, de súbito,

desembocando inesperado a mi alma,

Tu sexo matinal

en que descansa el borde del mundo

y se dilata.

Ven

Te probaré con alegría.

Manojo de lámparas será a mis pies tu voz.

Hablaremos de tu cuerpo

con alegría purísima,

como niños desvelados a cuyo salto

fue descubierto apenas, otro niño,

y desnudado su incipiente arribo,

y conocido en su futura edad, total, sin diámetro,

en su corriente genital más próxima,

sin cauce, en apretada soledad.

Ven

te probaré con alegría.

Tú soñarás conmigo esta noche,

y anudarán aromas caídos nuestras bocas.

Te poblaré de alondras y semanas

eternamente oscuras y desnudas.



Tradução de Luiza Nilo Nunes:



Vem

Amado

Provar-te-ei com alegria.

Tu sonharás comigo esta noite.

Teu corpo terminará

onde comece para mim

o tempo da tua fertilidade e da tua agonia;

e porque estamos repletos de angústia

o meu amor por ti nasceu com o teu peito,

é que te amo em princípio por tua boca.

Vem

Comeremos no lugar da minha alma.

Antes que eu te abra o meu corpo

como o mar precipitado e cheio

até ao crepúsculo dos peixes.

Porque tu és belo,

irmão meu, eterno meu dulcíssimo.

Tua cintura onde o dia resplandece

impregnando com o seu aroma todas as coisas,

Tua decisão de amar, de súbito,

desagua inesperada na minha alma,

Teu sexo matinal

onde repousa a orla do mundo

e se dilata.

Vem

Provar-te-ei com alegria.

Feixe de lâmpadas será a meus pés tua voz.

Falaremos do teu corpo

com alegria puríssima,

como crianças descobertas a cuja vertigem

mal foi revelada outra criança,

e desnudada sua incipiente chegada,

e conhecida em sua idade futura, total, sem diâmetro,

na sua corrente genital mais próxima,

sem fluxo, em sufocante solidão.

Vem

provar-te-ei com alegria.

Tu sonharás comigo esta noite,

e nossas bocas urdirão funestos perfumes.

Povoar-te-ei de cotovias e semanas

eternamente nuas e obscuras.



(Os elementos terrestres e outros poemas)



(Ilustração: 
Eunice Golden - Male Nude)



quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

CARTA DE NETTIE PARA SUA IRMÃ CELIE, NA QUAL NARRA SUA CHEGADA À ALDEIA DOS OLINKAS, NA ÁFRICA, de Alice Walker (*)




