terça-feira, 29 de setembro de 2020

SONHO, de Beatriz Nascimento

 


[A todas as mulheres pretas espalhadas pelo mundo, 

a todas as demais mulheres 

e a Isabel Nascimento, Regina Timbó 

e Marlene Cunha. 1989]. 



Seu nome era dor

Seu sorriso dilaceração

Seus braços e pernas, asas

Seu sexo seu escudo

Sua mente libertação

Nada satisfaz seu impulso

De mergulhar em prazer

Contra todas as correntes

Em uma só correnteza

Quem faz rolar quem tu és?

Mulher!...

Solitária e sólida

Envolvente e desafiante

Quem te impede de gritar

Do fundo de sua garganta

Único brado que alcança

Que te delimita

Mulher!

Marca de mito embotável

Mistério que a tudo anuncia

E que se expõe dia-a-dia

Quando deverias estar resguardada

Seu ritus de alegria

Seus véus entrecruzados de velharias

Da inóspita tradição irradias

Mulher!

Há corte e cortes profundos

Em sua pele em seu pelo

Há sulcos em sua face

Que são caminhos do mundo

São mapas indecifráveis

Em cartografia antiga

Precisas de um pirata

De boa pirataria

Que te arranques da selvageria

E te coloque, mais uma vez,

Diante do mundo

Mulher.





(Todas (as) distâncias: poemas, aforismos e ensaios de Beatriz Nascimento)



(Ilustração: Makiwa Mutomba - Zimbawe)




sábado, 26 de setembro de 2020

A TORTURA DE GATOS NA FRANÇA DO SÉCULO XVIII, de Robert Darnton

 


A tortura de animais, especialmente os gatos, era um divertimento popular em toda a Europa, no início dos Tempos Modernos. Basta examinar as Etapas da crueldade, de Hogarth, para verificar sua importância e, quando se começa a procurar, encontram-se pessoas torturando animais em toda parle. As matanças de gatos tornaram-se um tema comum na literatura, do Dom Quixote, no início do século XVII, na Espanha, ao Germinal, no fim do século XIX, na França. Longe de ser uma fantasia sádica da parte de alguns poucos autores meio loucos, as versões literárias da crueldade para com os animais expressavam uma corrente profunda da cultura popular, como mostrou Mikhail Bakhtin, em seu estudo de Rabelais. Todos os tipos de relatórios etnográficos confirmam esse ponto de vista. No dimanche des brandons, em Semur, por exemplo, as crianças costumavam amarrar gatos a varas e assá-los em fogueiras. No leu du chat, no Corpus Christi em Aix-en-Pro-vence, jogavam os animais para cima, bem alto, e eles se espatifavam no chão. Eram usadas expressões como "paciente como um gato cujas garras estão sendo arrancadas" ou "paciente como um gato cujas patas estão sendo grelhadas". Os ingleses eram igualmente cruéis. Durante a Reforma, em Londres, uma multidão protestante raspou os pelos de um gato de modo a fazê-lo parecer-se com um padre, vestiu-o com uma batina em miniatura e enforcou-o no patíbulo, em Cheapside. Seria possível enumerar muitos outros exemplos, mas a questão é clara: nada havia de incomum na matança ritual de gatos. [...] 

Para entender bem esse assunto, devemos examinar as coletâneas de contos populares, superstições, provérbios e a medicina popular. O material é rico, variado e vasto, mas extremamente difícil de lidar. Embora grande parte dele remonte à Idade Média, pouca coisa pode ser datada. Foi recolhido na maior parte por folcloristas, no fim do século XIX e início do século XX, quando vigorosos produtos do folclore ainda resistiam à palavra escrita. Mas as coletâneas não possibilitam uma afirmação de que esta ou aquela prática existiu nas gráficas de Paris, em meados do século XVIII. Podemos apenas declarar que os tipógrafos viviam e respiravam numa atmosfera de costumes e crenças tradicionais, que envolvia tudo. Não era a mesma em toda parte — a França permaneceu uma colcha de retalhos de pays, em vez de uma nação unificada, até o fim do século XIX — mas, em toda parte, eram encontrados alguns temas comuns. Os mais comuns relacionavam-se com os gatos. Os franceses, no início dos Tempos Modernos, provavelmente usaram mais os gatos, em nível simbólico, do que qualquer outro animal, e usavam-no de maneiras diferentes, mas que podem ser reunidas para exame, apesar das peculiaridades regionais. 

Antes de mais nada, os gatos sugeriam feitiçaria. Cruzar com um deles, à noite, praticamente em qualquer parte da França, significava arriscar-se a se deparar com o demônio, com um de seus agentes ou com uma feiticeira indo cumprir alguma malévola missão. Os gatos brancos podiam ser tão satânicos quanto os pretos, de dia ou de noite. Num encontro típico, uma camponesa de Bigorre encontrou um bonito gato branco, doméstico, que se perdera nos campos. Carregou-o de volta para a aldeia em seu avental e, assim que chegaram à casa de uma mulher suspeita de feitiçaria, o gato pulou para fora, dizendo "Merci, Jeanne”. As feiticeiras se transformavam em gatos para enfeitiçar suas vítimas. Algumas vezes, especialmente na Terça-feira de Carnaval, reuniam-se para horrendos sabás à noite. Uivavam, brigavam e copulavam de maneira terrível, sob a direção do próprio demônio, na forma de um imenso gato. Para se proteger da feitiçaria do gato, só havia um remédio, clássico: aleijá-lo. Cortando-lhe a cauda, aparando suas orelhas, quebrando-lhe uma perna, arrancando ou queimando seu pelo, a pessoa quebrava seu poder malévolo. Um gato aleijado não compareceria a um sabá nem andaria às soltas enfeitiçando ninguém. Os camponeses, frequentemente, esbordoavam gatos que cruzavam seu caminho, à noite, e descobriam, no dia seguinte, que as machucaduras haviam aparecido em mulheres que se acreditava serem bruxas — ou era isso que se dizia, na tradição de suas aldeias. Os aldeães também contavam histórias de fazendeiros que descobriam gatos estranhos em estrebarias e quebravam suas patas para salvar o gado. Invariavelmente, uma perna quebrada aparecia numa mulher suspeita, na manhã seguinte. 

