sábado, 29 de fevereiro de 2020

PALAVRAS ALADAS, de Antonio Cicero

1 



Os juramentos que nos juramos

entrelaçados naquela cama

seriam traídos, se lembrados

hoje. Eram palavras aladas

e faladas não para ficar

mas, encantadas, voar. Faziam

parte das carícias que por lá

sopramos: brisas afrodisíacas

ao pé do ouvido, jamais contratos.

Esqueçamo-las, pois, dentre os atos

da língua, houve outros mais convincentes

e ardentes sobre os lençóis. Que esses,

em futuras noites, em vislumbres

de lembranças, sempre nos deslumbrem.




(Porventura)


(Ilustração: Sarah Anne-Johnson - Wonderlust)



quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

SER LÍRICO, de Emil Cioran


Por que não podemos morar isolados em nós mesmos? Por que nós perseguimos a expressão e a forma, procurando esvaziar-nos de todo o conteúdo, por meio de um processo caótico e rebelde? Não seria mais fecundo abandonar-nos à essa fluidez interior, sem preocupação objetiva, limitando-nos a gozar de todas as nossas efervescências e agitações íntimas? Vivências múltiplas e diferenciadas fundir-se-iam assim para engendrar uma das mais fecundas efervescências, semelhante a um movimento de marés ou a um paroxismo musical. Estar cheio de si, não no sentido do orgulho, mas da riqueza; sentir-se feito de um infinito interior, numa tensão extrema - isto significa viver intensamente, intensamente a ponto de sentir-se morrer de viver. Tão raro é este sentimento, e tão estranho, que nós deveríamos vivê-lo aos gritos. Preciso morrer de viver e me pergunto se existe algum sentido em buscar explicações. Assim que o passado da alma palpita em nós numa tensão infinita, ou que num dado momento retornam todas as experiências vividas e um ritmo perde seu equilíbrio e seu padrão, a morte nos prende aos cumes da vida, fazendo-nos provar, perante um tal terror, a mais dolorosa obsessão. Sentimento análogo àquele dos amantes que, no cume da alegria, veem surgir em frente a eles, fugitiva embora intensamente, a imagem da morte. Ou como, quando nos momentos de incerteza, emerge, em meio a um amor ainda nascente, a premonição do fim ou do abandono. 

Raros demais são aqueles que podem submeter-se até o fim, em tais experiências. É sempre perigoso reter uma energia explosiva, porque pode chegar o momento em que não teremos mais forças para dominá-la. A fusão acontecerá, portanto, à partir de um excesso. Existem estados e obsessões com os quais não saberíamos viver. A salvação não consiste em confessá-los logo? Guardadas na consciência, a experiência terrível e a obsessão aterradora da morte conduzem à ruína. Falando da morte nós salvamos qualquer coisa de nós mesmos, e, apesar disso, no âmago de nosso ser, apagamos algo. O lirismo representa uma expansão dispersiva da subjetividade, porque ele indica, no indivíduo, uma efervescência incoercível que visa incessantemente expressar-se. Esta necessidade de exteriorização é tanto mais urgente quanto mais é o lirismo interior, profundo e concentrado. Por que o homem se torna lírico em meio ao sofrimento ou ao amor? Porque estes dois estados, ainda que diferentes por sua natureza e orientação, surgem - de alguma forma - do âmago do ser, do próprio centro da subjetividade. Nós nos tornamos líricos assim que a vida interior palpita com seu ritmo essencial. O que nós temos de único e de específico é alcançado de uma forma tão expressiva que o indivíduo eleva-se ao plano universal. Somente as mais profundas experiências subjetivas são universais, na medida em que apenas elas são capazes de unir-se ao fundo da vida. A verdadeira interiorização leva a uma universalidade inacessível àqueles que não alcançam a essência e para quem o lirismo não passa de um fenômeno inferior, produto de uma inconsistência espiritual, quando os recursos líricos da subjetividade testemunham, na realidade, uma frescura e uma profundidade das mais remarcáveis. 

