Dois escritores, Heinrich Heine (1797-1856) e Castro Alves (1847-1871), e dois poemas com o mesmo título, Das Sklavenschiff e O Navio Negreiro, e a mesma temática, o tráfico de escravos para o Brasil; mas não um caso de plágio. Eis um fato literário instigante, para os chamados estudos de literatura comparada, que nos permite, mais do que tirar conclusões apressadas, conhecer esses autores, suas motivações e suas obras, e perceber que, apesar do tempo transcorrido, desde que foram escritas, por mais incrível que isso possa parecer, não soam desatualizadas e nem destituídas de significado.
Há divergências e convergências nos poemas de Heinrich Heine e de Castro Alves, Divergem no estilo de linguagem e convergem no tema. Fora isso, nada mais os une, mesmo sendo enquadrados como poetas românticos e terem retratado em versos, com maestria inigualável, a exploração do homem pelo homem.
Heinrich Heine é considerado um poeta marginal entre os românticos. Viveu dividido entre a Alemanha e a França e os ideais da revolução de 1789. Era visto como alemão entre os franceses, como judeu entre os cristãos e como convertido entre os judeus. Radicou-se, definitivamente, em Paris, em 1831, e virou referência para os poetas ocidentais na segunda metade do século XIX. Teve seus poemas musicados por Schumann e Schubert, entre outros notáveis. Foi amigo de Karl Marx e, dizem, teria saído da sua lavra a expressão que qualifica a religião como ”ópio do povo” e a clássica frase “aqueles que queimam livros, acabam, cedo ou tarde, por queimar homens”. E, por ironia do destino, entre os livros queimados pelos nazistas, em 1933, na Praça da Ópera, em Berlim, estavam as obras de Heine. Morreu em Paris, em 1856.
Castro Alves que, apesar de ter morrido jovem, aos 24 anos de idade, pode ser considerado um poeta que arrebatava plateias com a sua paixão pela causa do abolicionismo da escravatura no Brasil e pelo lirismo. Era filho de família abastada e fazia parte de uma juventude que havia recebido formação jurídica mais nos padrões franceses do que portugueses, tendo Paris em vez de Coimbra como modelo, além de ter sido educada para usar a poesia como elemento de retórica da persuasão. O seu lado lírico, manifesto na paixão por Eugênia Câmara, foi expresso nos versos do poema Boa Noite: “Boa noite!... e tu dizes – Boa noite. / Mas não diga assim por entre beijos.../ Mas não me digas descobrindo o peito, /- Mar de amor onde vagam meus desejos. (...)”. E o lado social em Vozes d’África e O Navio Negreiro, por exemplo.
É fato histórico que o tráfico de escravos para o Brasil serviu de inspiração de cunho político para Heine e Castro Alves. Também é inquestionável que Castro Alves, quando publicou o seu poema, em1968, apesar de distanciado no tempo, uma vez que o último desembarque clandestino de escravos para o País data de 1855, conhecia a obra de Heine, original em alemão de 1854, especialmente a versão francesa.
Heine enfatiza a perspectiva comercial do capitão do navio e do médico que se preocupam com a rentabilidade da mercadoria transportada. Usa expressões que chocam pela crueza e cinismo, ao concluírem que os negros devem se divertir sob a batuta do chicote, para reduzir a mortalidade por tristeza e melancolia. Abjeta e repugnante é a figura do capitão, de mãos postas, pedindo a Deus: “Poupa suas vidas pelo sangue de Cristo, / que por todos nós morreu! / Pois se não me sobram trezentas peças,/ todo meu negócio se perdeu”.
Castro Alves, ao seu estilo, com expressividade e eloquência, produziu um discurso libertário, após retratar a cena da dança dos negros no convés do navio: “Senhor Deus dos desgraçados!/ Dizei-me vós, Senhor Deus!/Se é loucura...se é verdade/ Tanto horror perante os céus.../; Ó mar! Por que não apagas/ Co’a esponja de tuas vagas/De teu manto esse borrão?.../ Astros! Noite! Tempestades! / Rolai das imensidades!/ Varrei os mares, tufão! (...)
Castro Alves é genial, mas Heine, pela crítica social mais densa e pela linguagem irônica, soa mais contemporâneo do que o nosso poeta condoreiro.
(Ilustração: Cândido Portinari - Navio Negreiro – 1950)
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