“Querida Celie: Um africano da aldeia para onde vamos foi ter conosco ao barco. O nome dele depois de ser baptizado é Joseph. É baixo e gordo e as mãos parece que não têm ossos. Quando me tocou a mão, parecia que ia cair qualquer coisa macia e úmida e eu quase que tentei apanhá-la. Fala um bocado de inglês, o que eles chamam pidgin. É muito diferente da maneira como falamos, mas de certa maneira não nos é estranho. Ajudou-nos a descarregar as nossas coisas do barco para os outros que vinham buscar-nos. Eram apenas canoas escavadas em troncos de árvores, como têm os índios, como as que aparecem nas gravuras. Enchemos três delas com todos os nossos pertences e na quarta metemos os remédios e os artigos para a escola. No barco fomos entretidos pelas canções dos nossos barqueiros enquanto tentavam passar uns à frente dos outros até à praia. Ligavam-nos muito pouco assim como ao nosso carregamento. Quando chegamos à praia não se ralaram nada a ajudar-nos e até atiraram algumas coisas para a água. Logo que pobre do Samuel lhes deu uma gorjeta, que o Joseph disse que era grande demais, começaram a gritar para outro grupo de gente que estava à espera à beira da água para ir para o barco. O porto é bonito, mas muito pouco fundo para os navios grandes que utilizamos. Assim é um bom negócio para os barqueiros, durante a estação em que os barcos atracam. Estes barqueiros são todos bastante maiores do que o Joseph e têm músculos, embora eles, como o Joseph, sejam cor de chocolate escuro. Não são negros, como os Senegaleses. E, Celie, têm os dentes mais fortes, mais limpos, mais brancos do mundo! Pensei muito em dentes na viagem, porque tive dores quase todo o tempo. Sabes que os meus dentes não prestam para nada. E em Inglaterra fiquei pasmada com os dentes dos Ingleses. Tão tortos, geralmente, e escuros por se estragarem. Penso se será da água inglesa. Mas os dentes dos Africanos fazem-me lembrar os dos cavalos, tão bem formados, direitos e fortes. A «cidade» do porto é do tamanho da loja de ferragens dum grande armazém da nossa cidade. Lá dentro há quiosques cheios de tecidos, lanternas-à-prova-de-vento e petróleo, mosquiteiros, camas de campismo, camas de rede, machados, enxadas, catanas e outros utensílios. A zona toda é dirigida por um branco, mas alguns dos quiosques que vendem mantimentos estão arrendados a africanos. O Joseph apontou coisas que precisávamos comprar. Uma grande panela de ferro para ferver água e uma bacia de zinco para a roupa. Mosquiteiros. Pregos. Martelo e serra e picareta. Petróleo e candeeiros. Como no porto não se podia dormir, o Joseph contratou para carregadores alguns rapazes que andavam pelo entreposto comercial e largamos direitos a Olinka, que fica a perto de quatro dias de marcha pela floresta. Selva, para ti. Ou talvez não. Sabes o que é uma selva? Bom. árvores e mais árvores e ainda mais árvores. E grandes. Tão grandes que parece que alguém as fez. E trepadeiras. E fetos. E animaizinhos. Rãs. Também serpentes, segundo o Joseph. Mas graças a Deus não vimos nenhuma, apenas lagartos corcundas, tão grandes como o teu braço, que as pessoas aqui apanham e comem. Adoram carne. Toda a gente da aldeia. Às vezes, se não se consegue que façam qualquer coisa doutra maneira qualquer, começa-se a falar em carne, seja um pedaço pequeno que se tem a mais ou então, se a gente quiser algo de mais importante, fala-se em barbecue. Sim, em barbecue. Fazem-me lembrar as pessoas lá da terra! Bom, chegamos aqui. E pensei que nunca mais me livrava das rugas nas ancas por ter sido trazida numa rede todo o caminho. Toda a gente da aldeia se juntou à nossa volta. Vinham de pequenas cabanas redondas com qualquer coisa no topo que julguei que era palha mas que é afinal umas folhas que crescem por todo o lado. Cortam-nas e põem-nas em camadas umas em cima das outras, de forma a terem telhados onde a chuva não entre. Isto é trabalho das mulheres. Os homens espetam as estacas para a cabana e às vezes ajudam a construir as paredes com lama e pedras dos cursos de água. Nunca viste pessoas com caras tão cheias de curiosidade como as dos aldeães que nos rodeavam. Primeiro só olhavam. Depois uma ou duas mulheres tocaram na minha roupa e na da Corrine. O meu vestido estava tão sujo na bainha por ser arrastado pelo chão durante três noites em que cozinhamos em volta de uma fogueira que até tive vergonha de mim. Mas então olhei para a roupa que traziam. A maior parte parecia que tinha sido arrastada através do pátio pelos porcos. E não lhes servia. Então mexeram-se um bocado-ninguém tinha dito ainda uma palavra - e tocaram no meu cabelo. Depois olharam para os nossos sapatos. Nós olhamos para o Joseph. Ele disse-nos que faziam aquilo porque os missionários antes de nós eram brancos, e vice-versa. Os homens tinham estado no porto, alguns deles, e tinham visto o comerciante branco, portanto sabiam que os brancos podiam fazer também outras coisas. Mas as mulheres nunca tinham ido ao porto e a única branca que conheciam era a missionária que sepultaram havia um ano. O Samuel perguntou se tinham visto alguma vez a missionária branca que vivia a trinta quilômetros, e ele disse que não. Trinta quilômetros pela selva é uma viagem muito comprida. Os homens podiam caçar até quinze quilômetros em redor da aldeia, mas as mulheres ficavam nas cabanas e nos campos. Então uma das mulheres fez uma pergunta. Nós olhámos para o Joseph. Ele disse que a mulher queria saber se as crianças eram minhas ou da Corrine ou de ambas. O Joseph explicou que eram da Corrine. A mulher olhou para nós as duas e disse mais qualquer coisa. Nós olhamos para o Joseph. Ele disse que a mulher tinha dito que ambas se pareciam comigo. Rimos todos com muita delicadeza. Depois outra mulher fez outra pergunta. Queria saber se eu também era mulher do Samuel. O Joseph disse que não que eu só era uma missionária como o Samuel e a Corrine. Então houve uma pessoa que disse que nunca tinha desconfiado que os missionários podiam ter filhos. E outro disse que nunca tinha sonhado que pudesse haver missionários negros. Então alguém disse que tinha sonhado, também na noite anterior, que os novos missionários eram negros e que dois eram mulheres. Por essa altura havia muita excitação. Cabecinhas começavam a aparecer por trás das saias das mães e por cima dos ombros das irmãs mais velhas. E quase fomos arrastados entre os aldeães, cerca de trezentos, até uma cabana sem paredes mas com um teto de folhas, onde nos sentamos todos no chão, com os homens na frente, as mulheres e as crianças atrás. Houve então muito bichanar que se ouvia entre vários anciães que pareciam os velhos da igreja da nossa terra com as calças que pareciam sacos e casacos cheios de brilho, mal enforcados: Os missionários negros bebem vinho de palma? A Corrine olhou para o Samuel e o Samuel olhou para a Corrine. Mas eu e as crianças já estávamos a beber, porque alguém já nos tinha metido nas mãos copinhos de barro castanho e estávamos demasiado nervosos para não começar a beberricá-lo. Chegamos ali perto das quatro horas e ficamos sentados por baixo do toldo de folhas até às nove. Foi ali que fizemos a nossa primeira refeição, galinha e um estudo de amendoins que comemos com as mãos. Mas a maior parte do tempo ouvimos canções e vimos danças que levantavam montes de poeira. Mas a parte mais importante da cerimônia de boas-vindas foi acerca das folhas do teto, que o Joseph foi traduzindo enquanto um dos aldeães recitava a história que falava disso. As pessoas daqui julgam que sempre viveram neste local onde fica agora a aldeia. E que tem sido um local bom para eles. Plantam campos de mandioca e têm grandes colheitas. Plantam amendoins e é a mesma coisa. Plantam inhame e algodão e milho-mindo. Plantam tudo. Mas uma vez, há muito tempo, um homem da aldeia quis mais que a sua porção de terra para cultivar. Queria mais colheitas para vender o excedente aos brancos da costa. Como nesse tempo era chefe, a pouco e pouco foi ficando com mais terra da comunidade, e foi arranjando cada vez mais esposas para tratarem dela. Á medida que a sua cobiça crescia também começou a cultivar a terra onde cresciam as folhas para os telhados. Até as suas mulheres estavam preocupadas com aquilo e tentaram queixar-se, mas eram preguiçosas e ninguém lhes ligou nenhuma. Ninguém se conseguia recordar de uma época em que não existissem folhas para os telhados em grandes quantidades. Mas finalmente o ganancioso chefe ficou com tanta terra que até os anciães se começaram a preocupar. Então ele começou a comprá-los com machados e tecidos e panelas para cozinhar que arranjava nos negociantes da costa. Foi então que rebentou uma grande tempestade, durante a estação das chuvas, que destruiu todos os telhados de todas as cabanas da aldeia e as pessoas descobriram com desanimo que já não havia folhas. Onde dantes cresciam as folhas desde o princípio dos tempos, só havia mandioca. Milho-miúdo. Amendoins. Durante seis meses os céus e os ventos martirizaram o povo de Olinka. A chuva caía como flechas, rompendo a lama das suas paredes. O vento era tão violento que arrancava as pedras das paredes e as atirava para dentro das panelas de cozinhar. Depois pedras frias, do feitio de grãos de milho-miúdo, caíram do céu, maltratando toda a gente, homens, mulheres e crianças, e provocando febres. Primeiro adoeceram as crianças, depois os pais. De repente a aldeia começou a desaparecer. Perto do fim da estação das chuvas, já não existia metade da aldeia. As pessoas rezaram aos seus deuses e esperaram com impaciência pela estação seguinte. Logo que a chuva parou correram para os velhos campos de folhas e tentaram encontrar as antigas raízes. Mas, da ilimitada quantidade que ali sempre existira, apenas sobravam algumas dúzias. Só há cinco anos as folhas cresceram de novo com toda a força. Durante estes cinco anos muita gente morreu na aldeia. Muitos partiram, para não voltarem. Muitos foram devorados pelos animais. Muitos, muitos estiveram doentes. Deram ao chefe todos os utensílios comprados nas lojas e obrigaram-no a deixar a aldeia para sempre. As suas esposas foram dadas a outros homens. No dia em que todas as cabanas tiveram outra vez telhados feitos com as folhas, os aldeães comemoraram o acontecimento cantando e dançando e contando a história. Passaram a cultivar as folhas. Olhando sobre as cabeças das crianças no fim da história, vi aproximar-se de nós, devagar, uma coisa grande, castanha e cheia de picos, do tamanho de uma sala, com uma dúzia de pernas a andarem lentamente e cuidadosamente. Quando chegou ao nosso toldo, foi-nos apresentada. Era o nosso telhado. Quando se aproximava, as pessoas faziam reverências. O missionário branco antes de vocês não nos deixou pôr em prática esta cerimônia, disse o Joseph. Mas os Olinkas gostam muito dela. Sabemos que um telhado de folhas não é Jesus Cristo, mas à sua maneira humilde não é Deus? Portanto ali estávamos sentados, Celie, a olhar para o Deus dos Olinkas. E, Celie, eu estava tão cansada e cheia de sono e de galinha e de estufado de amendoins, com os ouvidos a tremerem por causa das canções, que tudo o que Joseph dizia era perfeitamente lógico para mim. Penso no que irás achar de tudo isto. Com amizade, A tua irmã, Nettie.”



(A cor púrpura; tradução de Paula Reis; edição portuguesa)



(*) Nota do blog: Os Olinkas não existem, são uma criação ficcional da autora.



(Ilustração: Elisha Ongere - Three Turkana Beauties)


segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

ЛЮБОВЬ / AMOR, de Joseph Brodsky (Iósif Bródski)

     


Я дважды пробуждался этой ночью

и брел к окну, и фонари в окне,

обрывок фразы, сказанной во сне,

сводя на нет, подобно многоточью,

не приносили утешенья мне.



Ты снилась мне беременной, и вот,

проживши столько лет с тобой в разлуке,

я чувствовал вину свою, и руки,

ощупывая с радостью живот,

на практике нашаривали брюки



и выключатель. И бредя к окну,

я знал, что оставлял тебя одну

там, в темноте, во сне, где терпеливо

ждала ты, и не ставила в вину,

когда я возвращался, перерыва



умышленного. Ибо в темноте —

там длится то, что сорвалось при свете.

Мы там женаты, венчаны, мы те

двуспинные чудовища, и дети

лишь оправданье нашей наготе.



В какую-нибудь будущую ночь

ты вновь придешь усталая, худая,

и я увижу сына или дочь,

еще никак не названных,— тогда я

не дернусь к выключателю и прочь



руки не протяну уже, не вправе

оставить вас в том царствии теней,

безмолвных, перед изгородью дней,

впадающих в зависимость от яви,

с моей недосягаемостью в ней.



Tradução de Lauro Machado Coelho:



Duas vezes despertei, durante a noite, e fui

para a janela. As lâmpadas, na rua,

eram um pedaço de uma frase dita em sonhos,

levando a parte alguma, como reticências,

sem trazer consolo ou alegria.



Sonhei contigo, quando grávida, e hoje;

tenho vivido tantos anos longe de ti,

senti toda a minha culpa; e suas mãos,

ao tocarem alegremente o teu ventre,

estavam na verdade remexendo



no interruptor da luz. Indo até a janela,

percebi ter-te deixado lá sozinha,

no escuro, no sonho, onde pacientemente

me esperaste, sem me culpar,

até que voltei daquela insólita



interrupção. Pois o escuro, este que a luz

finalmente rompe, dura muito;

nele nos casamos, foi nele que fizemos

amor; e as crianças vieram para

justificar nossa nudez.