Os gatos tinham poder oculto, independentemente de sua associação com a feitiçaria e a arte diabólica. Podiam impedir o pão de crescer, se entrassem nas padarias, em Anjou. Podiam estragar a pescaria, se cruzassem o caminho dos pescadores, na Bretanha. Quando enterrados vivos, no Béarn, podiam limpar as urtigas de um campo. Figuravam como ingredientes básicos em todos os tipos de medicina popular, além de constarem nas infusões das feiticeiras. Para se recuperar de uma queda forte, a pessoa devia sugar todo o sangue da cauda amputada de um gato macho. Para se curar de pneumonia, bebia-se o sangue da orelha de um gato, misturado com vinho tinto. Para fazer a cólica passar, misturava-se o vinho com excremento de gato. Alguém poderia até tornar-se invisível, pelo menos na Bretanha, comendo o cérebro de um gato que acabara de ser morto, desde que ainda estivesse quente. 

Havia um campo específico para o exercício do poder do gato: a casa e, particularmente, a pessoa do dono ou da dona da casa. Contos populares como "O gato de botas” enfatizavam a identificação do dono e do gato e superstições como a prática de amarrar uma fita negra em torno do pescoço de um gato cuja dona tivesse morrido. Matar um gato era trazer infelicidade para seu dono ou para a casa. Se um gato abandonasse uma casa, ou parasse de pular no leito do dono ou da dona doentes, provavelmente a pessoa morreria. Mas um gato deitado na cama de um agonizante poderia ser o demônio, esperando para levar sua alma para o inferno. Segundo um conto do século XVI, uma moça de Quintin vendeu sua alma ao demônio em troca de algumas roupas bonitas. Quando ela morreu, os carregadores do féretro não conseguiram levantar seu caixão; abriram a tampa e um gato preto pulou para fora. Os gatos podiam pôr uma casa em perigo. Muitas vezes, sufocavam bebês. Entendiam os mexericos e iam contar tudo lá fora. Mas seu poder podia ser contido ou transformado em vantagem, se a pessoa seguisse os procedimentos corretos, como passar manteiga nas patas do animal ou aleijá-lo, logo que aparecesse. Para proteger uma nova casa, os franceses encerravam gatos vivos dentro de suas paredes — um ritual muito antigo, a julgar pelos esqueletos de gatos exumados das paredes de prédios medievais. 

Finalmente, o poder dos gatos concentrava-se no aspecto mais íntimo da vida doméstica: o sexo. Le chat, la chatte, le minet significam a mesma coisa, na gíria francesa, que “pussy” em inglês [1], e vêm sendo usados como obscenidades há séculos. O folclore francês atribui importância especial aos gatos como metáfora ou metonímìa sexual. Já no século XV ter gatos como bichos de estimação era recomendado para se ter sucesso na corte às mulheres. A sabedoria proverbial identificava as mulheres com os gatos: “Quem cuida bem dos gatos terá uma mulher bonita”. Se um homem amava os gatos, amaria as mulheres; e vice-versa: “Como ele ama seu gato, ama sua mulher”, dizia outro provérbio. Se não dava importância à mulher, seria possível dizer, a seu respeito: "Tem outros gatos para chicotear”. Uma mulher que queria conseguir um homem deveria evitar pisar na cauda de um gato. Isto poderia adiar o casamento por um ano — ou por sete anos, em Quimper, e por um número de anos correspondentes aos miados que o gato desse, em partes do Vale do Loire. Em toda parte, os gatos sugeriam fertilidade e sexualidade feminina. Dizia-se, comumente, das moças, que estavam “amando como uma gata”; e, quando engravidavam, tinham “deixado o gato comer o queijo”. Comer gatos, em si, poderia causar a gravidez. Moças que os comiam, davam à luz gatinhos, em muitos contos populares. No norte da Bretanha, os gatos podiam até fazer macieiras atacadas por pragas darem frutos, quando enterrados de maneira correta. 

Era um pulo fácil, da sexualidade das mulheres para a traição dos homens. A gritaria dos gatos podia vir de uma orgia satânica, mas também poderiam ser gatos machos uivando, em desafio uns aos outros, quando suas companheiras estavam no cio. Mas não uivavam como gatos. Faziam desafios com os nomes de seus donos, juntamente com zombarias sexuais referentes às suas mulheres: "Reno! François! Como vai?” — “Ver sua mulher.” — “Ver minha mulher! Ha!” Então os gatos machos voavam uns sobre os outros, como os gatos de Kilkenny, e seu sabá terminava num massacre. O diálogo diferia de acordo com a imaginação dos ouvintes e o poder onomatopaico de seu dialeto mas, em geral, enfatizava a sexualidade predatória. "À noite, todos os gatos são pardos”, dizia o provérbio e a interpretação de uma coletânea de provérbios do século XVIII explicitou a insinuação sexual: "Isso quer dizer que todas as mulheres são suficientemente bonitas à noite.” Suficientemente para quê? Sedução, estupro e assassinato ecoavam no ar, quando os gatos uivavam à noite, na França do início dos Tempos Modernos. Os gritos dos gaios convocavam Katzenmusik, porque as pândegas, muitas vezes, tomavam a forma de miados debaixo da janela de um marido enganado, na véspera da Terça-feira de Carnaval, ocasião favorita para sabás dos gatos. 


Nota:

[1]”Pussy" — expressão correspondente a "órgão genital feminino" (N.T.) 


(O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa;tradução de Sonia Coutinho)


(Ilustração: Arthur Rackham, Le Sabbat des sorcières) 


quarta-feira, 23 de setembro de 2020

SONETO VIII / SONET VIII, de Louise Labé

 


Em francês do século XVI:



Ie vis, ie meurs : ie me brule & me noye.

I’ay chaut estreme en endurant froidure :

La vie m’est & trop molle & trop dure.

I’ay grans ennuis entremellez de joye :



Tout à coup ie ris & ie larmoye,

Et en plaisir maint grief tourment i’endure :

Mon bien s’en va, & à iamais il dure :

Tout en un coup ie seiche & ie verdoye.



Ainsi Amour inconstamment me meine :

Et quand ie pense auoir plus de douleur,

Sans y penser ie me treuue hors de peine.



Puis quand ie croy ma joye estre certeine,

Et estre au haut de mon desiré heur,

Il me remet en mon premier malheur.



Em francês moderno:



Je vis, je meurs: je me brûle et me noie,

J’ai chaud extrême en endurant froidure;

La vie m’est et trop molle et trop dure,

J’ai grands ennuis entremélés de joie.



Tout en un coup je ris et je larmoie,

Et en plaisir maint grief tourment j’endure,

Mon bien s’en va, et à jamais il dure,

Tout en un coup je sèche et je verdoie.



Ainsi Amour inconstamment me mène

Et, quand je pense avoir plus de douleur,

Sans y penser je me trouve hors de peine.



Puis, quand je crois ma joie être certaine,

Et être en haut de mon désiré heur,

Il me remet en mon premier malheur.



