sábado, 4 de julho de 2020

CRESO E CASSANDRA, de Carl Sagan





É preciso coragem para sentir medo. 

Montaigne, 

Ensaios, III, 6(1588) 

Apolo, um olímpico, era o deus do Sol. Ele também se encarregava de outras questões, entre as quais a profecia. Era uma de suas especialidades. Todos os deuses olímpicos podiam ver um pouco do futuro, mas Apolo era o único que sistematicamente oferecia esse dom aos humanos. Ele estabeleceu oráculos, sendo o mais famoso o de Delfos, onde santificou a sacerdotisa. Ela era chamada de pítia, em referência ao píton, que era uma de suas encarnações. Reis e aristocratas — e de vez em quando pessoas comuns — iam a Delfos e suplicavam para saber o que estava por vir. 

Entre os suplicantes estava Creso, rei da Lídia. Nós o lembramos na expressão "rico como Creso", que ainda é quase corrente. Talvez tenha se tomado sinônimo de riqueza, porque foi na sua época e reinado que as moedas foram inventadas — cunhadas por Creso no século VII a.C. (Lídia ficava na Anatólia, a atual Turquia.) Dinheiro de argila foi uma invenção sumeriana muito mais antiga. A ambição de Creso não podia ser contida dentro dos limites de sua pequena nação. E assim, segundo a História de Heródoto, ele imaginou que seria uma boa ideia invadir e subjugar a Pérsia então a superpotência da Ásia ocidental. Ciro unira os persas e os medas, forjando o poderoso Império Persa. Naturalmente, Creso tinha alguns temores. 

Para julgar a conveniência da invasão mandou emissários consultarem o oráculo de Delfos. Podemos imaginá-los carregados de presentes opulentos — que, por sinal, ainda estavam expostos em Delfos um século mais tarde, na época de Heródoto. A pergunta que os emissários fizeram em nome de Creso foi: "O que acontecerá, se Creso declarar guerra à Pérsia?". 

Sem hesitar, a pítia respondeu: "Ele vai destruir um poderoso império". 

"Os deuses estão conosco", pensou Creso, ou alguma outra coisa nesse sentido. "É hora de invadir!" 

Lambendo os beiços e contando as suas satrapias, ele reuniu os seus exércitos de mercenários. Creso invadiu a Pérsia — e foi humilhantemente derrotado. Não só o poder lídio foi destruído, mas ele próprio se tomou, no resto da sua vida, um patético funcionário na corte persa, oferecendo pequenos conselhos a autoridades quase sempre indiferentes — um ex-rei parasito. É um pouco como se o imperador Hiroíto fosse viver o resto de seus dias como consultor na área de Washington, DC. 

Bem, ele acabou realmente sentindo a injustiça de toda a situação. Afinal, observara as regras do jogo. Tinha pedido o conselho da pítia, pagara generosamente, e ela lhe causara danos. Por isso, mandou outro emissário ao oráculo (com presentes muito mais modestos dessa vez, apropriados às suas circunstâncias mais mesquinhas) e perguntou: "Como você pôde fazer isso comigo?". Eis a resposta, tirada da História de Heródoto: 

A profecia dada por Apolo dizia que, se declarasse guerra à Pérsia, Creso destruiria um poderoso império. Ora, diante dessa resposta, se tivesse sido bem aconselhado, ele deveria ter mandado emissários fazer mais perguntas, para saber se a sacerdotisa se referia ao seu próprio império ou ao de Ciro. Mas Creso não compreendeu o que foi dito, nem fez novas perguntas. Por isso não deve culpar ninguém a não ser a si mesmo. 

Se o oráculo de Delfos fosse apenas um embuste para espoliar monarcas crédulos é claro que precisaria de desculpas para explicar os erros inevitáveis. Ambiguidades disfarçadas eram a sua principal mercadoria. Ainda assim a lição da pítia é pertinente: mesmo a oráculos devemos fazer perguntas, perguntas inteligentes — mesmo quando eles parecem nos dizer exatamente o que queremos ouvir. Os traçadores de políticas não devem aceitar cegamente; devem compreender. E não devem permitir que suas próprias ambições criem obstáculos para o entendimento. A conversão da profecia em política deve ser feita com cuidado. 