Em alguma noite do futuro virás

de novo para mim, cansada, mais magra,

e verei um filho ou filha,

ainda sem nome – desta vez

não correrei para a tomada, nem



tirarei a mão, pois não tenho o direito

de te abandonar nos domínios das sombras

silenciosas, diante da cerca dos dias,

caindo na dependência de uma realidade

que me contém – e inatingível.



(Poesia soviética)

(Ilustração: Lilit Vardanyan - Pregnancy -Armenia - 2006)


sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

O GENERAL E O SAMBA QUE NASCE NO CORAÇÃO, de Ruy Castro

 



Às vésperas dos sessenta anos, em novembro de 1955, o general Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, ministro da Guerra do presidente Café Filho, era neuroticamente metódico — tinha hora marcada até para beber água. Acordava às quatro da manhã, fazia ginástica sueca, ia para o ministério na avenida Presidente Vargas, onde dava religioso expediente, voltava para sua casa em Copacabana, jantava uma sopa e se recolhia às 20h30. Por sorte, seu programa favorito de televisão ia ao ar mais cedo: As Aventuras de Rin-Tin-Tin. A ideia de transgredir a ordem depondo um presidente da República devia ser-lhe intolerável. A não ser que esse presidente estivesse ameaçando algo maior do que todos — a Constituição. No caso, era o presidente interino, Carlos Luz (o mesmo que, em 1946, induzira o presidente Dutra a fechar os cassinos), que conspirava para não dar posse ao presidente e vice-presidente eleitos em outubro, Juscelino Kubitschek e João Goulart. Portanto, naquela madrugada de 11 de novembro, o general subverteu radicalmente os seus hábitos. Muito antes das quatro da manhã, vestiu a farda, espetou suas condecorações (não saía de casa sem elas), muniu-se de guarda-chuva (estava chovendo) e saiu para depor Carlos Luz.

Carlos Luz era presidente da Câmara e substituía o presidente Café Filho, internado com um infarto no Hospital dos Servidores do Estado. Para Café e Luz, aliados políticos de Carlos Lacerda, e para parte dos militares, Juscelino e Jango representavam a inaceitável volta do getulismo ao poder. Daí o clima de intranquilidade nos quartéis, com discursos pregando abertamente um golpe. Lott podia não simpatizar com os eleitos — porque tinham sido apoiados pelos comunistas —, mas, para ele, a quebra de hierarquia era inconcebível. Então, desde a noite anterior, em conluio com outros generais legalistas e comandantes de tropas, planejou um golpe preventivo — a tomada de pontos-chave, como o Palácio do Catete, os fortes, quartéis de polícia, centrais telefônicas e telegráficas, a Tribuna da Imprensa — e a deposição do presidente. Naquela madrugada, enquanto as boates do Leme e do Posto 6 desovavam na calçada seus primeiros clientes, o Rio, por ordens de Lott, tinha as ruas tomadas por 25 mil homens e centenas de tanques.

Lacerda não esperava de Lott uma atitude desse porte. Ele e o pessoal da UDN só o chamavam, com desprezo, de “Generalote” — ao contrário dos colegas de farda de Lott, que o conheciam muito bem e sempre se referiram a ele, com respeito, como “o Duffles”. Luz, Lacerda e seus correligionários podem tê-lo subestimado, mas, naquele momento, com o dia ainda amanhecendo, não demoraram a se convencer de que tinham perdido e sua situação era insustentável — se não fugissem, seriam presos. Às seis da manhã, refugiaram-se no Ministério da Marinha. Lá, foram aconselhados a deixar o Rio no cruzador Tamandaré, que os esperava no porto, e rumar para Santos, cujas forças navais estavam do seu lado — dali, poderiam articular a resistência. Embarcaram e, uma hora depois, o Tamandaré já estava passando ao largo da fortaleza de São João, no Leme, cujos canhões começaram a disparar tiros de advertência — para grande perplexidade de Ary Barroso e outros boêmios do bairro, que voltavam cambaleantes para casa, sem saber de nada. O navio prosseguiu em direção ao Posto 6, e os canhonaços, disparados agora pelo Forte de Copacabana (doze, em doze minutos), não pareciam de advertência. Ao contrário, caíam muito perto do navio, como se fossem para valer — só que com má pontaria. O Tamandaré poderia ter respondido aos tiros e, durante alguns minutos, essa opção foi perigosamente considerada.

Em sua encarnação anterior, o Tamandaré fora um navio americano, o St. Louis, veterano da Segunda Guerra, com serviços prestados em Pearl Harbor, sobrevivente de ataques aéreos, protagonista no afundamento de vários navios japoneses e vendido ao Brasil em 1952. Seu poder de fogo era incomparavelmente maior que o dos canhões da Guerra do Paraguai que agonizavam nos fortes do Leme e de Copacabana. Se tivesse revidado — e se a pontaria de seus artilheiros fosse condizente com a das fortalezas —, a vizinhança dos fortes se banharia em sangue, não mais em uísque.

No Leme, correriam risco o Sacha’s, o Drink, o Arpège, o Bambu e o Plaza, próximos da orla, sem falar no Mocambo, no Sirocco e no La Conga, na área da avenida Prado Junior e já reduzidos a inferninhos. Além de restaurantes recém-inaugurados e também redutos da boemia: a Fiorentina, de Silvio e Zélia Hoffman, na avenida Atlântica; o Cabeça Chata, de Manezinho Araújo, no começo da rua Barata Ribeiro; o Chez Ruffin e a Cantina Sorrento, na praia. Nas imediações do Forte de Copacabana, sofreriam o Ranchinho do Posto 6 (onde até pouco antes ficava o Stud do Theo), o Posto 5, o Tudo Azul, o Farolito e o restaurante La Crémaillère, também com música ao vivo — lá cantavam Dick Farney, Inezita Barroso e o Trio Irakitan. Mas a grande baixa no Posto 6, em caso de retaliação do Tamandaré, seria o Marimbás, o clube no fim da avenida Atlântica, colado ao forte. Àquela hora, alguns de seus principais associados já estariam a postos: os campeões brasileiros de caça submarina, habituados a pegar meros e robalos gigantes, os antigos Cafajestes em peso e boêmios avulsos e qualificados, como Rubem Braga, Oscar Niemeyer e Di Cavalcanti.

A depender do comandante Silvio Heck, o Tamandaré teria promovido o strike de fortes e mandado as boates para o beleléu. Quem o dissuadiu foi o almirante Penna Boto. Carlos Luz o secundou, e o Tamandaré, assim que se viu fora do alcance das armas do forte, apontou seus canhões para cima, sinalizando que não iria responder. E nem adiantaria porque, ao saber que Santos também estava em poder dos legalistas, Luz e os outros reconheceram a derrota e se renderam.

Mas uma boate sofreu de verdade os efeitos do 11 de novembro: o Casablanca, na Praia Vermelha, já fora das mãos de Carlos Machado, que devolvera o imóvel à prefeitura. Cinco meses antes, o produtor Zilco Ribeiro, que o arrendara, estreara o show O samba nasce no coração, com uma constelação de nomes da velha guarda: Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Bide, J. Cascata, Ismael Silva, Vadico, Ataulpho Alves e suas pastoras, passistas, vedetes, dançarinos, comediantes e muitos mais. Era a volta triunfal daqueles fundadores do samba, depois de anos de esquecimento. O texto era de Meira Guimarães, sobre uma ideia de Sergio Porto.

Na primeira noite, assim que Pixinguinha entrou em cena com seu sax-tenor, Benedito Lacerda, velho amigo, levantou-se na primeira fila, já de flauta em punho, e tocou em dueto com ele, como faziam nos anos 40. Delírio na plateia. Lucio Rangel, ao entrar, arrancara a caricatura de Pixinguinha por Lan, pregada na porta, e passou a noite beijando-a e atirando beijos para o palco. Os irmãos Marinho (Roberto, Rogério e Ricardo), de O Globo, aplaudiam em uníssono. Almirante tomava notas. Ary Barroso apenas chorava. Ao fim do show, Paulo Bittencourt, do Correio da Manhã, também beijou respeitosamente as mãos de Pixinguinha. Todos os artistas sentiam-se reconhecidos — era como se a Praia Vermelha de 1955 fosse de novo a praça Onze de 1917 ou o Estácio de 1927, e “Pelo telefone” e “Se você jurar” estivessem sendo ouvidos pela primeira vez.