Algumas pessoas só se tornam líricas nos momentos decisivos de sua existência; para outras, é somente no instante da última agonia, quando o passado faz-se presente com todo o vigor de uma torrente. Mas, na maioria dos casos, a explosão lírica surge após experiências essenciais, quando a agitação do fundo íntimo do ser atinge o paroxismo. Assim, uma vez cativo do amor, o espírito habitualmente inclinado à objetividade e à impessoalidade, tão estrangeiro de si mesmo quanto das realidades profundas, prova um sentimento que mobiliza todos os seus recursos pessoais. O fato de que, salvo raras exceções, todos os homens "façam poesia" quando estão apaixonados demonstra bem que o pensamento conceitual não é o suficiente para exprimir o infinito interior; só uma matéria fluida e irracional é capaz de oferecer ao lirismo uma objetivação apropriada. Ignorante tanto de tudo o que se esconde em si mesmo, quanto de tudo o que o mundo em si esconde, nós somos subitamente surpreendidos pela experiência do sofrimento e transportados a uma região infinitamente complicada, de uma vertiginosa subjetividade. O lirismo do sofrimento alcança uma purificação interior em que as feridas não são mais meras manifestações externas sem implicações profundas, mas participam da própria substância do ser. É um hino do sangue, da carne e dos nervos. Assim, quase todas as doenças têm virtudes líricas. Somente aqueles que se mantêm numa insensibilidade escandalosa permanecem impessoais face à doença, fonte eterna de uma sondagem interior. 

Nós só nos tornamos verdadeiramente líricos após um profundo problema orgânico. O lirismo acidental é proveniente de determinantes exteriores e desaparece com eles. Não há lirismo sem um grão de loucura interior. Fato significativo, as psicoses caracterizam-se, em seu início, por uma fase lírica em que as barreiras e os obstáculos fundem-se para dar lugar a uma profunda embriaguez dos sentidos. Assim explica-se a produtividade poética das psicoses ainda insípidas. A loucura: um paroxismo do lirismo? Limitemo-nos, então, a escrever seu elogio, afim de evitarmos ter que escrever o da loucura. O estado lírico está além das formas e dos sistemas: uma fluidez e um derramar-se interiores misturam-se numa só expansão, como todos os elementos da vida do espírito numa convergência ideal, para criar um ritmo intenso e perfeito. Comparado ao refinamento de uma cultura paralítica que, prisioneira das molduras e das formas, tudo disfarça, o lirismo é uma expressão bárbara: seu verdadeiro valor consiste, precisamente, em ser somente sangue, sinceridade e chamas. 



(PE CULMILE DISPERARII - em romeno; ON THE HEIGHTS OF DESPAIR - em inglês; NOS CUMES DO DESESPERO; tradução de Guimarães Silva) 



(Ilustração: Edvard Munch -young woman on the shore-1896)



domingo, 23 de fevereiro de 2020

LE SPECTRE DE LA ROSE / O ESPECTRO DA ROSA, de Théophile Gautier



Soulève ta paupière close

Qu'effleure un songe virginal!

Je suis le spectre d'une rose

Que tu portais hier au bal.

Tu me pris encore emperlée

Des pleurs d'argent de l'arrosoir,

Et, parmi la fête étoilée,

Tu me promenas tout le soir.

Ô toi, qui de ma mort fus cause,

Sans que tu puisses le chasser,

Toutes les nuits

(Tout la nuit) mon spectre rose

À ton chevet viendra danser.

Mais ne crains rien, je ne réclame

Ni messe ni De Profundis,

Ce léger parfum est mon âme,

Et j'arrive du paradis.



Mon destin fut digne d'envie,

Et pour avoir un sort (trépas) si beau

Plus d'un aurait donné sa vie;

Car sur ton sein j'ai mon tombeau,

(Car j'ai ta gorge pour tombeau,)

Et sur l'albâtre où je repose

Un poète avec un baiser

Écrivit: «Ci-gît une rose,

Que tous les rois vont jalouser.»



Tradução de Maria de Nazaré Fonseca:


Levanta a tua pálpebra fechada

Tocada por um sonho virginal!

Eu sou o espectro de uma rosa

Que tu, no baile, usaste na noite passada.

Tu me colheste ainda com pérolas,

Do chuveiro de prata refrescada,

E entre a festa estrelada

Tu me passeaste toda a noite.