Esse conselho é perfeitamente aplicável aos oráculos modernos: os cientistas, os grupos think tank, as universidades, os institutos financiados pela indústria e os comitês consultivos da Academia Nacional de Ciências. Os traçadores de políticas enviam, às vezes relutantemente, as perguntas aos oráculos e recebem de volta a resposta. Nos dias de hoje, os oráculos muitas vezes oferecem voluntariamente as suas profecias, mesmo quando ninguém pergunta. Seus pronunciamentos são, em geral, muito mais detalhados que as perguntas — envolvendo o brometo de metila ou o vórtice circumpolar, os hidroclorofluorcarbonetos ou a geleira da Antártica ocidental. As estimativas são às vezes expressas em termos de probabilidades numéricas. Parece quase impossível que o político honesto consiga ouvir um simples sim ou não. Os traçadores de políticas devem decidir o que fazer em resposta, se é que devem agir. A primeira coisa a fazer é compreender. E devido à natureza dos oráculos modernos e suas profecias, os traçadores de políticas precisam — mais do que nunca — compreender a ciência e a tecnologia. (Em resposta a essa necessidade, o Congresso Republicano aboliu tolamente o seu Departamento de Avaliação de Tecnologia. E quase não há cientistas entre os membros do Congresso dos Estados Unidos. Situação muito semelhante acontece nos outros países.) 

Mas há outra história sobre Apolo e os oráculos, ao menos igualmente famosa, ao menos igualmente relevante. É a história de Cassandra, a princesa de Troia. (Começa pouco antes de os gregos micênicos invadirem Troia, dando início à Guerra de Troia.) Ela era a mais inteligente e a mais bela das filhas do rei Príamo. Apolo, sempre à espreita de humanas atraentes (como aliás todos os deuses e deusas gregos) apaixonou-se por ela. 

Estranhamente — isso quase nunca acontece nos mitos gregos —, ela resistiu às suas propostas amorosas. Por isso, ele tentou suborná-la. Mas o que poderia lhe dar? Ela já era uma princesa. Era rica e bela. Era feliz. Mesmo assim Apolo tinha uma ou duas coisinhas a oferecer. Ele lhe prometeu o dom da profecia. A oferta era irresistível. Ela concordou. Quid pro quo. Apolo fez tudo o que os deuses fazem para transformar meros mortais em videntes, oráculos e profetas. Mas então, escandalosamente, Cassandra roeu a corda. 

Ela recusou as propostas de um deus. 

Apolo ficou furioso. Mas não podia retirar o dom da profecia, porque, afinal, ele era um deus. (Digam o que disserem deles, os deuses cumprem as promessas.) Em vez disso, condenou Cassandra a um destino cruel e astucioso: que ninguém acreditaria nas suas profecias. (O que estou contando é tirado em grande parte da peça Agamenon, de Ésquilo.) Para seu próprio povo, Cassandra profetiza a queda de Troia. Ninguém lhe dá atenção. Ela prediz a morte do principal invasor grego, Agamenon. Ninguém lhe dá atenção. Ela até prevê a sua própria morte prematura, e mais uma vez ninguém lhe dá atenção. Eles não queriam ouvir. Riam dela. Eles a chamavam — tanto os gregos como os troianos — "a dama das muitas tristezas". Hoje talvez a desconsiderassem como "uma profetiza do abismo e das trevas". 

Há um belo momento, quando ela não consegue compreender como é que essas profecias de catástrofe iminente — algumas das quais, se levadas a sério, poderiam ser evitadas — eram ignoradas. Ela diz para os gregos: "Como é que vocês não me compreendem? Conheço muito bem a sua língua". Mas o problema não era a sua pronúncia do grego. A resposta (estou parafraseando) foi: "Veja, é o seguinte. Até o oráculo de Delfos às vezes comete erros. Às vezes as suas profecias são ambíguas. Não podemos ter certeza. E se não podemos ter certeza a respeito de Delfos, certamente não podemos ter certeza a respeito do que você diz". É o máximo que ela consegue como resposta substantiva. 

Acontecia o mesmo com os troianos: "Profetizei a meus conterrâneos", diz ela, "todos os seus desastres". Mas eles ignoraram as suas previsões e foram destruídos. Pouco depois, ela também o foi. 