Seguiram-se meses de casa cheia e comentários empolgados na imprensa. Sergio Porto inventava diariamente um pretexto para falar do show no Diário Carioca, mas adaptando o título: “Em cartaz no Casablanca, O samba nasce no coração — e morre na voz de...”. Só mudava o nome do cantor: Francisco Carlos, João Dias, Ivon Curi — o que não era justo, porque nenhum desses cantores se dizia sambista.

Mas, então, Lott pôs os tanques na rua e depôs Carlos Luz. Desde as primeiras horas da manhã, a Praia Vermelha, sob a jurisdição da Marinha, tornara-se uma praça de guerra, com baterias antiaéreas, sacos de areia e soldados embalados. Já naquela noite do dia 11, apesar de os ânimos terem aparentemente serenado, ninguém foi ao Casablanca. Zilco Ribeiro esperou mais de uma hora na esperança de que o público chegasse. Em vão. Mas o elenco fez o show assim mesmo, para um único espectador: o próprio Zilco, sentado sozinho a uma mesa no centro do salão onde cabiam quatrocentas pessoas.

Nos dias seguintes, o público começou a voltar, mas em menor número, porque a situação política continuava conturbada, com novos lances todos os dias — Nereu Ramos, presidente do Senado, assumira o Catete e era o terceiro presidente da República em duas semanas; Café Filho deixara o hospital e ameaçara reassumir; Lott pôs de novo o pé na porta e confinou Café em seu apartamento em Copacabana; Carlos Luz renunciou à presidência da Câmara; Lacerda fugiu para Cuba, onde se exilou; Café sofreu impeachment pelo Congresso; Nereu continuou no Catete; e decretou-se o estado de sítio até a posse de Juscelino, em janeiro de 1956. Nunca se vira tanto entra e sai — mal as tropas desocupavam a Praia Vermelha e já tinham de voltar.

Delicado, como toda arte, O samba nasce no coração não aguentou esperar e morreu entre os tanques e canhões.



(A noite de meu bem – a história e as histórias do samba-canção)



(Ilustração: Heitor dos Prazeres - sarau)



terça-feira, 14 de dezembro de 2021

LA MORT DU LOUP / A MORTE DO LOBO, de Alfred de Vigny

 



I



Les nuages couraient sur la lune enflammée

Comme sur l'incendie on voit fuir la fumée,

Et les bois étaient noirs jusques à l'horizon.

Nous marchions, sans parler, dans l'humide gazon,

Dans la bruyère épaisse et dans les hautes brandes,

Lorsque, sous des sapins pareils à ceux des Landes,

Nous avons aperçu les grands ongles marqués

Par les loups voyageurs que nous avions traqués.

Nous avons écouté, retenant notre haleine

Et le pas suspendu. -- Ni le bois ni la plaine

Ne poussaient un soupir dans les airs; seulement

La girouette en deuil criait au firmament;

Car le vent, élevé bien au-dessus des terres,

N'effleurait de ses pieds que les tours solitaires,

Et les chênes d'en bas, contre les rocs penchés,

Sur leurs coudes semblaient endormis et couchés.

Rien ne bruissait donc, lorsque, baissant la tête,

Le plus vieux des chasseurs qui s'étaient mis en quête

A regardé le sable en s'y couchant; bientôt,

Lui que jamais ici l'on ne vit en défaut,

A déclaré tout bas que ces marques récentes

Annonçaient la démarche et les griffes puissantes

De deux grands loups-cerviers et de deux louveteaux.

Nous avons tous alors préparé nos couteaux,

Et, cachant nos fusils et leurs lueurs trop blanches,

Nous allions, pas à pas, en écartant les branches.

Trois s'arrêtent, et moi, cherchant ce qu'ils voyaient,

J'aperçois tout à coup deux yeux qui flamboyaient,

Et je vois au delà quatre formes légères

Qui dansaient sous la lune au milieu des bruyères,

Comme font chaque jour, à grand bruit sous nos yeux,

Quand le maître revient, les lévriers joyeux.

Leur forme était semblable et semblable la danse,

Mais les enfants du Loup se jouaient en silence,

Sachant bien qu'à deux pas, ne dormant qu'à demi,

Se couche dans ses murs l'homme, leur ennemi.

Le père était debout, et plus loin, contre un arbre,

Sa Louve reposait comme celle de marbre

Qu'adoraient les Romains, et dont les flancs velus

Couvaient les demi-dieux Rémus et Romulus.

Le Loup vient et s'assied, les deux jambes dressées,

Par leurs ongles crochus dans le sable enfoncées.

Il s'est jugé perdu, puisqu'il était surpris,

Sa retraite coupée et tous ses chemins pris;

Alors il a saisi, dans sa gueule brûlante,

Du chien le plus hardi la gorge pantelante,

Et n'a pas desserré ses mâchoires de fer,

Malgré nos coups de feu qui traversaient sa chair,

Et nos couteaux aigus qui, comme des tenailles,

Se croisaient en plongeant dans ses larges entrailles,

Jusqu'au dernier moment où le chien étranglé,

Mort longtemps avant lui, sous ses pieds a roulé.

Le Loup le quitte alors et puis il nous regarde.

Les couteaux lui restaient au flanc jusqu'à la garde,

Le clouaient au gazon tout baigné dans son sang;

Nos fusils l'entouraient en sinistre croissant.

Il nous regarde encore, ensuite il se recouche,

Tout en léchant le sang répandu sur sa bouche,

Et, sans daigner savoir comment il a péri,

Refermant ses grands yeux, meurt sans jeter un cri.



II



J'ai reposé mon front sur mon fusil sans poudre,

Me prenant à penser, et n'ai pu me résoudre

A poursuivre sa Louve et ses fils, qui, tous trois,

Avaient voulu l'attendre; et, comme je le crois,

Sans ses deux Louveteaux, la belle et sombre veuve

Ne l'eût pas laissé seul subir la grande épreuve;

Mais son devoir était de les sauver, afin

De pouvoir leur apprendre à bien souffrir la faim,

A ne jamais entrer dans le pacte des villes

Que l'homme a fait avec les animaux serviles

Qui chassent devant lui, pour avoir le coucher,

Les premiers possesseurs du bois et du rocher.



III



Hélas! ai-je pensé, malgré ce grand nom d'Hommes,

Que j'ai honte de nous, débiles que nous sommes!

Comment on doit quitter la vie et tous ses maux,

C'est vous qui le savez, sublimes animaux!

A voir ce que l'on fut sur terre et ce qu'on laisse,

Seul le silence est grand; tout le reste est faiblesse.

-- Ah! je t'ai bien compris, sauvage voyageur,

Et ton dernier regard m'est allé jusqu'au coeur!

Il disait : « Si tu peux, fais que ton âme arrive,

A force de rester studieuse et pensive,

Jusqu'à ce haut degré de stoïque fierté

Où, naissant dans les bois, j'ai tout d'abord monté.

Gémir, pleurer, prier est également lâche.

Fais énergiquement ta longue et lourde tâche

Dans la voie où le sort a voulu t'appeler,

Puis, après, comme moi, souffre et meurs sans parler. »





Écrit au château du M***, 1843

(Les Destinées -posthume)



Tradução José Lino Grünewald:



I



Corriam nuvens sobre a lua incendiada

Qual sobre o incêndio vê-se fugir a fumaça,

E os bosques eram negros até o horizonte.

Andávamos calados pela úmida relva,

Pela urze espessa, nas charnecas elevadas,

Quando, sob os abetos iguais aos das Landes,

Nós percebemos as imensas marcas de unhas

Dos lobos viandantes aos quais perseguíamos.