Tradução de David Mourão-Ferreira:




Eu vivo, eu morro: e ardo e arrefeço;

com extremo calor tremo de frio;

do mundo ora me espanto ora me rio;

no meio da alegria me aborreço.



E tal como jubilo me entristeço;

no prazer o tormento ludibrio;

meu bem não dura mais que um arrepio;

e seco de repente, e reverdeço.



Assim me arrasta o inconstante Amor:

e quando penso que é maior a dor,

sem saber como sinto-me liberta.



Mas do alto a que subo deslumbrada

novamente me vejo despenhada,

quando julgo a fortuna mais que certa.



(Ilustração:  Rosalba Carriera – outono)



domingo, 20 de setembro de 2020

UM EXPERIMENTADO APRESENTA UM ESTREANTE, de Almada Negreiros

 





Naquela noite entraram no clube dois sujeitos. Um entrava ali pela primeira vez e o outro era mesmo muito conhecido. O que era conhecido ainda se fazia mais por causa do outro. Ia puxando dos porteiros e de quem encontrava pelo caminho provas inequívocas de consideração, familiaridade, estima e assiduidade. Ao entrarem na sala o estreante ficou encadeado com as luzes: 

— Parece dia! 

O companheiro fazia de experimentado e trocava olhares de inteligência com cada qual. A perfeita execução de um renome ali no seu verdadeiro lugar. De facto, ele chegava como quem fosse esperado, mas apenas seria estranho se ele não tivesse vindo. Parou a um criado, pondo-lhe a mão aberta diante do estômago a fazer de parede que não se pode transpor, e ordenou-lhe uma oitava acima do natural: 

— Uma mesa para quatro! 

Como eram só dois, quatro não entrava na cabeça do seu amigo. Contudo, este seguia-o como o resto de um barco segue a proa. Sentaram-se. Os músicos pareciam cada um para seu lado. O da rabeca e o saxofone andavam metidos por entre os pares que dançavam na mesma cadência com trejeitos estrangeiros. Logo de entrada aquilo tudo fazia-lhe um bocado de impressão. Nunca ouvira tanto barulho nem no Carnaval. Mas gostava. Achava graça. Dizia ele. Com efeito, antes de mais nada, ele apenas fazia por gostar, mas os seus olhos rebolavam por todos os lados e não paravam em nenhum. O experimentado companheiro tamborilava com o talher nos pratos e copos a dar com a música. O exemplo estava dado e pegou como uma epidemia nas outras mesas. O estreante aprendia aquela maneira de usar o talher, porém, incapaz de orientar-se na chinfrineira, copiava de preferência a mecânica do gesto do mestre. Quando os pares se desfizeram e cada um foi restituído à sua mesa, ele não percebeu que foi por ter acabado a música e a dança. Os sons continuavam-lhe nos ouvidos como num sino. 

Uma rapariga passava por entre as filas de mesas e à sua passagem todos se levantavam respeitosamente, ela correspondia com distinção e quando tornavam a sentar-se riam às gargalhadas. 

Era por graça. E ela fazia-o bem feito. Ao passar por diante da mesa, o experimentado masculinizou mais a voz e tornou mais convexo o peito: 

— Olá, ó princesa! 

A rapariga levava o ritmo do seu jogo, mas por deferência retribuía a saudação com um aperto de mão e prosseguiria se a sua mão não ficasse na do experimentado. Tentou libertar-se em vão pela força e depois por uma desculpa: 

— Deixa-me! Estou ali com um gajo, eu já cá venho ter! 

O experimentado também lá tinha a sua fisgada e apertava-lhe a mão de modo definitivo, com os olhos em hipnotizador. A rapariga dependente da sua própria mão deixou-se sentar de lado na mesa, sem força para fazer força: 

— Ora que chatice esta! 

Ouviu-se mal este desabafo, porque o experimentado previra-o, e com a sua voz masculinizada a mais e acompanhada de gestos que transpiravam solenidade por todos os poros, indicava, com a palma da mão esquerda virada para cima, o seu companheiro de mesa: 

— Judite! Quero apresentar-te aqui o meu amigo Antunes, o grande Antunes, o amigo mais fixe que encontrei em toda a minha vida! 

E fazia por dar às palavras o som sincero que não podiam ter. Ela aproveitou para tirar a sua mão da do experimentado e passá-la para a do apresentado. Este pôs-se de pé como um homem. Ela não estava prevenida, mas aquilo ficou para pensar depois. 

— Homens como este... — declarava o experimentado —, homens como este... — e repenicava com o indicador no mesmo sítio da toalha—, homens como este... — e veio-lhe por fim uma ideia para continuar: — homens como este queria eu vê-los ao meu lado todos os dias e não esta choldra que agora aparece por aí! Homens como este... — e confiava em que acabaria por encontrar uma continuação como da primeira vez —, homens como este... — e evitava olhar para o Antunes com medo de que não saísse diferente: — homens como este... é que é! O resto é caca!... 

E ficou com todo o ar de se dar por satisfeito. 

Ela ainda focou a atenção dos olhos para a cara do Antunes e teve ocasião de arriscar em segredo para si que aquela fachada não lhe diria nada sem as palavras que lhe punham por cima. Como não queria ser mais papista do que o papa, arrumou este assunto com os seus botões desta maneira: “Cá me ficas.” Mas a sua boca disse em voz alta: 

— Então, com a sua licença, até já. 

Pôs simpatia nos cantos da boca e foi-se. 

O experimentado debruçou-se sobre a mesa, todo torcido para obrigar a atenção do Antunes a focar a ausente: 

— É uma camaradona! Telhuda como um raio que a parta, mas cura unhaca. Tivemos uma crença um pelo outro. Cá uma fezada. Hoje estamos quites. 

E apontando pelas mesas: 

— Tudo isto é gado meu conhecido. Mas como ela, fica-te com esta, não encontrei segunda. Nem como mulher... sobretudo como mulher. Tu me dirás depois. 

Mas o Antunes ainda ia no aperto de mão à rapariga. Não tinha reparado em nada que fosse dela, mas havia-lhe ficado um começar não sabe de quê. Ele ainda não sabia acompanhar aquelas velocidades e disse-o: 

— Há muito tempo que eu não vinha a Lisboa! 

— Há quantos anos? 

— Não há dúvida que Lisboa está uma grande capital! 

— Isto ainda não é nada comparado com o que há lá fora. Em mulheres, então, não se fala. 

— Já mo tinham dito muita vez, mas eu nunca esperei que isto fosse assim! 

O experimentado ficara a ouvir-se do que ele próprio tinha dito e achava que trazia perigo de arrefecimento imediato. Visto isso, puxava por esta compensação: 

— Mas, meu caro, temos que nos governar com a prata da casa. É o que se pode arranjar. 