A resistência à profecia funesta experimentada por Cassandra pode ser reconhecida hoje em dia. Se somos confrontados com uma predição nefasta envolvendo forças poderosas que não podem ser prontamente influenciadas, temos uma tendência natural a rejeitar ou a ignorar a profecia. Mitigar ou contornar o perigo exigiria tempo esforço, dinheiro, coragem. Poderia requerer que alterássemos as prioridades de nossas vidas. E nem toda predição de desastre, mesmo entre aquelas feitas por cientistas, se concretiza: a maioria da vida animal nos oceanos não morreu devido aos inseticidas; apesar da Etiópia e do Sahel, a fome mundial não foi a marca registrada da década de 80; a produção de alimentos no Sul da Ásia não foi drasticamente afetada pela queima dos poços petrolíferos do Kuwait em 1991, os meios de transporte supersônicos não constituem ameaça à camada de ozônio — embora todas essas predições tenham sido feitas por cientistas sérios. Assim, quando somos confrontados com uma nova e incômoda predição, poderíamos ser tentados a dizer: "Improvável". "Abismo e trevas." "Nunca experimentamos nada nem remotamente parecido." "Tentando assustar todo o mundo." "É ruim para o moral público." 

Além do mais, se os fatores que precipitam a catástrofe prevista são de longa duração, então a própria predição é uma censura indireta ou tácita. Por que nós, cidadãos comuns, permitimos que esse perigo se desenvolvesse? Não deveríamos ter nos informado a respeito mais cedo? Não somos cúmplices, uma vez que não tomamos as medidas para assegurar que os líderes governamentais eliminassem a ameaça? E como essas ruminações são incômodas — que nossa desatenção e inação possam ter posto a nós e àqueles que amamos em perigo —, há uma tendência natural, embora ruim para a adaptação, de rejeitar toda a história. Serão necessárias melhores evidências para que levemos a questão a sério. Há uma tentação de minimizar, descartar, esquecer. Os psiquiatras têm plena consciência dessa tentação. Dão-lhe o nome de "negação". Como diz a letra de uma antiga canção de rock: "A negação não é apenas um rio no Egito". 

As histórias de Creso e Cassandra representam os dois extremos da reação política a predições de perigo mortal — o próprio Creso representando o polo da aceitação crédula e acrítica (geralmente da garantia de que tudo está bem), provocada pela ganância ou outras falhas de caráter; e a resposta dos gregos e troianos a Cassandra representando o polo da rejeição firme e obstinada à possibilidade de perigo. A tarefa do traçador de políticas é tomar um rumo prudente entre esses dois perigos. 

Vamos supor que um grupo de cientistas afirme que uma grande catástrofe ambiental está avultando no horizonte. Além disso, vamos supor que o necessário para evitar ou mitigar a catástrofe seja dispendioso: não só exige muitos recursos intelectuais e fiscais, mas também questiona a nossa maneira de pensar — quer dizer, é politicamente dispendioso. Em que momento os traçadores de políticas devem levar os profetas científicos a sério? Há meios de avaliar a validade das profecias modernas — porque nos métodos da ciência existe um procedimento de correção de erros, um conjunto de regras que tem funcionado repetidamente bem, às vezes chamado de método científico. Há um certo número de princípios (esbocei alguns deles no meu livro O mundo assombrado pelos demônios): argumentos de autoridade têm pouco peso ("porque sou eu que estou afirmando" não basta); a predição quantitativa é um modo excelente de separar as ideias úteis dos disparates; os métodos de análise devem produzir novos resultados plenamente coerentes com tudo o mais que conhecemos sobre o universo; o debate vigoroso é um sinal saudável: para que uma ideia seja levada a sério, as mesmas conclusões devem ser encontradas independentemente por grupos científicos competentes que concorrem entre si; e assim por diante. Há meios para que os traçadores de políticas tomem as suas decisões, para que encontrem um meio termo seguro entre a ação precipitada e a impassibilidade. É necessário alguma disciplina emocional, no entanto, e acima de tudo cidadãos cientificamente alfabetizados — capazes de julgar por si mesmos quão terríveis são os perigos. 



(Bilhões e bilhões – reflexões sobre a vida e morte na virada do milênio - 1997; tradução de Rosaura Einchemberg) 



(Ilustração: John Collier - Cassandra)



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