Ó tu que da minha morte foste a causa,

Sem que tu possas escapar,

Todas as noites o meu espectro se levantará

E à cabeceira da tua cama virá dançar.

Mas nada receeis, eu não reclamo

Nem missa nem De Profundis,

Esta fragrância é a minha alma

E eu venho do Paraíso.



O meu destino foi digno de inveja,

E para ter uma sorte tão bela

Muitos teriam dado a sua vida,

Porque sobre o teu seio eu tenho o meu Túmulo

E sobre o alabastro onde eu repouso,

Um poeta, com um beijo,

Escreveu: "Aqui jaz uma rosa,

Que todos os reis vão invejar”.



(Ilustração: Valentine Gross - Tamara Karsavina & Vaslav Nijinsky in Le Spectre de la Rose)



quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

POR QUE O DEUS CRISTÃO É IMPOSSÍVEL, de Chad Docterman







Os cristãos consideram que a existência de seu Deus é uma verdade óbvia. Esta assunção é falsa, não apenas porque falta qualquer evidência para a existência deste Deus – que, apesar de onipresente, é invisível –, mas porque a própria natureza que os cristãos atribuem a este Deus é autocontraditória. 

Muitos cristãos, assim como muitos ateus, alegam que é impossível provar uma negativa universal. Por exemplo, apesar de não haver evidências de que unicórnios ou dragões existem, não podemos provar sua inexistência. A não ser que tenhamos um conhecimento completo do Universo, precisamos admitir a possibilidade de que, em algum lugar do Universo, talvez existam tais seres. 

Mas a alegação de que a onisciência é necessária para provar uma negativa universal presume que o conceito que estamos discutindo é logicamente coerente. Se os atributos que conferimos a um objeto ou ser hipotéticos são autocontraditórios, então podemos concluir que este não pode existir e, portanto, não existe. Não é necessário todo o conhecimento do universo para provar que esferas cúbicas não existem. Tais objetos têm atributos mutuamente exclusivos que tornam sua existência impossível. Um cubo, por definição, tem oito vértices, enquanto a esfera não tem nenhum. Tais propriedades são completamente incompatíveis – não podem estar contidas simultaneamente no mesmo objeto. 

Pretendo demonstrar que as supostas propriedades do Deus cristão Iavé, assim como as de uma esfera cúbica, são incompatíveis, e, ao fazê-lo, demonstrar que a existência de Iavé é impossível. 

Os cristãos dotaram seu Deus de todos os seguintes atributos: ele é eterno, todo-poderoso e criou todas as coisas; criou todas as leis da natureza e pode mudar qualquer coisa por meio de um ato de sua vontade; é todo-bondade, todo-amor e perfeitamente justo; é um Deus pessoal que experimenta todas as emoções de um ser humano; é todo-sabedoria; vê todo o passado e todo o futuro. 

A criação de Deus era originalmente perfeita, mas, os humanos, ao desobedecê-lo, trouxeram a imperfeição ao mundo. Humanos são maus e pecadores, e precisam sofrer neste mundo devido à sua pecaminosidade. Deus dá aos humanos a oportunidade de aceitar o perdão de seu pecado, e todos que o fizerem serão recompensados com a bem-aventurança no céu, mas, enquanto estiverem na Terra, devem sofrer por sua causa. Todos os humanos que decidirem não aceitar este perdão serão enviados ao inferno para sofrer o tormento eterno. 

Tais atributos de Deus são relatados pela Bíblia, que os cristãos acreditam ser a palavra perfeita e verdadeira de Deus. 

Um verso que muitos cristãos gostam de citar diz que ateus são tolos (Cf. Salmos 14:1). Pretendo demonstrar que os conceitos divinos mencionados acima são completamente incompatíveis, e revelar a impossibilidade de todos eles co-existirem simultaneamente no mesmo ser. Não há qualquer tolice em negar o impossível; tolice é adorar um Deus impossível. 

O que Deus fez durante aquela eternidade anterior à criação de todas as coisas? Se Deus era tudo que existia naquele tempo, o que perturbou o equilíbrio eterno e o induziu à criação? Estava entediado? Estava solitário? 