O Antunes, das duas uma: ou não compreendia bem ou não ouvia nada do que lhe dizia o seu companheiro. O próprio Antunes não sabia qual das duas era. 

— É verdade! Tu ainda namoras aquela rapariga?... 

E não sabia mais. O Antunes viu quem ele queria dizer. 

— O teu tio falou-me assim por alto... — insistia o experimentado. 

— Não, não namoro. Quero dizer: namoro e não namoro. Namoro, para os outros. Para os outros, somos namorados. Ela não está falada com outro. Eu também não. 

— Isso dura há muito tempo? 

— Desde crianças — disse o Antunes, sabendo de cor o que lhe perguntam. 

Em todo o caso aquela pergunta tirou-o daquele sítio. Ficou parado e com os olhos por cima da direção dos telhados. Como Santo António, quando pregava em Itália e veio num instante a Lisboa para salvar o pai, assim também o Antunes foi com certeza naquele momento à província passar por baixo da janela da namorada. 



(Nome de guerra



(Ilustração: Juarez Machado) 

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

À ELVIRE / A ELVIRA, de Lamartine

 




Oui, l’Anio murmure encore

Le doux nom de Cinthie aux rochers de Tibur;

Vaucluse a retenu le nom chéri de Laure;

Et Ferrare au siècle futur

Murmurera toujours celui d’Eléonore.

Heureuse la beauté que le poète adore!

Heureux le nom qu’il a chanté!

Toi qu’en secret son culte honore,

Tu peux, tu peux mourir : dans la postérité

Il lègue à ce qu’il aime une éternelle vie;

Et l’amante et l’amant sur l’aile du génie

Montent, d’un vol égal, à l’immortalité.

Ah ! si mon frêle esquif, battu par la tempête,

Grâce à des vents plus doux, pouvait surgir au port;

Si des soleils plus beaux se levaient sur ma tête;

Si les pleurs d’une amante, attendrissant le sort,

Écartaient de mon front les ombres de la mort!

Peut-être… oui, pardonne, ô maître de la lyre!

Peut-être j’oserais (et que n’ose un amant!)

Égaler mon audace à l’amour qui m’inspire,

Et, dans des chants rivaux célébrant mon délire,

De notre amour aussi laisser un monument!

Ainsi le voyageur qui, dans son court passage,

Se repose un moment à l’abri du vallon,

Sur l’arbre hospitalier dont il goûta l’ombrage,

Avant que de partir, aime à graver son nom.

Vois-tu comme tout change ou meurt dans la nature?

La terre perd ses fruits, les forêts leur parure;

Le fleuve perd son onde au vaste sein des mers;

Par un souffle des vents la prairie est fanée;

Et le char de l’automne, au penchant de l’année,

Roule, déjà poussé par la main des hivers!

Comme un géant armé d’un glaive inévitable,

Atteignant au hasard tous les êtres divers,

Le Temps avec la mort, d’un vol infatigable,

Renouvelle en fuyant ce mobile univers!

Dans l’éternel oubli tombe ce qu’il moissonne:

Tel un rapide été voit tomber sa couronne

Dans la corbeille des glaneurs.

Tel un pampre jauni voit la féconde automne

Livrer ses fruits dorés au char des vendangeurs.

Vous tomberez ainsi, courtes fleurs de la vie!

Jeunesse, amour, plaisir, fugitive beauté!

Beauté, présent d’un jour que le ciel nous envie,

Ainsi vous tomberez, si la main du génie

Ne vous rend l’immortalité!

Vois d’un œil de pitié la vulgaire jeunesse,

Brillante de beauté, s’enivrant de plaisir:

Quand elle aura tari sa coupe enchanteresse,

Que restera-t-il d’elle ? à peine un souvenir;

Le tombeau qui l’attend l’engloutit tout entière,

Un silence éternel succède à ses amours;

Mais les siècles auront passé sur ta poussière,

Elvire, et tu vivras toujours!



Tradução de Machado de Assis:



Quando, contigo a sós, as mãos unidas,

Tu, pensativa e muda, e eu, namorado,

Às volúpias do amor a alma entregando,

Deixo correr as horas fugidias;

Ou quando às solidões de umbrosa selva

Comigo te arrebato; ou quando escuto

— Tão só eu, — teus terníssimos suspiros;

E de meus lábios solto

Eternas juras de constância eterna;

Ou quando, enfim, tua adorada fronte

Nos meus joelhos trêmulos descansa,

E eu suspendo meus olhos em teus olhos,

Como às folhas da rosa ávida abelha;

Ai, quanta vez então dentro em meu peito

Vago terror penetra, como um raio!

Empalideço, tremo;

E no seio da glória em que me exalto,

Lágrimas verto que a minha alma assombram!

Tu, carinhosa e trêmula,

Nos teus braços me cinges, — e assustada,

Interrogando em vão, comigo choras!

“Que dor secreta o coração te oprime?”

Dizes tu. “Vem, confia os teus pesares…

Fala! eu abrandarei as penas tuas!

Fala! eu consolarei tua alma aflita!”

Vida do meu viver, não me interrogues!

Quando enlaçado nos teus níveos braços

A confissão de amor te ouço, e levanto

Lânguidos olhos para ver teu rosto,

Mais ditoso mortal o céu não cobre!

Se eu tremo, é porque nessas esquecidas

Afortunadas horas,

Não sei que voz do enleio me desperta,

E me persegue e lembra

Que a ventura co’o tempo se esvaece,

E o nosso amor é facho que se extingue!

De um lance, espavorida,

Minha alma voa às sombras do futuro,

E eu penso então: “Ventura que se acaba

Um sonho vale apenas”.



(Falenas)



(Ilustração:Frank Dicksee - Romeo and Juliet)





segunda-feira, 14 de setembro de 2020

A HISTÓRIA DE UMA HORA, de Kate Chopin

 




Como a Sra. Mallard sofria do coração, foi com extremo cuidado e delicadeza que lhe disseram que o marido havia morrido. 

Josephine, sua irmã, deu-lhe a notícia em sentenças entrecortadas; uma pista aqui, outra acolá, a verdade insinuando-se entre um véu e outro. Richards, um amigo do marido, acompanhava toda a cena de perto, ao lado da viúva. Fora ele quem, trabalhando na redação do jornal, recebera as primeiras informações sobre o acidente ferroviário, juntamente com uma lista de vítimas encabeçada pelo nome Brently Mallard. Não podia perder tempo: após certificar-se da veracidade dos fatos através de um segundo telegrama, ele correra para a casa dos Mallard com o intuito de impedir que algum outro amigo menos carinhoso, ou menos atencioso, se adiantasse na tarefa de transmitir a triste notícia. 