Nós escutamos, suspendendo o nosso fôlego

E o passo interrompido – No bosque, na várzea

Nenhum suspiro solto nos ares; somente

A ventoinha em luto gritava pro céu;

Pois levantado o vento por cima das terras,

Só roçava seu sopro em torres solitárias,

E os carvalhos embaixo, ante as rochas pendidas,

Nos cotovelos pareciam estirados

Nenhum ruído, quando, baixando a cabeça,

O caçador mais velho entre os que iam na busca

Encarou o terreno ao se deitar; e logo,

Ele a quem nunca aqui se viu perder a pista,

Disse bem baixo que aquelas marcas recentes

Indicavam pegadas e garras potentes

De dois imensos linces e de dois filhotes,

Então nós todos ajustamos os facões,

E, ocultando os fuzis e seus brilhos bem brancos,

Seguimos passo a passo e afastando os galhos.

Três param e eu, a procurar o que eles viam,

Percebo de repente dois olhos em flama,

E diviso adiante quatro tênues formas

Dançando sob a lua no meio das urzes

Qual fazem todo dia, bem ruidosamente,

Quando o senhor retorna, os galgos radiantes.

Semelhantes nas formas e na sua dança;

Mas os filhos do Lobo em silêncio brincavam

Sabendo que ali perto, a dormir de olho aberto,

Deita-se nos seus muros o inimigo, o homem.

Seu pai de pé e, mais distante, junto a uma árvore,

A loba repousava, tal aquela em mármore

Que os romanos prezavam, o colo felpudo

Contendo os semideuses, que eram Remo e Rômulo.

Vem o lobo e se assenta, erguidas duas pernas,

Com suas unhas curvas no solo enterradas.

Julgava-se perdido, pois estava pasmo,

Ficam sem saída e os caminhos tomados;

Então prendeu com sua goela abrasante,

Só do cão mais audaz a garganta ofegante,

E não mais afrouxou suas férreas mandíbulas.

Malgrado nossos tiros varando-lhe a carne,

E as afiadas facas que, como tenazes,

Cruzam-se ao mergulhar em tais amplas entranhas,

Até o último instante onde o cão esganado,

Morto muito antes, sob o pé dele rolara.

O Lobo larga-o então, depois ele nos mira.

As facas enfiadas nele até o cabo,

Imóvel sobre a relva, banhado em seu sangue;

Cercavam-no os fuzis em sinistro luar.

Ele ainda nos olha, em seguida se estira,

Lambendo todo o sangue espalhado na boca,

Sem dignar-se saber como é que pereceu,

Cerrando os grandes olhos, morto sem um grito.



II



Reclinei minha fronte no fuzil sem pólvora,

Começando a pensar, e não pude decidir-me

A perseguir a Loba e seus filhos – os três

Queriam esperá-lo e, como eu acredito,

Sem os lobinhos, a linda e lúgubre viúva

Não o deixado, só, correndo o grande risco;

Mas era seu dever salvá-los com o fim

De poder ensinar-lhes a sofrer a fome,

A não entrar jamais no acordo das cidades

Que o homem fez com esses animais servis,

Cães que caçam para ele, para ter seu leito,

Os primeiros posseiros do bosque e rochedo.



III



Ah! pensei, apesar do grandioso nome Homens,

Quanta vergonha guardo em nós – débeis que somos!

Como deixar a vida e todos os seus males,

São os lobos que sabem, santos animais.

Vendo na terra o que se foi e o que se lega,

Só o silêncio é grande; o resto é só fraqueza.

– Ah! eu bem te entendi, selvagem viandante,

E teu último olhar me veio ao coração.

Dizia: “Se puderes que a tua alma aporte

À força de ficar aplicada a pensar,

Até aquele alto grau de uma estoica altivez

O qual, nascido em bosques, eu logo atingi.

Gemer, chorar, orar, tudo é igualmente vil.

Faz energicamente a longa e pesada obra

Pelo caminho onde o destino te chamou,

E depois, como eu, sofre e morre sem falar.”



(Poetas Franceses do Século XIX)


(Ilustração:Oudry Jean Baptiste - 1686-1755 - loup tenant tête à six chiens)


sábado, 11 de dezembro de 2021

OS OCIOSOS, de Bustos Domecq (Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares)



A era atômica, a cortina que cai sobre o colonialismo, a luta de interesses encontrados, a postulação comunista, a alta do custo de vida e a retratação dos meios de pagamento, o chamado do papa à concórdia, o progressivo debilitamento do nosso signo monetário, a prática do trabalho sem vontade, a proliferação de supermercados, a extensão de cheques sem fundos, a conquista do espaço, despovoamento do agro e o auge correlativo das favelas compõem todo um panorama inquietante que dá o que pensar. Diagnosticar os males é uma coisa; prescrever sua terapêutica é outra. Sem aspirar ao título de profetas, atrevemo-nos, no entanto, a insinuar que a importação de Ociosos no país, com vistas à sua fabricação, contribuirá não pouco para diminuir, à maneira de sedativo, o nervosismo hoje tão generalizado. O reino da máquina é um fenômeno que já ninguém disputa; o Ocioso comporta um passo a mais de tão inelutável processo.

Qual foi o primeiro telégrafo, qual o primeiro trator, qual a primeira Singer são perguntas que põem o intelectual em apuros; o problema não se coloca com relação aos Ociosos. Não há no orbe um iconoclasta que negue que o primeiro de todos obrou em Mulhouse e que seu incontestável progenitor foi o engenheiro Walter Eisengardt (1914-1941). Duas personalidades lutavam nesse valioso teutão: o incorrigível sonhador que publicou as duas monografias ponderáveis, hoje esquecidas, em torno das figuras de Molinos e do pensador de raça amarela Lao-tsé, e o sólido metódico de realização tenaz e de cérebro prático que, depois de arquitetar uma porção de máquinas claramente industriais, deu à luz, em 3 de junho de 1939, ao primeiro Ocioso de que se tem notícia. Falamos do modelo que se conserva no Museu de Mulhouse: apenas um metro e vinte e cinco de longitude, setenta centímetros de altura e quarenta de largura, mas nele quase todos os detalhes, desde os recipientes de metal até os condutos.

O segundo é de uso em toda localidade fronteiriça, uma das avós maternas do inventor era de cepa gaulesa e o mais notável da vizinhança a conhecia pelo nome de Germaine Baculard. O folheto no qual nos baseamos para este trabalho de fôlego intui que essa elegância, que é a marca da obra de Eisengardt, tem fonte de origem naquela irrigação de sangue cartesiano. Não regateamos nosso aplauso a esta amável hipótese que, além do mais, é adotada por Jean-Christophe Baculard, continuador e divulgador do mestre. Eisengardt faleceu mediante um acidente de automóvel da marca Bugatti; não lhe foi dado ver os Ociosos que hoje triunfam em usinas e escritórios. Prega que os contemple do céu, diminuídos pela distância e, por isso, mais de acordo com o protótipo que ele mesmo rematara!

Aqui vai agora um esboço do Ocioso, para aqueles leitores que ainda não tiveram o escrúpulo de ir examiná-lo em San Justo, na fábrica de Pistões Ubalde. O monumental artefato cobre a largura do terraço que centra o ponto da usina. Assim, a olho, lembra um linotipo desmesurado. É duas vezes mais alto que o capataz; seu peso se computa em várias toneladas de areia; a cor é de ferro pintado de preto; o material, de ferro.

Uma passarela em escadaria permite que o visitante o escrute e toque. Sentirá lá dentro como um leve pulsar e, se aplicar o ouvido, detectará um longínquo sussurro. De fato, há em seu interior um sistema de condutos pelos quais corre água na escuridão e uma que outra pedra. Ninguém pretenderá, no entanto, que são as qualidades físicas do Ocioso as que redundam na massa humana que o rodeia; é a consciência de que em suas entranhas palpita algo silencioso e secreto, algo que brinca e dorme.

A meta perseguida pelas românticas vigílias de Eisengardt foi plenamente alcançada; onde quer que haja um Ocioso, a máquina descansa e o homem, reanimado, trabalha.



(Crônicas de Bustos Domecq Novos Contos de Bustos Domecq; tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro)



(Ilustração: escultura de Sun-Hyuk Kim - a condição humana)

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

RAPSÓDIA DE SAULO, de Aurelio Arturo

  




Trabajar era bueno en el sur, cortar los árboles,

hacer canoas de los troncos.