Deus supostamente é perfeito. Se algo é perfeito, este algo é completo – não precisa de qualquer outra coisa. Nós, humanos, nos engajamos em atividades porque estamos buscando uma perfeição elusiva, pois há um desequilíbrio causado pela diferença entre o que somos e o que queremos ser. Se Deus é perfeito, então não pode haver desequilíbrio. Não há qualquer coisa de que ele necessite, qualquer coisa que deseje ou qualquer coisa que deva ou irá fazer. Um Deus que é perfeito não faz qualquer coisa senão existir. Um criador perfeito é impossível. 

Entretanto, por mero exercício intelectual, continuemos. Suponhamos que este Deus perfeito tenha realmente criado o Universo. Os humanos foram a coroa de sua criação, visto que foram criados à sua imagem e têm a habilidade da tomar decisões. Entretanto, esses humanos destruíram a perfeição original escolhendo desobedecer a Deus. 

Como!? Se algo é perfeito, nada imperfeito pode vir dele. Uma vez alguém disse que um mau fruto não pode vir de uma boa árvore; entretanto, este Deus “perfeito” criou um Universo “perfeito” que foi tornado imperfeito pelos humanos “perfeitos”. 

A fonte última da imperfeição é Deus. O que é perfeito não pode fazer-se imperfeito, assim, os humanos devem ter sido criados imperfeitos. Tudo que é perfeito não pode criar coisas imperfeitas, então Deus deve ser imperfeito para ter criado seres humanos imperfeitos. Um Deus perfeito que cria seres humanos imperfeitos é impossível. 

A objeção dos cristãos a este argumento envolve o livre-arbítrio. Eles dizem que um ser precisa possuir livre-arbítrio para ser feliz. O Deus todo-bondade não queria criar robôs, então deu aos humanos o livre-arbítrio para possibilitar a eles experimentar o amor e a felicidade. Mas os humanos usaram este livre-arbítrio para escolher o mal, e introduziram a imperfeição ao Universo originalmente perfeito de Deus. Deus não tinha controle sobre esta decisão, assim a culpa por nosso Universo imperfeito é dos humanos, não de Deus. 

Há vários motivos pelos quais este argumento é fraco. Em primeiro lugar, se Deus é onipotente, então a assunção de que o livre-arbítrio é necessário para a felicidade é falsa. Se Deus pôde fazer a regra de que apenas seres com livre-arbítrio poderiam experimentar a felicidade, então poderia, tão facilmente quanto, ter feito a regra de que apenas robôs poderiam experimentar a felicidade. A última opção é claramente superior, visto que robôs perfeitos nunca poderiam tomar decisões que os tornassem ou a seu criador infelizes, enquanto seres com livre-arbítrio poderiam. Um Deus perfeito e onipotente que cria seres capazes de arruinar sua própria felicidade é impossível. 

Em segundo lugar, mesmo se admitirmos a necessidade do livre-arbítrio para a felicidade, Deus poderia ter criado humanos com livre-arbítrio que não tivessem a habilidade de escolher o mal, mas apenas entre várias opções boas. 

Em terceiro lugar, Deus supostamente possui livre-arbítrio, e mesmo assim ele não toma decisões imperfeitas. Se humanos são imagens miniaturizadas de Deus, nossas decisões deveriam ser similarmente perfeitas. Ademais, os ocupantes do céu, que presumivelmente precisam possuir livre-arbítrio para serem felizes, nunca usarão este livre-arbítrio para tomar decisões imperfeitas. Por que os humanos originalmente perfeitos fariam diferente? 

O problema continua: a presença de imperfeição no Universo refuta a suposta perfeição de seu criador. 

Deus é onisciente. Quando criou o Universo, viu os sofrimentos que humanos suportariam como resultado do pecado daqueles humanos originais. Ele ouviu os gritos dos condenados. Certamente ele sabia que seria melhor para esses seres humanos que nunca tivessem nascido – e a Bíblia, de fato, diz exatamente isso –, e certamente esta divindade toda-compaixão teria antevisto a criação de um Universo destinado à perfeição no qual muitos dos humanos estavam condenados ao sofrimento eterno. Um Deus perfeitamente compassivo que deliberadamente cria seres condenados ao sofrimento é impossível. 