Ela não ouviu a história como muitas mulheres já o fizeram: com uma paralisante incapacidade de aceitar o seu significado. Caiu em prantos imediatamente, jogando-se nos braços da irmã em súbito e profundo abandono. Quando o turbilhão de emoções se esgotou, subiu para o seu quarto. Queria ficar sozinha; pediu que ninguém a seguisse. 

A poltrona ampla e confortável estava de frente para a janela escancarada. Ela afundou ali, esmagada por uma exaustão física tão intensa que parecia atravessar os limites do corpo e atingir em cheio a sua alma. 

Pelo quadrado aberto diante de si, ela podia ver os topos das árvores em alvoroço com a chegada da primavera e da vida nova. Um delicioso aroma de chuva impregnava o ar. Na rua logo abaixo, um mascate anunciava suas mercadorias. Notas de uma música que alguém cantava chegavam, distantes, aos seus ouvidos. Inúmeros pardais gorjeavam nos beirais dos telhados. 

Nesgas de céu azul rasgavam as nuvens que haviam se encontrado e se empilhado, uma em cima da outra, a oeste de sua janela. 

Sentada, a cabeça esparramada no encosto da poltrona, ela permanecia praticamente imóvel. Apenas os soluços, que de vez em quando subiam pela garganta e faziam-na estremecer como uma criança que chora até dormir e continua soluçando em seus sonhos. 

Ela era jovem. As linhas do rosto calmo e agradável denunciavam um quê de repressão e até um certo vigor. Agora, entretanto, os olhos arregalados pareciam embotados. O olhar, capturado por uma daquelas manchas azuis no céu, não mostrava nenhum sinal de raciocínio ponderativo. Pelo contrário, sugeria a suspensão total de pensamento inteligente. 

Havia algo vindo ao seu encontro e ela aguardava por isso, amedrontada. O que seria? Não sabia; era algo muito sutil e impalpável para ser nomeado. Mas podia senti-lo, descendo furtivamente do céu, alcançando-a por meio dos sons, dos cheiros e das cores que tingiam o ar. 

Agora o seu peito arfava descompassadamente. Estava começando a reconhecer aquela coisa que se aproximava para possuí-la, e lutava para afastá-la de si com a força da sua vontade. Esta, porém, revelava-se tão ou mais fraca do que as suas duas mãos brancas e delgadas. 

Quando desistiu de lutar, uma pequenina palavra, um sussurro, escapou pelos seus lábios entreabertos. E ela repetiu, secretamente: “Livre, livre, livre!” O olhar perdido e a expressão de terror fugiram dos seus olhos. Eles ficaram alerta e brilhantes. Sua pulsação aumentou e o sangue passou a circular mais quente, relaxando cada pedacinho do seu corpo. 

Não parou para se perguntar se a felicidade que tomava conta do seu ser era monstruosa ou não. Uma percepção clara e exaltada convenceu-a de que aquela era uma questão irrelevante. 

Sabia que choraria novamente quando visse as mãos gentis e ternas incorporadas à morte; quando visse o rosto - outrora amoroso - rígido, cinza e morto. Mas podia entrever, por detrás de um breve instante de amargura, uma longa sucessão de anos que seriam todos seus, absolutamente seus. E então, abriu e estendeu os braços, acolhendo calorosamente os anos vindouros. 

Durante os próximos anos não teria que dedicar a sua vida a ninguém; viveria para si mesma. Não teria que se curvar diante de um poder maior do que o seu, naquele jogo cego e persistente no qual homens e mulheres acreditam ter o direito de impor suas vontades a uma outra pessoa. Embalada por aquele momento de iluminação, ela podia enxergar, claramente, que as melhores ou as piores intenções não tornavam tal ato mais ou menos criminoso. 

Mas ela o amara – algumas vezes. Poucas vezes. Mas que diferença isso fazia agora? O que importava o amor, esse mistério insondável, diante da conquista de tamanha autoconfiança? De repente, entendeu que aquele sentimento inédito era a coisa mais forte, mais importante de sua vida! 

- Livre! Corpo e mente livres! – repetia para si mesma. 

Josephine estava ajoelhada atrás da porta trancada, os lábios colados no buraco da fechadura, suplicando para ser admitida no quarto. 

- Louise, abra a porta! Eu lhe imploro, abra a porta. Você pode passar mal. O que você está fazendo, Louise? Pelo amor de Deus, abra esta porta! 

- Vá embora. Eu não estou passando mal! 

Não; ela estava bebendo do elixir da vida através da janela aberta. 

Sua imaginação galopava enlouquecida diante da perspectiva de todos os dias que ainda teria pela frente. Dias de primavera, dias de verão, dias quaisquer – todinhos seus. Ela murmurou uma rápida oração pedindo que a vida fosse longa. E pensar que ontem mesmo havia percebido, com terror, que a vida poderia ser longa. 

Finalmente, ela se levantou e abriu a porta para as importunações da irmã. Havia um triunfo febril em seus olhos. Sem se dar conta, portou-se como se fosse uma deusa da Vitória. Passou o braço em torno da cintura da irmã e, juntas, desceram as escadas. Richards aguardava as duas na base da escadaria. 

Um barulho de chave girando na fechadura. Alguém abria a porta da frente. Era Bentley Mallard. Suas roupas estavam ligeiramente empoeiradas por causa da viagem. Carregava com elegância a pasta e o guarda-chuva. Ele passara longe da cena do acidente, e sequer ouvira falar de desastres naquele dia. Ficou perplexo com o grito agudo de Josephine; estranhou os rápidos movimentos de Richards para evitar que sua esposa o enxergasse. Mas Richards não fora rápido o suficiente. 

Quando os médicos chegaram, informaram-lhes que ela havia morrido de ataque do coração – de felicidade fulminante. 



(The Story of An Hour, 1894; tradução da Claudia Marcanth B. Silva) 


(Ilustração: Mia Mäkilä)



sexta-feira, 11 de setembro de 2020

RITRAGGETE POI ME DA L’ALTRA PARTE /FAZEI DEPOIS TAMBÉM O MEU RETRATO, de Gaspara Stampa

 




Ritraggete poi me da l’altra parte,

come vedrete ch’io sono in effetto:

viva senz’alma e senza cor nel petto

per miracol d’Amor raro e nov’arte;



quasi nave che vada senza sarte,

senza timon, senza vele e trinchetto,

mirando sempre al lume benedetto

de la sua tramontana, ovunque parte.