Ir por los ríos en el sur, decir canciones,

era bueno. Trabajar entre ricas maderas.



(Un hombre de la riba, unas manos hábiles,

un hombre de ágiles remos por el río opulento,

me habló de las maderas balsámicas, de sus efluvios...

Un hombre viejo en el sur, contando historias).



Trabajar era bueno. Sobre troncos

la vida, sobre la espuma, cantando las crecientes.

¿Trabajar un pretexto para no irse del río,

para ser también el río, el rumor de la orilla?



Juan Gálvez, José Narváez, Pioquinto Sierra,

como robles entre robles... Era grato,

con vosotros cantar o maldecir, en los bosques

abatir avecillas como hojas del cielo.



Y Pablo Garcés, Julio Balcázar, los Ulloas,

tantos que allí se esforzaban entre los días.



Trajimos sin pensarlo en el habla los valles,

los ríos, su resbalante rumor abriendo noches,

un silencio que picotean los verdes paisajes,

un silencio cruzado por un ave delgada como hoja.



Mas los que no volvieron viven más hondamente,

los muertos viven en nuestras canciones.



Trabajar... Ese río me baña el corazón.

En el sur. Vi rebaños de nubes y mujeres más leves

que esa brisa que mece la siesta de los árboles.

Pude ver, os lo juro, era en el bello sur.



Grata fue la rudeza. Y las blancas aldeas,

tenían tan suaves brisas: pueblecillos de río,

en sus umbrales las mujeres sabían sonreír y dar un beso.

(Grata fue la rudeza y ese hábito de hombría y de resinas.



Me llena el corazón de luz de un suave rostro rosa



Aldea, paloma de mi hombro, yo que silbé por los caminos,

yo que canté, un hombre rudo, buscaré tus helechos;

acariciaré tu trenza oscura—un hombre bronco—,

tus perros lamerán otra vez mis manos toscas.



Yo que canté por los caminos, un hombre de la orilla

un hombre de ligeras canoas por los ríos salvajes.



Tradução de Wagner Mourão Brasil:



Trabalhar era bom lá no sul, cortar as árvores,

fazer canoas dos troncos.

Ir pelos rios lá no sul, dizer canções,

era bom. Trabalhar entre ricas madeiras.



(Um homem da riba, umas mãos hábeis,

um homem de ágeis remos pelo rio opulento,

falou-me das madeiras balsâmicas, de seus eflúvios...

Um homem velho lá no sul, contando histórias).



Trabalhar era bom. Sobre troncos

a vida, sobre a espuma, cantando os crescentes.

Trabalhar, um pretexto para não ir-se do rio,

para ser também o rio, o rumor da margem?



Juan Gálvez, José Narváez, Pioquinto Sierra,

como carvalhos entre carvalhos... Era agradável,

convosco cantar ou praguejar, nos bosques

abater as aves como se folhas do céu.



E Pablo Garcés, Julio Balcázar, os Ulloas,

tantos que ali se esforçavam por entre os dias.



Sem pensarmos trouxemos à baila os vales,

os rios, seu deslizante rumor abrindo noites,

um silêncio a que beliscam as verdes paisagens,

um silêncio atravessado por uma ave delgada como folha.



Mas os que não voltaram vivem mais intensamente,

os mortos vivem em nossas canções.



Trabalhar... Esse rio me banha o coração,

Lá no sul. Vi rebanhos de nuvens e mulheres mais ligeiras

que essa brisa que embala a sesta das árvores.

Pude ver, juro-lhes, era no belo sul.



Grata foi a aspereza. E as brancas aldeias,

usufruíam tão suaves brisas: povoados de rio,

em seus umbrais as mulheres sabiam sorrir e dar um beijo.

(Grata foi a aspereza e esse hábito de honradez e de resinas.



Enche-me o coração de luz de um suave rosto cor-de-rosa



Aldeia, pombo de meu ombro, eu que assobiei pelos caminhos,

eu que cantei, um homem rude, buscarei por tuas samambaias;

acariciarei tua trança escura - um homem bronco -,

teus cães lamberão outra vez minhas mãos toscas.



Eu que cantei pelos caminhos, um homem da margem

um homem de ligeiras canoas pelos rios selvagens.



(Ilustração: Carolyn Ann Steward - the rivers edge)


domingo, 5 de dezembro de 2021

O MISTÉRIO DA POESIA, de Rubem Braga

 



Não sei o nome desse poeta, acho que boliviano; apenas lhe conheço um poema, ensinado por um amigo. E só guardei os primeiros versos: Trabajar era bueno en el Sur. Cortar los árboles, hacer canoas de los troncos. *

E tendo guardado esses dois versos tão simples, aqui me debruço ainda uma vez sobre o mistério da poesia.

O poema era grande, mas foram essas palavras que me emocionaram. Lembro-me delas às vezes, numa viagem; quando estou aborrecido, tenho notado que as murmuro para mim mesmo, de vez em quando, nesses momentos de tédio urbano. E elas produzem em mim uma espécie de consolo e de saudade não sei de quê.

Lembrei-me agora mesmo, no instante em que abria a máquina para trabalhar nessa coisa vã e cansativa que é fazer crônica.

De onde vem o efeito poético? É fácil dizer que vem do sentido dos versos; mas não é apenas do sentido. Se ele dissesse: Era bueno trabajar en el Sur, não creio que o poema pudesse me impressionar. Se no lugar de usar o infinito do verbo cortar e do verbo hacer usasse o passado, creio que isso enfraqueceria tudo. Penso no ritmo; ele sozinho não dá para explicar nada. Além disso, as palavras usadas são, rigorosamente, das mais banais da língua. Reparem que tudo está dito com os elementos mais simples: trabajar, era bueno, Sur, cortar, árboles, hacer canoas, troncos.

Isso me lembra um dos maiores versos de Camões, todo ele também com as palavras mais corriqueiras de nossa língua:

“A grande dor das coisas que passaram.”

Talvez o que impressione seja mesmo isso: essa faculdade de dar um sentido solene e alto às palavras de todo dia. Nesse poema sul-americano a ideia da canoa é também um motivo de emoção.

Não há coisa mais simples e primitiva que uma canoa feita de um tronco de árvore; e acontece que muitas vezes a canoa é de uma grande beleza plástica. E de repente me ocorre que talvez esses versos me emocionem particularmente por causa de uma infância de beira-rio e de beira-mar. Mas não pode ser: o principal sentido dos versos é o do trabalho; um trabalho que era bom, não essa “necessidade aborrecida” de hoje. Desejo de fazer alguma coisa simples, honrada e bela, e imaginar que já se fez.

Fala-se muito em mistério poético; e não faltam poetas modernos que procurem esse mistério enunciando coisas obscuras, o que dá margem a muito equívoco e muita bobagem. Se na verdade existe muita poesia e muita carga de emoção em certos versos sem um sentido claro, isso não quer dizer que, turvando um pouco as águas, elas fiquem mais profundas…



(*) O poema é Rapsodia de Saulo do poeta colombiano Aurelio Arturo.


(Ilustração: Remedios Varo - Insomnia)





quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

СЕЯТЕЛЬ / O SEMEADOR, de Алекса́ндр Пу́шкин /Aleksander Púchkin

 





Изыде сеятель сеяти семена своя.



Свободы сеятель пустынный,

Я вышел рано, до звезды;

Рукою чистой и безвинной

В порабощенные бразды

Бросал живительное семя —

Но потерял я только время,

Благие мысли и труды...



Паситесь, мирные народы!

Вас не разбудит чести клич.

К чему стадам дары свободы?

Их должно резать или стричь.

Наследство их из рода в роды

Ярмо с гремушками да бич.



(1823)



Tradução de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher:



O semeador saiu para semear



Eu semeador, deserto afora,

da liberdade, fui com mão

pura lançar, antes que a aurora

nascesse, o grão que revigora

nos sulcos vis da escravidão.

Mas todo esforço foi em vão:

joguei vontade e tempo fora.



Pasce, pois eu te repudio,

ralé submissa e surda ao brio.

Libertar gado é faina ingrata,

pois gado se tosquia e mata.