Deus é perfeitamente justo, e ainda assim sentencia os imperfeitos humanos que criou ao sofrimento infinito no inferno por pecados finitos. Claramente, uma ofensa limitada não justifica uma punição ilimitada. A sentenciação divina dos seres humanos imperfeitos a uma eternidade no inferno por um pecado com a duração de uma mera vida mortal é infinitamente injusta. O caráter absurdo desta punição infinita mostra-se ainda maior quando consideramos que a fonte última da imperfeição humana é o Deus que os criou. Um Deus perfeitamente justo que sentencia sua criação imperfeita à punição infinita por pecados finitos é impossível. 

Consideremos todas as pessoas que vivem em regiões remotas do mundo e que jamais ouviram o “evangelho” de Jesus Cristo. Consideremos as pessoas que aderiram naturalmente à religião de seus pais e nação – como foram ensinados a fazer desde seu nascimento. Se acreditarmos no que os cristãos dizem, todas essas pessoas irão perecer no fogo eterno por não acreditarem em Jesus. Não importa quão justos, bondosos e generosos eles foram com seus semelhantes durante sua vida: se não aceitarem o evangelho de Jesus, estão condenados. Nenhum Deus justo jamais julgaria um homem por suas crenças em vez de suas ações. 

A Bíblia supostamente é a palavra perfeita de Deus. Ela contém instruções para que a humanidade evite as eternas chamas do inferno. Quão maravilhoso e bondoso da parte deste Deus é proporcionar a nós meios de superar os problemas pelos quais ele, em última instância, é responsável! O Deus todo-poderoso poderia, por um simples ato de sua vontade, eliminar todos os problemas que nós, humanos, precisamos enfrentar; mas, em vez disso, com sua sabedoria infinita, ele optou por oferecer este indecifrável amálgama de livros denominado Bíblia como meio para evitarmos o inferno que ele preparou para nós. O Deus perfeito decidiu revelar sua vontade através desta obra imperfeita, escrita na linguagem imperfeita dos humanos imperfeitos, traduzida, copiada, interpretada e narrada por homens imperfeitos. Dois homens nunca irão concordar sobre o que a palavra de Deus realmente significa, visto que grande parte dela é autocontraditória ou obscurecida por enigmas. E ainda assim o Deus perfeito espera que nós, imperfeitos humanos, entendamos este enigma paradoxal utilizando as mentes imperfeitas com as quais ele nos equipou. Certamente o Deus todo-sabedoria e todo-poderoso sabia que teria sido melhor revelar sua vontade perfeita diretamente a cada um de nós em vez de permitir ela fosse distorcida e pervertida pela imperfeita linguagem e pelas ruinosas interpretações do homem. 

Não se precisa olhar em qualquer lugar senão a própria na Bíblia para descobrir suas imperfeições, pois ela se contradiz, e assim expõe sua própria imperfeição. Ela se contradiz em questões de justiça, pois o mesmo Deus que assegura a seu povo que os filhos não serão punidos pelos pecados de seus pais acaba por destruir uma família inteira pelo pecado de um homem (ele havia roubado um pouco do saqueio de guerra de Iavé). Foi o mesmo Iavé que afligiu milhares de inocentes com praga e morte para punir o maldoso rei Davi por tomar um censo. Foi o mesmo Iavé que permitiu que humanos matassem seu filho porque o perfeito Iavé tinha fracassado em sua própria criação. Consideremos quantos foram apedrejados, queimados, assassinados, estuprados e escravizados devido ao distorcido senso de justiça de Iavé. O sangue de bebês inocentes está nas mãos perfeitas, justas e compassivas de Iavé. 

A Bíblia contradiz-se em questões históricas. Uma pessoa que lê e compara os conteúdos da Bíblia ficará confuso sobre quem eram exatamente as esposas de Esaú, se Timná era uma concubina ou um filho e se a linhagem terrena de Jesus vem de Salomão ou de seu irmão Natã. Há centenas de contradições históricas documentadas. Se a Bíblia não pode confirmar a si própria em questões mundanas, como poderemos confiá-la em questões morais e espirituais? 