Ed avvertite che sia ‘l mio sembiante

da la parte sinistra afflitto e mesto;

e da la destra allegro e trionfante:



il mio stato felice vuol dir questo,

or che mi trovo il mio signor davante;

quello, il timor che sarà d’altra presto.



Tradução de Sérgio Duarte:



Fazei depois também o meu retrato,

Como vereis que sou na realidade:

Sem alma e coração, pela vontade

Do milagroso Amor, que não combato.



Sou nave sem comando ou imediato

Sem vela ou mastro, em meio à tempestade,

Buscando essa bendita claridade

Que em toda parte aponta o rumo exato.



E prestai atenção que meu semblante

Seja do lado esquerdo aflito e incerto

E do direito, alegre e triunfante;



A dupla face exprimirá, decerto,

Tanto o prazer de estar com meu amante

Quanto o temor de que outra ande por perto.



(Ilustração: Bonifazio de'Pitati / Bonifazio Veronese)



(Nota: o título do quadro, “Il convitto del ricco epulone”, significa "O Banquete do Gourmand Rico" e retrata a história bíblica do homem rico e Lázaro. Acredita-se que é Gaspara Stampa tocando alaúde e sua irmã Cassandra atrás dela). 

terça-feira, 8 de setembro de 2020

NO INÍCIO A VAGINA ERA SAGRADA, de Naomi Wolf

 




No topo do mundo, dou à luz o pai; meu útero está no meio das águas, no oceano. De lá eu expando através de todos os mundos e alcanço o céu distante com minha grandeza (…) o útero de Devi (Yoni), às vezes traduzido como “origem” ou “lar”, é seu poder criativo (…) daí emana o universo inteiro. 

Devadatta Kali, em Praise of The Goddess: The Devimahatmaya and Its Meaning 



Seriam necessários muitos volumes para explicar de forma abrangente a história da vagina somente no Ocidente; portanto, isto é necessariamente um resumo conciso, concentrando-se nas mudanças dramáticas de seu significado cultural e representação. 

No início a vagina era sagrada. Há símbolos da vagina entalhados em paredes de cavernas nos primeiros povoamentos da história. Os artefatos dos primórdios dos tempos pré-históricos da humanidade representavam vaginas. Estatuetas de terracota da Europa Central, que provavelmente representavam a fertilidade, frequentemente exibiam os órgãos genitais de forma exagerada. Não temos como saber com certeza o que essas vaginas sagradas representavam, mas historiadoras feministas, como Riane Eisler em O cálice e a espada e outras, têm certeza de que elas representavam um estado [1] primordial de matriarcado. Mas a proeminência dada às representações da vagina quando os seres humanos fizeram os primeiros trabalhos de arte sugere que a sexualidade feminina e a fertilidade eram vistas como sagradas. De 25000 a 15000 a.C., as estatuetas de Vênus — imagens de fertilidade com vulvas pronunciadas — feitas de pedra ou marfim eram abundantes na Europa, e imagens similares feitas à mão com lama do Nilo eram comuns no Egito. Sir Arthur Evans, que descobriu a civilização minoica na virada do século XX, observou que a grande quantidade dessas estatuetas da fertilidade em tantas diferentes partes do mundo sugeria que a mesma “Grande Mãe (…) cuja adoração sob diversas designações e títulos se estendia em uma grande [2] parte da Ásia Menor e nas regiões mais distantes”, era um “fato mundial”. 

Tal como consideram várias historiadoras, como Rosalind Miles em A história do mundo pela mulher , “ desde o início, quando a humanidade [3] emergia da escuridão da pré-história, Deus era uma mulher”. 

E desde o início dos registros históricos, cada cultura antiga estudada tinha uma versão da deusa do sexo, desde o épico criacionista sumério de Gilgamés , com Inanna, até as muitas versões de Ashtaroth adoradas na antiga Mesopotâmia; da deusa fenícia Astarte do século VI que surgiu do culto a Ashtaroth, seguindo para as culturas da Antiguidade Clássica, Grécia e Roma. 

Há 5 mil anos, onde é agora o Iraque, a vulva de Inanna era adorada como um local sagrado; os hinos sumérios louvavam o “colo de mel” da deusa, comparavam sua vulva a um “barco do paraíso” e celebravam a abundância que “brota de seu ventre”. A conexão de sua sexualidade com a fertilidade da terra era tão direta, que até mesmo os pés de alface eram descritos como [4] sendo os pelos pubianos da deusa. A vagina de Inanna era mágica, um local de pura santidade: “Inanna (…) inclinou-se contra a macieira/ Quando ela se inclinou contra a macieira sua vulva era maravilhosa de ver/ Regozijando-se com sua maravilhosa vulva, a jovem mulher Inanna aplaudia a si mesma/ Ela [5] disse, Eu, a Rainha do Paraíso, visitarei o Deus da Sabedoria (…)”. 

O núcleo da religião suméria era um “casamento sagrado” entre o deus pastor Tamuz e Inanna: moedas dessa época mostram Inanna com as pernas [6] bem afastadas em sagradas relações sexuais com Tamuz. As mulheres adoradoras dedicavam a Inanna vasos que simbolizavam o útero. Um texto sagrado desse período observa: 

Uma vez que a sagrada Inanna houvesse se lavado/ era aspergida com óleo de cedro./ O rei, então, orgulhosamente se aproximava de seu colo sagrado./ Ele orgulhosamente se juntava com o glorioso triângulo de Inanna./ E Tamuz, o noivo, se deitava com ela/ Apertando suavemente seus lindos seios! 

A “vagina maravilhosa” de Inanna está relacionada com a busca pela sabedoria. No final, as principais antigas religiões da deusa incluíam um consorte masculino com quem a deusa copularia em sagrado matrimônio. 

Kadesh, uma variante no arquétipo de Astarte, a deusa fenícia da natureza, da beleza e do prazer sexual, foi representada como uma mulher nua em pé nas costas de um leão, com um adorno de cabeça de lua crescente. Era frequentemente mostrada segurando cobras ou plantas de papiro na mão direita, representando o pênis; e na mão esquerda, flores de lótus, que representavam a vagina. A simbologia de serpente frequentemente acompanhava representações de deusas do sexo. Estatuetas da deusa-mãe minoica também mostravam-na com os seios nus, segurando uma cobra em cada mão. A história de Eva, tentada pela serpente no pecado original de sua sexualidade feminina vergonhosa, é uma posterior transposição negativa hebraica do sagrado simbolismo da deusa com sua serpente. 