Herda, por gerações a fio,

canga, chocalhos e chibata.



(1823)



(A dama de espadas: prosa e poemas)



(Ilustração:  Vincent van Gogh - The Sower)

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

OS DOIS NAVIOS NEGREIROS, de Gilberto Cunha

 



Dois escritores, Heinrich Heine (1797-1856) e Castro Alves (1847-1871), e dois poemas com o mesmo título, Das Sklavenschiff e O Navio Negreiro, e a mesma temática, o tráfico de escravos para o Brasil; mas não um caso de plágio. Eis um fato literário instigante, para os chamados estudos de literatura comparada, que nos permite, mais do que tirar conclusões apressadas, conhecer esses autores, suas motivações e suas obras, e perceber que, apesar do tempo transcorrido, desde que foram escritas, por mais incrível que isso possa parecer, não soam desatualizadas e nem destituídas de significado.

Há divergências e convergências nos poemas de Heinrich Heine e de Castro Alves, Divergem no estilo de linguagem e convergem no tema. Fora isso, nada mais os une, mesmo sendo enquadrados como poetas românticos e terem retratado em versos, com maestria inigualável, a exploração do homem pelo homem.

Heinrich Heine é considerado um poeta marginal entre os românticos. Viveu dividido entre a Alemanha e a França e os ideais da revolução de 1789. Era visto como alemão entre os franceses, como judeu entre os cristãos e como convertido entre os judeus. Radicou-se, definitivamente, em Paris, em 1831, e virou referência para os poetas ocidentais na segunda metade do século XIX. Teve seus poemas musicados por Schumann e Schubert, entre outros notáveis. Foi amigo de Karl Marx e, dizem, teria saído da sua lavra a expressão que qualifica a religião como ”ópio do povo” e a clássica frase “aqueles que queimam livros, acabam, cedo ou tarde, por queimar homens”. E, por ironia do destino, entre os livros queimados pelos nazistas, em 1933, na Praça da Ópera, em Berlim, estavam as obras de Heine. Morreu em Paris, em 1856.

Castro Alves que, apesar de ter morrido jovem, aos 24 anos de idade, pode ser considerado um poeta que arrebatava plateias com a sua paixão pela causa do abolicionismo da escravatura no Brasil e pelo lirismo. Era filho de família abastada e fazia parte de uma juventude que havia recebido formação jurídica mais nos padrões franceses do que portugueses, tendo Paris em vez de Coimbra como modelo, além de ter sido educada para usar a poesia como elemento de retórica da persuasão. O seu lado lírico, manifesto na paixão por Eugênia Câmara, foi expresso nos versos do poema Boa Noite: “Boa noite!... e tu dizes – Boa noite. / Mas não diga assim por entre beijos.../ Mas não me digas descobrindo o peito, /- Mar de amor onde vagam meus desejos. (...)”. E o lado social em Vozes d’África e O Navio Negreiro, por exemplo.

É fato histórico que o tráfico de escravos para o Brasil serviu de inspiração de cunho político para Heine e Castro Alves. Também é inquestionável que Castro Alves, quando publicou o seu poema, em1968, apesar de distanciado no tempo, uma vez que o último desembarque clandestino de escravos para o País data de 1855, conhecia a obra de Heine, original em alemão de 1854, especialmente a versão francesa.

Heine enfatiza a perspectiva comercial do capitão do navio e do médico que se preocupam com a rentabilidade da mercadoria transportada. Usa expressões que chocam pela crueza e cinismo, ao concluírem que os negros devem se divertir sob a batuta do chicote, para reduzir a mortalidade por tristeza e melancolia. Abjeta e repugnante é a figura do capitão, de mãos postas, pedindo a Deus: “Poupa suas vidas pelo sangue de Cristo, / que por todos nós morreu! / Pois se não me sobram trezentas peças,/ todo meu negócio se perdeu”.

Castro Alves, ao seu estilo, com expressividade e eloquência, produziu um discurso libertário, após retratar a cena da dança dos negros no convés do navio: “Senhor Deus dos desgraçados!/ Dizei-me vós, Senhor Deus!/Se é loucura...se é verdade/ Tanto horror perante os céus.../; Ó mar! Por que não apagas/ Co’a esponja de tuas vagas/De teu manto esse borrão?.../ Astros! Noite! Tempestades! / Rolai das imensidades!/ Varrei os mares, tufão! (...)

Castro Alves é genial, mas Heine, pela crítica social mais densa e pela linguagem irônica, soa mais contemporâneo do que o nosso poeta condoreiro.



(Ilustração: Cândido Portinari - Navio Negreiro – 1950)





sexta-feira, 26 de novembro de 2021

DAS SKLAVENSCHIFF / O NAVIO NEGREIRO, de Heinrich Heine





I



Der Superkargo Mynheer van Koek

Sitzt rechnend in seiner Kajüte;

Er kalkuliert der Ladung Betrag

Und die probabeln Profite.



»Der Gummi ist gut, der Pfeffer ist gut,

Dreihundert Säcke und Fässer;

Ich habe Goldstaub und Elfenbein -

Die schwarze Ware ist besser.



Sechshundert Neger tauschte ich ein

Spottwohlfeil am Senegalflusse.

Das Fleisch ist hart, die Sehnen sind stramm,

Wie Eisen vom besten Gusse.



Ich hab zum Tausche Branntewein,

Glasperlen und Stahlzeug gegeben;

Gewinne daran achthundert Prozent,

Bleibt mir die Hälfte am Leben.



Bleiben mir Neger dreihundert nur

Im Hafen von Rio-Janeiro,

Zahlt dort mir hundert Dukaten per Stück

Das Haus Gonzales Perreiro.«



Da plötzlich wird Mynheer van Koek

Aus seinen Gedanken gerissen;

Der Schiffschirurgius tritt herein,

Der Doktor van der Smissen.



Das ist eine klapperdürre Figur,

Die Nase voll roter Warzen -

»Nun, Wasserfeldscherer«, ruft van Koek,

»Wie geht's meinen lieben Schwarzen?«



Der Doktor dankt der Nachfrage und spricht:

»Ich bin zu melden gekommen,

Daß heute nacht die Sterblichkeit

Bedeutend zugenommen.



Im Durchschnitt starben täglich zwei,

Doch heute starben sieben,

Vier Männer, drei Frauen - Ich hab den Verlust

Sogleich in die Kladde geschrieben.



Ich inspizierte die Leichen genau;

Denn diese Schelme stellen

Sich manchmal tot, damit man sie

Hinabwirft in die Wellen.



Ich nahm den Toten die Eisen ab;

Und wie ich gewöhnlich tue,

Ich ließ die Leichen werfen ins Meer

Des Morgens in der Fruhe.



Es schossen alsbald hervor aus der Flut

Haifische, ganze Heere,

Sie lieben so sehr das Negerfleisch;

Das sind meine Pensionäre.



Sie folgten unseres Schiffes Spur,

Seit wir verlassen die Küste;

Die Bestien wittern den Leichengeruch

Mit schnupperndem Fraßgelüste.



Es ist possierlich anzusehn,

Wie sie nach den Toten schnappen!

Die faßt den Kopf, die faßt das Bein,

Die andern schlucken die Lappen.



Ist alles verschlungen, dann tummeln sie sich

Vergnügt um des Schiffes Planken

Und glotzen mich an, als wollten sie

Sich für das Frühstück bedanken.«



Doch seufzend fällt ihm in die Red'

Van Koek: »Wie kann ich lindern

Das Übel? wie kann ich die Progression

Der Sterblichkeit verhindern?«



Der Doktor erwidert: »Durch eigne Schuld

Sind viele Schwarze gestorben;

Ihr schlechter Odem hat die Luft

Im Schiffsraum so sehr verdorben.



Auch starben viele durch Melancholie,

Dieweil sie sich tödlich langweilen;

Durch etwas Luft, Musik und Tanz

Läßt sich die Krankheit heilen.«



Da ruft van Koek: »Ein guter Rat!

Mein teurer Wasserfeldscherer

Ist klug wie Aristoteles,

Des Alexanders Lehrer.