A Bíblia interpreta mal suas próprias profecias. Compare-se Isaías 7 com Mateus 1 para se encontrar apenas uma das muitas profecias mal interpretadas das quais os cristãos são passivamente ou deliberadamente ignorantes. O sinal dado por Isaías ao rei Ahaz visava assegurá-lo de que seus inimigos, Rei Rezim e Rei Remalia, seriam derrotados. Essa profecia foi cumprida exatamente no capítulo seguinte. Ainda assim, Mateus 1 não apenas interpreta erradamente a palavra “donzela” como “virgem”, mas também alega que esta profecia já cumprida na realidade cumpriu-se com o nascimento virginal de Jesus! 

O cumprimento de profecias na Bíblia é citado como prova de sua inspiração divina, entretanto, aqui está um bom exemplo de uma profecia cujo significado original foi e continua sendo distorcido para sustentar doutrinas absurdas e falsas. Não há limites para o que um indivíduo crédulo fará para sustentar suas crenças febris quando confrontado com evidências contundentes. 

A Bíblia é imperfeita. Apenas uma imperfeição é necessária para destruir a suposta perfeição da palavra de Deus. Muitas foram encontradas. Um Deus perfeito que revela sua vontade perfeita através de um livro imperfeito é impossível. 

Um Deus que conhece o futuro é impotente para mudá-lo. Um Deus onisciente que é todo-poderoso e dotado de livre-arbítrio é impossível. 

Um Deus que sabe tudo não pode ter emoções. A Bíblia diz que Deus experimenta todas as emoções humanas, incluindo ódio, tristeza e felicidade. Nós, humanos, experimentamos emoções como resultado de um novo conhecimento. Um homem que desconhece a infidelidade de sua esposa irá experimentar as emoções de ódio e tristeza apenas após descobrir o que anteriormente, para ele, estava oculto. Em contraste, o Deus onisciente não é ignorante em relação a qualquer coisa. Nada é oculto para ele, nada novo pode lhe ser revelado – assim não há como adquirir um conhecimento ao qual possa reagir emocionalmente. 

Nós, humanos, experimentamos ódio e frustração quando algo está errado e somos impotentes para consertá-lo. O Deus perfeito e onipotente pode, entretanto, consertar qualquer coisa. Humanos sentem desejo daquilo que lhes falta. Para o Deus perfeito nada falta. Um Deus onisciente, onipotente e perfeito que experimenta emoções é impossível. 

Ofereci argumentos para a impossibilidade – e, portanto, para a inexistência – do Deus cristão Iavé. Nenhum indivíduo racional e livre-pensador pode aceitar a existência de um ser cuja natureza é tão contraditória quanto a de Iavé, o “perfeito” criador de nosso imperfeito Universo. A existência de Iavé é tão impossível quanto a existência de esferas cúbicas ou unicórnios róseos invisíveis. 

Apesar de que crentes podem encontrar conforto em serem fiéis a impossibilidades, não há maior satisfação que a de possuir uma mente lúcida. Eles podem escolher servir um Deus impossível. Eu escolho a realidade. 



(Tradução: André Díspore Cancian) 


(Ilustração: Mia Mäkilä - holiday in hell, 2007) 



















segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

RUA DE ONTEM, de Yasmin Nigri


1



I

A gente assistia Anticristo na cama comendo pastel de chocolate
enquanto você me acariciava a barriga
naquele tempo já parecia tão difícil a união

como era mesmo que você me olhava quando a gente ainda se via?


II

Uma duas várias ondas de raiva te destruíam as mãos e a louça
leão enjaulado eu defendia seu show à plateia estupefata

III

Meti a mão na sua cara
verdade seja dita eu meti a mão na sua cara algumas vezes
você fica parecendo uma vagabunda com essas argolas de solteira

IV

O motel aos dezoito era mais ou menos:
                             
1. vestir roupões brancos que engoliam a gente
2. pedir macarrão com camarões
3. escolher com esmero aquele corpete branco com meias ¾ e um salto Melissa

como era mesmo que você me olhava quando a gente ainda se via?