Através de todo o Crescente Fértil, a adoração da deusa do sexo Astarte/Ashtaroth era universal no período anterior à ascensão do Deus patriarcal hebraico. A adoração da deusa nesse período identificava Astarte com a geração sexual, mas também com a sabedoria do próprio cosmo. Mas, como o judaísmo se afastou de seus antecedentes da Suméria, todos os aspectos da adoração da deusa se transformaram gradativamente em negativos, enquanto a jovem religião procurava concentrar seus seguidores [7] em uma versão masculina do Deus Único. Quando os hebreus desenvolveram o monoteísmo, fizeram-no no contexto das religiões da deusa, que haviam desenvolvido um sistema de sacerdotisas sagradas. Em certos pontos do calendário, essas sacerdotisas copulariam com adoradores masculinos, uma prática considerada um meio de trazer a ordem e a bondade do divino feminino à comunidade. Os adoradores tratavam as prostitutas sagradas com reverência e, de forma alguma, como trabalhadoras degradadas do sexo. Há muitas estelas que retratam essas sacerdotisas tendo relações sexuais, consideradas sagradas, com seus adoradores masculinos. 

A aversão hebraica a essa forma de adoração — que repetidamente tentava as tribos de Israel —, sua luta política para competir com tal religião e a consequente hostilidade à tradição da sagrada prostituta são todas evidências do horror com que os cinco livros de Moisés falam da irrestrita sexualidade feminina e particularmente sobre “prostituição”. Os hebreus reformularam o que havia sido considerado uma união divina, vista então como abominação. 

A adoração da vagina sagrada e da sexualidade feminina como metáforas para uma divindade maior expandiu-se para a Europa antes da chegada do cristianismo. Na Irlanda pré-cristã, e mesmo na era cristã, construtores entalhavam muitas Sheela na Gigs [entalhes de mulheres nuas] nas paredes externas das edificações. Nessas esculturas, mulheres nuas — representando as bruxas sagradas da mitologia celta e, como vimos, simbolizando a liminaridade — são representadas com as pernas abertas e as mãos segurando [8] os lábios vaginais abertos. Alguns historiadores de arquitetura acreditam que mesmo as grandes pedras pontiagudas que formam as entradas das catedrais europeias medievais incorporam o imaginário vaginal dessa tradição pré-cristã. (Na verdade, fiquei espantada uma vez, enquanto vagava pela pacífica e tradicionalmente sagrada ilha de Iona, nas Hébridas escocesas, quando olhei para a parte de cima da parede exterior de um antigo convento e vi lábios vaginais grandes e elegantes esculpidos na parede de pedra do convento, sem nada em torno deles.) Mas as deusas do sexo não eram só feitas de doçura e luz: em cada cultura que adorava a deusa, embora esta tivesse um aspecto majestoso e sedutor, também trazia um lado negro e potencialmente destruidor. Muitas culturas têm uma versão do que os antropólogos chamam de “vagina dentata ”. Isso significa, literalmente, “vagina dentada”. Em Teogonia , por exemplo, o poeta grego Hesíodo descreve o deus Cronos, ainda por nascer, estendendo a mão do ventre de sua mãe para castrar seu pai, Urano. Na mitologia hindu, o demônio Adi, na forma da deusa Parvati, tem dentes na vagina. O autor Erich Neumann, em seu relato da adoração da deusa, A grande mãe, identifica o tema da vagina dentada na mitologia indígena norte-americana, na qual “um peixe carnívoro [9] habita a vagina da Terrível Mãe”. Os mitos inuítes também descrevem mulheres com cabeça de cachorro onde deveria estar a vagina. A associação arquetípica e universal (normalmente estabelecida pelos homens) da vagina com a boca torna a vagina dentada um símbolo universal e atemporal da ansiedade masculina quanto à deglutição e aniquilação por uma mãe ameaçadora — tão universal, que Sigmund Freud explorou esse símbolo em [10] Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Essas imagens de vagina dentada não refletem uma aversão pessoal ao órgão humano, creio eu; pelo contrário, são imagens arquetípicas de um equilíbrio necessário para a reverência pelos poderes da mulher de dar a vida. Elas abordam o lado negro inevitável da deusa reconhecendo que a destruição é a outra face da geração, que a encarnação — o ventre, o canal do nascimento — é um portal para o ser, mas que também, inevitavelmente, leva à morte. 

Notas: 

1. Riane Eisler, The Chalice and the Blade: Our History, Our Future (Nova Iorque: HarperOne, 1988), 51. [Edição brasileira: O cálice e a espada; São Paulo, Palas Athena, 2008.] 

2. Veja J. A. MacGillivray, Minotaur: Sir Arthur Evans and the Archaeology of the Minoan Myth (Nova Iorque: Hill and Wang, 2000). 

3. Rosalind Miles, The Women’s History of the World (Londres: Paladin Books, 1989), 34-37. [Edição brasileira: A história do mundo pela mulher; Rio de Janeiro, LTC, 1989.]↵ 

4. Asia Shepsut, Journey of the Priestess: The Priestess Traditions of the Ancient World (Nova 

Iorque: HarperCollins, 1993), 62-79. 

5. Ib., 16. 6. Ib., 72. 

7. Ib., 69. 

8. Catherine Blackledge, The Story of V: A Natural History of Female Sexuality (New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2004), 30. 

9. Erich Neumann, The Great Mother: Analysis of an Archetype (Princeton, NJ: Princeton University Press), 168. [Edição brasileira: A grande mãe; São Paulo, Cultrix, 1996.] 

10. Sigmund Freud, “Three Essays on The Theory of Sexuality”, The Freud Reader, ed. Peter Gay (Nova Iorque: W. W. Norton, 1989), 239. [Edição brasileira: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade; Rio de Janeiro, Imago, 1997.] 



(Vagina, uma biografia; tradução de Renata S. Laureano) 



(Ilustração: Anacreonte Fongiq - vulva flower)



sábado, 5 de setembro de 2020

O DRONE, de Felipe Fortuna

 




O drone chegou. Seu voo de silêncio (a

menos que atravesse

o céu escarlate) inverte o mundo:

não é a bomba cega

que pulveriza o prédio e a fuga

- é a máquina que acerta em cheio

e vai e volta a toda

com sua missão de rapina.

Avião crucificado. E voa sem sacrifício

sem kamikaze

sem aguardar combustível

e sem mãos grudadas

aos batimentos cardíacos.

Seus olhos deslocam a vida.

Seus telescópios mergulham fundo

no corpo

que carbonizou: não houve nem silvo

nem ar.

O drone lança asfixia,

está por trás, está

por cima, está no filme assombrado

que o revela, na sala refrigerada.

