Naquela noite entraram no clube dois sujeitos. Um entrava ali pela primeira vez e o outro era mesmo muito conhecido. O que era conhecido ainda se fazia mais por causa do outro. Ia puxando dos porteiros e de quem encontrava pelo caminho provas inequívocas de consideração, familiaridade, estima e assiduidade. Ao entrarem na sala o estreante ficou encadeado com as luzes:
— Parece dia!
O companheiro fazia de experimentado e trocava olhares de inteligência com cada qual. A perfeita execução de um renome ali no seu verdadeiro lugar. De facto, ele chegava como quem fosse esperado, mas apenas seria estranho se ele não tivesse vindo. Parou a um criado, pondo-lhe a mão aberta diante do estômago a fazer de parede que não se pode transpor, e ordenou-lhe uma oitava acima do natural:
— Uma mesa para quatro!
Como eram só dois, quatro não entrava na cabeça do seu amigo. Contudo, este seguia-o como o resto de um barco segue a proa. Sentaram-se. Os músicos pareciam cada um para seu lado. O da rabeca e o saxofone andavam metidos por entre os pares que dançavam na mesma cadência com trejeitos estrangeiros. Logo de entrada aquilo tudo fazia-lhe um bocado de impressão. Nunca ouvira tanto barulho nem no Carnaval. Mas gostava. Achava graça. Dizia ele. Com efeito, antes de mais nada, ele apenas fazia por gostar, mas os seus olhos rebolavam por todos os lados e não paravam em nenhum. O experimentado companheiro tamborilava com o talher nos pratos e copos a dar com a música. O exemplo estava dado e pegou como uma epidemia nas outras mesas. O estreante aprendia aquela maneira de usar o talher, porém, incapaz de orientar-se na chinfrineira, copiava de preferência a mecânica do gesto do mestre. Quando os pares se desfizeram e cada um foi restituído à sua mesa, ele não percebeu que foi por ter acabado a música e a dança. Os sons continuavam-lhe nos ouvidos como num sino.
Uma rapariga passava por entre as filas de mesas e à sua passagem todos se levantavam respeitosamente, ela correspondia com distinção e quando tornavam a sentar-se riam às gargalhadas.
Era por graça. E ela fazia-o bem feito. Ao passar por diante da mesa, o experimentado masculinizou mais a voz e tornou mais convexo o peito:
— Olá, ó princesa!
A rapariga levava o ritmo do seu jogo, mas por deferência retribuía a saudação com um aperto de mão e prosseguiria se a sua mão não ficasse na do experimentado. Tentou libertar-se em vão pela força e depois por uma desculpa:
— Deixa-me! Estou ali com um gajo, eu já cá venho ter!
O experimentado também lá tinha a sua fisgada e apertava-lhe a mão de modo definitivo, com os olhos em hipnotizador. A rapariga dependente da sua própria mão deixou-se sentar de lado na mesa, sem força para fazer força:
— Ora que chatice esta!
Ouviu-se mal este desabafo, porque o experimentado previra-o, e com a sua voz masculinizada a mais e acompanhada de gestos que transpiravam solenidade por todos os poros, indicava, com a palma da mão esquerda virada para cima, o seu companheiro de mesa:
— Judite! Quero apresentar-te aqui o meu amigo Antunes, o grande Antunes, o amigo mais fixe que encontrei em toda a minha vida!
E fazia por dar às palavras o som sincero que não podiam ter. Ela aproveitou para tirar a sua mão da do experimentado e passá-la para a do apresentado. Este pôs-se de pé como um homem. Ela não estava prevenida, mas aquilo ficou para pensar depois.
— Homens como este... — declarava o experimentado —, homens como este... — e repenicava com o indicador no mesmo sítio da toalha—, homens como este... — e veio-lhe por fim uma ideia para continuar: — homens como este queria eu vê-los ao meu lado todos os dias e não esta choldra que agora aparece por aí! Homens como este... — e confiava em que acabaria por encontrar uma continuação como da primeira vez —, homens como este... — e evitava olhar para o Antunes com medo de que não saísse diferente: — homens como este... é que é! O resto é caca!...
E ficou com todo o ar de se dar por satisfeito.
Ela ainda focou a atenção dos olhos para a cara do Antunes e teve ocasião de arriscar em segredo para si que aquela fachada não lhe diria nada sem as palavras que lhe punham por cima. Como não queria ser mais papista do que o papa, arrumou este assunto com os seus botões desta maneira: “Cá me ficas.” Mas a sua boca disse em voz alta:
— Então, com a sua licença, até já.
Pôs simpatia nos cantos da boca e foi-se.
O experimentado debruçou-se sobre a mesa, todo torcido para obrigar a atenção do Antunes a focar a ausente:
— É uma camaradona! Telhuda como um raio que a parta, mas cura unhaca. Tivemos uma crença um pelo outro. Cá uma fezada. Hoje estamos quites.
E apontando pelas mesas:
— Tudo isto é gado meu conhecido. Mas como ela, fica-te com esta, não encontrei segunda. Nem como mulher... sobretudo como mulher. Tu me dirás depois.
Mas o Antunes ainda ia no aperto de mão à rapariga. Não tinha reparado em nada que fosse dela, mas havia-lhe ficado um começar não sabe de quê. Ele ainda não sabia acompanhar aquelas velocidades e disse-o:
— Há muito tempo que eu não vinha a Lisboa!
— Há quantos anos?
— Não há dúvida que Lisboa está uma grande capital!
— Isto ainda não é nada comparado com o que há lá fora. Em mulheres, então, não se fala.
— Já mo tinham dito muita vez, mas eu nunca esperei que isto fosse assim!
O experimentado ficara a ouvir-se do que ele próprio tinha dito e achava que trazia perigo de arrefecimento imediato. Visto isso, puxava por esta compensação:
— Mas, meu caro, temos que nos governar com a prata da casa. É o que se pode arranjar.
O Antunes, das duas uma: ou não compreendia bem ou não ouvia nada do que lhe dizia o seu companheiro. O próprio Antunes não sabia qual das duas era.
— É verdade! Tu ainda namoras aquela rapariga?...
E não sabia mais. O Antunes viu quem ele queria dizer.
— O teu tio falou-me assim por alto... — insistia o experimentado.
— Não, não namoro. Quero dizer: namoro e não namoro. Namoro, para os outros. Para os outros, somos namorados. Ela não está falada com outro. Eu também não.
— Isso dura há muito tempo?
— Desde crianças — disse o Antunes, sabendo de cor o que lhe perguntam.
Em todo o caso aquela pergunta tirou-o daquele sítio. Ficou parado e com os olhos por cima da direção dos telhados. Como Santo António, quando pregava em Itália e veio num instante a Lisboa para salvar o pai, assim também o Antunes foi com certeza naquele momento à província passar por baixo da janela da namorada.
(Nome de guerra)
(Ilustração: Juarez Machado)
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