V

Na festa em que tomamos LSD pela primeira vez
pulamos a noite inteira na grama
você sabe como minha mãe me irrita mas eu não empurrei ela
nem dinheiro tínhamos pra pagar
juntamos metade dos seus livros
e vendemos no sebo

VI

Aos sábados eu cozinhava enquanto você jogava GTA
eu não preciso de amigos eu tenho você
e largávamos tudo sujo na pia

VII

Às vezes me levava uma rosa vermelha
escondida nas costas
o buquê, você leu, era enfeite pra casa

Com base no trecho acima marque a(s) alternativa(s) correta(s):

a) dona de casa não é sujeito
b) livro de autoajuda não é literatura
c) buquê não é flor
d) só pode existir cavalheirismo em uma sociedade já profunda e inerentemente machista

VIII

Aos finais de semana fazíamos
amor na praia de Copacabana
no barco náufrago você sacrificava sua família e me salvava
two against the world


IX

Não pode sair sem mim           
Eu tô tentando melhorar         
Uma coisa de cada vez               
Calma!                                
                      
brigando fora de casa
brigando dentro de casa
xingando aqui e acolá
fim

X

foi tudo um sobressalto porque o amor é um sobressalto e fica difícil de enxergar o que tá por trás desse salto descer desse salto pisar no chão novamente o chão é duro a suspensão é sempre deliciosa crescer nem sempre é uma coisa boa guarda isso você não vai precisar mas se for pra guardar algo de tudo guarda isso saber que você anda gritando com a sua namorada nova escutar vai tomar no seu cu duas vezes acabou tudo sabe amor não pode ser conivente assim não basta o feminismo liberal não basta desculpas não bastam arrastam a corrente eterna

XI

Es bleibt uns die Straße von gestern(*)



(*) Resta-nos a rua de ontem (nota do blogger)





(Ilustração: Dino Valls - Araneidae)




sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

OS MODELOS DO ÊXITO, de Eduardo Galeano


 O mundo ao avesso gratifica o avesso: despreza a honestidade, castiga o trabalho, recompensa a falta de escrúpulos e alimenta o canibalismo. Seus mestres caluniam a natureza: a injustiça, dizem, é lei natural. Milton Friedman, um dos membros mais conceituados do corpo docente, fala da “taxa natural de desemprego”. Por lei natural, garantem Richard Herrnstein e Charles Murray, os negros estão nos mais baixos degraus da escala social. Para explicar o êxito de seus negócios, John Rockefeller costumava dizer que a natureza recompensa os mais aptos e castiga os inúteis. Mais de um século depois, muitos donos do mundo continuam acreditando que Charles Darwin escreveu seus livros para lhes prenunciar a glória. 

Sobrevivência dos mais aptos? A aptidão mais útil para abrir caminho e sobreviver, o killing instinct, o instinto assassino, é uma virtude humana quando serve para que as grandes empresas façam a digestão das pequenas empresas e para que os países fortes devorem os países fracos, mas é prova de bestialidade quando um pobre-diabo sem trabalho sai a buscar comida com uma faca na mão. Os enfermos da patologia antissocial, loucura e perigo de que cada pobre é portador, inspiram-se nos modelos de boa saúde do êxito social. O ladrão de pátio aprende o que sabe elevando o olhar rasteiro aos cumes: estuda o exemplo dos vitoriosos e, mal ou bem, faz o que pode para lhes copiar os méritos. Mas “os fodidos sempre serão fodidos”, como costumava dizer Dom Emílio Azcárraga, que foi amo e senhor da televisão mexicana. As possibilidades de que um banqueiro que depena um banco desfrute em paz o produto de seus golpes são diretamente proporcionais às possibilidades de que um ladrão que rouba um banco vá para a prisão ou para o cemitério. 

Quando um delinquente mata por dívida não paga, a execução se chama ajuste de contas; e se chama plano de ajuste a execução de um país endividado, quando a tecnocracia internacional resolve liquidá-lo. A corja financeira sequestra os países e os arrasa se não pagam o resgate. Comparado com ela, qualquer bandidão é mais inofensivo do que Drácula à luz do sol. A economia mundial é a mais eficiente expressão do crime organizado. Os organismos internacionais que controlam a moeda, o comércio e o crédito praticam o terrorismo contra os países pobres e contra os pobres de todos os países, com uma frieza profissional e uma impunidade que humilham o melhor dos lança-bombas. 