E quem o comanda

(sem turbulência

sem vento de cauda

e sem ascensão)

pode desligar os motores (findo

o expediente)

mas pode também

(igual ao drone)

sorrir em silêncio.



(Em seu lugar, 2005)



(Ilustração: Kathryn Brimblecombe - Fox Remote Control)


quarta-feira, 2 de setembro de 2020

VOCÊ VAI TER QUE DECIDIR PARA ONDE QUER IR, de J. D. Salinger

 




Tomei meia xícara de café e comi metade de um pedaço de bolo, mais duro do que pedra. O Professor Antolini se contentou com outro drinque, e forte à beça. Se ele não tomar cuidado ainda acaba viciado. 

- Almocei com o seu pai há umas duas semanas - ele falou de repente. - Você sabia? 

- Não, não sabia. 

- Você não ignora, naturalmente, que ele anda muito preocupado com você. 

- Sei disso. Sei que anda. 

- Tudo indica que, antes de me telefonar, ele tinha recebido uma carta enorme e bastante perturbadora do seu último diretor, informando que você não estava fazendo o mínimo esforço. Matando aulas. Não preparando as lições. Em suma, sendo um completo... 

- Não matei aula nenhuma. Não havia jeito. De vez em quando eu deixava de assistir às aulas de umas duas matérias, como a tal de Expressão Oral que eu falei antes. Matar mesmo, não matei... 

Não estava com a menor vontade de discutir o troço. Minha dor de barriga tinha diminuído um pouco com o café, mas aquela dor de cabeça miserável, continuava. 

O Professor Antolini acendeu outro cigarro. Ele fumava como uma chaminé. Aí falou: 

- Francamente, Holden, não sei o que lhe dizer. 

- Eu sei. É difícil falar comigo. Compreendo. 

- Tenho a impressão de que você está caminhando para alguma espécie de queda... uma queda tremenda. Mas, honestamente, não sei de que espécie... Está me ouvindo? 

- Estou. 

A gente via logo que ele estava procurando se concentrar e tudo. 

- Talvez da espécie que faz com que a gente, aos trinta anos, se sente num bar e odeie todo mundo que entra com jeito de quem jogou futebol numa universidade. Ou, então, você conseguirá instruir-se o bastante para odiar todo mundo que diz: "É um segredo entre mim e você". Ou talvez acabe em algum escritório, atirando clipes na taquígrafa mais próxima. Não sei mesmo. Mas você entende o que estou querendo dizer, não entende? 

- Entendo - respondi. E entendia mesmo. - Mas o senhor se engana sobre esse negócio de odiar os jogadores de futebol e tudo. O senhor se engana mesmo. Não tenho raiva de muita gente. Pode ser que, de vez em quando, eu odeie alguns sujeitos durante algum tempo, como esse cara que eu conheci no Pencey, o Stradlater, ou esse outro sujeito, o Robert Ackley. De vez em quando eu tinha ódio deles, confesso, mas isso não dura muito, esse é que é o caso. Depois de algum tempo, se eu não os visse, se não vinham ao meu quarto, ou se eu passava umas duas refeições sem encontrar com eles no refeitório - chegava a sentir falta deles. É isso mesmo, chegava a ficar com saudade deles. 

O Professor Antolini ficou uns dois minutos em silêncio. Levantou-se, apanhou outro pedaço de gelo, deixou cair no copo e aí sentou de novo. Via-se que ele estava pensando. Fiquei torcendo para que ele deixasse a conversa para outro dia, em vez de continuar naquela hora, mas ele estava embalado. Em geral, as pessoas se esquentam numa discussão na hora que a gente está mais frio. 

- Está bem. Agora, escuta aqui um momento... Pode ser que eu não consiga expressar isso tão bem quanto eu gostaria, mas escrevo uma carta para você amanhã ou depois explicando tudo. Aí você vai entender direitinho. De qualquer maneira presta atenção agora. 

Começou a se concentrar outra vez, e aí disse: 

- Esta queda para a qual você está caminhando é um tipo especial de queda, um tipo horrível. O homem que cai não consegue nem mesmo ouvir ou sentir o baque do seu corpo no fundo. Apenas cai e cai. A coisa toda se aplica aos homens que, num momento ou outro de suas vidas, procuram alguma coisa que seu próprio meio não lhes podia proporcionar. Ou que pensavam que seu próprio meio não lhes poderia proporcionar. Por isso, abandonam a busca. Abandonam a busca antes mesmo de começá-la de verdade. Tá me entendendo? 

- Sim, senhor. 

- Está mesmo? 

- Estou sim. 

Levantou-se e despejou mais um pouco de bebida no copo. Aí se sentou de novo. Ficou um bocado de tempo sem dizer nada. 

- Não quero te assustar - ele disse - mas vejo você, com toda a clareza, morrendo nobremente, de uma forma ou de outra por uma causa qualquer absolutamente indigna. 

Me olhou de um jeito engraçado. 

- Se eu escrever umas palavras para você, promete que vai ler cuidadosamente? E guardar? 

- Prometo, sim - respondi. E era verdade. Até hoje guardo o papel que ele me deu. 

Foi até a escrivaninha, no outro lado da sala, e escreveu alguma coisa num pedaço de papel, sem se sentar. Aí voltou e se sentou, com o papel na mão. 

- Por estranho que pareça, isso não foi escrito por um poeta. Foi escrito por um psicanalista chamado Wilhelm Stekel. Aqui está o que ele... Você ainda está me ouvindo? 

- Claro que estou. 

- Aqui está o que ele disse: "A característica do homem imaturo é aspirar a morrer nobremente por uma causa, enquanto que a característica do homem maduro é querer viver humildemente por uma causa". 

Inclinou-se e me passou o pedaço de papel. Li imediatamente o que estava escrito, agradeci e tudo, e guardei o papel no bolso. Foi muito simpático da parte dele incomodar-se tanto por minha causa. Foi mesmo. Mas a verdade é que eu não estava realmente com muita vontade de me concentrar. Puxa, nunca me senti tão cansado, assim de repente. 

Mas ele não dava a menor impressão de cansaço. Em parte, porque estava bastante alto. 

- Acho que um desses dias - ele falou - você vai ter que decidir para onde quer ir. E aí vai ter que começar a ir para lá. E sem perda de tempo. No seu caso, não se pode perder um minuto que seja. 

Concordei com a cabeça, porque ele estava me encarando e tudo, mas não estava entendendo muito bem o que ele disse. Eu achava que sabia o que era, mas, naquele momento, não tinha certeza absoluta. Estava cansado pra diabo. 



(O apanhador no campo de centeio; tradução de Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster) 



(Ilustração: Paul Bond - On The Path Of Knowing)