Der Präsident der Sozietät

Der Tulpenveredlung im Delfte

Ist sehr gescheit, doch hat er nicht

Von Eurem Verstande die Hälfte.



Musik! Musik! Die Schwarzen soll'n

Hier auf dem Verdecke tanzen.

Und wer sich beim Hopsen nicht amüsiert,

Den soll die Peitsche kuranzen.«



II



Hoch aus dem blauen Himmelszelt

Viel tausend Sterne schauen,

Sehnsüchtig glänzend, groß und klug,

Wie Augen von schönen Frauen.



Sie blicken hinunter in das Meer,

Das weithin überzogen

Mit phosphorstrahlendem Purpurduft;

Wollüstig girren die Wogen.



Kein Segel flattert am Sklavenschiff,

Es liegt wie abgetakelt;

Doch schimmern Laternen auf dem Verdeck,

Wo Tanzmusik spektakelt.



Die Fiedel streicht der Steuermann,

Der Koch, der spielt die Flöte,

Ein Schiffsjung' schlägt die Trommel dazu,

Der Doktor bläst die Trompete.



Wohl hundert Neger, Männer und Fraun,

Sie jauchzen und hopsen und kreisen

Wie toll herum; bei jedem Sprung

Taktmäßig klirren die Eisen.



Sie stampfen den Boden mit tobender Lust,

Und manche schwarze Schöne

Umschlinge wollüstig den nackten Genoß -

Dazwischen ächzende Töne.



Der Büttel ist Maître des plaisirs,

Und hat mit Peitschenhieben

Die lässigen Tänzer stimuliert,

Zum Frohsinn angetrieben.



Und Dideldumdei und Schnedderedeng!

Der Lärm lockt aus den Tiefen

Die Ungetüme der Wasserwelt,

Die dort blödsinnig schliefen.



Schlaftrunken kommen geschwommen heran

Haifische, viele hundert;

Sie glotzen nach dem Schiff hinauf,

Sie sind verdutzt, verwundert.



Sie merken, daß die Frühstückstund'

Noch nicht gekommen, und gähnen,

Aufsperrend den Rachen; die Kiefer sind

Bepflanzt mit Sägezähnen.



Und Dideldumdei und Schnedderedeng -

Es nehmen kein Ende die Tänze.

Die Haifische beißen vor Ungeduld

Sich selber in die Schwänze.



Ich glaube, sie lieben nicht die Musik,

Wie viele von ihrem Gelichter.

»Trau keiner Bestie, die nicht liebt

Musik!« sagt Albions großer Dichter.



Und Schnedderedeng und Dideldumdei -

Die Tänze nehmen kein Ende.

Am Fockmast steht Mynheer van Koek

Und faltet betend die Hände:



»Um Christi willen verschone, o Herr,

Das Leben der schwarzen Sünder!

Erzürnten sie dich, so weißt du ja,

Sie sind so dumm wie die Rinder.



Verschone ihr Leben um Christi will'n,

Der für uns alle gestorben!

Denn bleiben mir nicht dreihundert Stück,

So ist mein Geschäft verdorben.«



Tradução de Augusto Meyer:



O sobrecargo Mynheer van Koek

Calcula no seu camarote

As rendas prováveis da carga,

Lucro e perda em cada lote.



"Borracha, pimenta, marfim

E ouro em pó... Resumindo, eu digo:

Mercadoria não me falta,

Mas negro é o melhor artigo.



Seiscentas peças barganhei

-- Que pechincha! -- no Senegal;

A carne é rija, os músculos de aço,

Boa liga do melhor metal.



Em troca dei só aguardente,

Contas, latão -- um peso morto!

Eu ganho oitocentos por cento

Se a metade chegar ao porto.



Se chegarem trezentos negros

Ao porto do Rio Janeiro,

Pagará cem ducados por peça

A casa Gonzales Perreiro."



De súbito, Mynheer van Koek

Voltou-se, ao ouvir um rumor;

É o cirurgião de bordo que entra,

É van der Smissen, o doutor.



Que focinheira verrugenta!

Que magreza desengonçada!

"E então, seo doutor, diz van Koek,

Como vai a minha negrada?'



Depois dos rapapés, o médico,

Sem mais prolilóquios, relatando"

"A contar desta noite, observa,

Os óbitos vêm aumentando.



Em média eram só dois por dia,

Mas hoje faleceram sete:

Quatro machos, três fêmeas, perda

Que arrolei no meu balancete.



Examinei logo os cadáveres,

Pois o negro desatinado

Se finge de morto, esperando,

Lançado ao mar, fugir a nado!



Seguindo à risca as instruções,

Ao primeiro clarear da aurora,

Mandei retirar os grilhões

E -- carga ao mar! -- sem mais demora.



Os tubarões, meus pensionistas,

Acudiram todos, em bando.

Carne de negro é manjar fino

Que aparece de vez em quando.



Mal nos afastamos da costa,

Rastreiam o barco, na esteira,

Farejando de muito longe

Os eflúvios da pestiqueira.



Edificante é o espetáculo,

Pois o tubarão narigudo

Não escolhe cabeça ou perna

E abocanha, devora tudo!



Como se opíparo banquete

Fosse um simples aperitivo,

Põe-se a rondar, pedindo mais,

Sempre à espreita e de olho vivo!"



Mas o inquieto van Koek lhe corta

O relato em meio... Como há de

Remediar-se a perda, pergunta,

Combatendo a letalidade?



Responde o doutor: "Natural

É a causa; os negros encerrados,

A catinga, a inhaca, o bodum

Deixam os ares empestados.



Muitos, além disso, definham

De banzo ou de melancolia;

São males que talvez se curem

Com dança, música e folia."



"O conselho é de mestre!", exclama

Van Koek. O preclaro doutor

É perspicaz como Aristóteles,

Que de Alexandre era mentor!



Eu, presidente dos Amigos

Da Tulipa em Delft, declaro

Que, embora sabido, ao seu lado,

Não passo de aprendiz, meu caro.



Música! Música! A negrada

Suba logo para o convés!

Por gosto ou ao som da chibata

Batucará no bate-pés!"



O céu estrelado é mais nítido

Lá na translucidez da altura.

Há um espreitar de olhos curiosos

Em cada estrela que fulgura.



Eles vieram ver de mais perto

No mar alto, de quando em quando,

O fosforear das ardentias,

Quebra a onda, em marulho brando.



Atrita a rabeca o piloto,

Sopra na flauta o cozinheiro,

Zabumba o grumete no bombo

E o cirurgião é o corneteiro.



A negrada, machos e fêmeas,

Aos pulos, aos gritos, aos trancos,

Gira e regira: a cada passo,

Os grilhões ritmam os arrancos



E saltam, volteiam com fúria incontida,

Mais de uma linda cativa

Lúbrica, enlaça o par desnudo --

Há gemidos, na roda vida.



O beleguim é o maitres des plaisirs,

É ele quem manda e desmanda;

Instiga o remisso a vergalho

E rege a grito a sarabanda.



E taratatá e denrendendém!

O saracoteio insano

Desperta os monstros que dormem nas ondas

Ao profundo embalo do oceano.



Tubarões, ainda tontos de sono,

Vêm vindo, de todos os lados;

Querem ver, querem ver para crer,

Estão de olhos arregalados.



Mas percebem que o desjejum

Longe está e logo, impacientes,

Num bocejo de tédio e fome

Arreganham a serra dos dentes.



E taratatá e denrendendém!

Não tem fim a coreia estranha.

Mais de um tubarão esfaimado

Sua própria cauda abocanha.



Eles não querem saber de música

Como outros do mesmo jaez.

"Desconfia de quem não gosta

De música", disse o poeta inglês.



E denrendenrém e taratá --

A estranha festança não tem fim.

No mastro do traquete, van Koek,

De mãos postas, rezava assim:



"Meu Deus, conserva os meus negros,

Poupa-lhes a vida, sem mais!

Pecaram, Senhor, mas considera

Que afinal não passam de animais.



Poupa-lhes a vida, pensa no teu Filho,

Que ele por todos nós sacrificou-se!

Pois, se não me sobrarem trezentas peças,

Meu rico negocinho acabou-se!"



(Ilustração: Theodor Hosemann: Das Sklavenschiff, 1857)