A arte de enganar o próximo, que os vigaristas praticam caçando incautos pelas ruas, chega ao sublime quando alguns políticos de sucesso exercitam seus talentos. Nos subúrbios do mundo, chefes de estado vendem saldos e retalhos de seus países, a preço de liquidação de fim de temporada, como nos subúrbios das cidades os delinquentes vendem, a preço vil, o butim de seus assaltos. 

Os pistoleiros de aluguel realizam, num plano menor, a mesma tarefa que cumprem, em grande escala, os generais condecorados por crimes elevados à categoria de glórias militares. Os assaltantes que, à espreita nas esquinas, atacam a manotaços, são a versão artesanal dos golpes dados pelos grandes especuladores, que lesam multidões pelo computador. Os violadores que mais ferozmente violam a natureza e os direitos humanos jamais são presos. Eles têm as chaves das prisões. No mundo como ele é, mundo ao avesso, os países responsáveis pela paz universal são os que mais armas fabricam e os que mais armas vendem aos demais países. Os bancos mais conceituados são os que mais narcodólares lavam e mais dinheiro roubado guardam. As indústrias mais exitosas são as que mais envenenam o planeta, e a salvação do meio ambiente é o mais brilhante negócio das empresas que o aniquilam. São dignos de impunidade e felicitações aqueles que matam mais pessoas em menos tempo, aqueles que ganham mais dinheiro com menos trabalho e aqueles que exterminam mais natureza com menos custo. 

Caminhar é um perigo e respirar é uma façanha nas grandes cidades do mundo ao avesso. Quem não é prisioneiro da necessidade é prisioneiro do medo: uns não dormem por causa da ânsia de ter o que não têm, outros não dormem por causa do pânico de perder o que têm. O mundo ao avesso nos adestra para ver o próximo como uma ameaça e não como uma promessa, nos reduz à solidão e nos consola com drogas químicas e amigos cibernéticos. Estamos condenados a morrer de fome, a morrer de medo ou a morrer de tédio, isso se uma bala perdida não vier abreviar nossa existência. 

Será esta liberdade, a liberdade de escolher entre ameaçadores infortúnios, nossa única liberdade possível? O mundo ao avesso nos ensina a padecer a realidade ao invés de transformá-la, a esquecer o passado ao invés de escutá-lo e a aceitar o futuro ao invés de imaginá-lo: assim pratica o crime, assim o recomenda. Em sua escola, escola do crime, são obrigatórias as aulas de impotência, amnésia e resignação. Mas está visto que não há desgraça sem graça, nem cara que não tenha sua coroa, nem desalento que não busque seu alento. Nem tampouco há escola que não encontre sua contra escola. 



(De pernas para o ar; tradução de Sérgio Faraco) 



(Ilustração: Debora Arango -1907-2005: white slave trade)




terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

LE VASE BRISÉ / O VASO PARTIDO, de Sully Prudhomme




Le vase où meurt cette verveine

D’un coup d’éventail fut fêlé ;

Le coup dut effleurer à peine :

Aucun bruit ne l’a révélé.



Mais la légère meurtrissure,

Mordant le cristal chaque jour,

D’une marche invisible et sûre

En a fait lentement le tour.



Son eau fraîche a fui goutte à goutte,

Le suc des fleurs s’est épuisé ;

Personne encore ne s’en doute ;

N’y touchez pas, il est brisé.



Souvent aussi la main qu’on aime,

Effleurant le coeur, le meurtrit ;

Puis le coeur se fend de lui-même,

La fleur de son amour périt ;



Toujours intact aux yeux du monde,

Il sent croître et pleurer tout bas

Sa blessure fine et profonde ;

Il est brisé, n’y touchez pas.




Tradução de Guilherme de Almeida:



O vaso azul destas verbenas,

Partiu-o um leque que o tocou:

Golpe sutil, roçou-o apenas

Pois nem um ruído revelou.



Mas a fenda persistente,

Mordendo-o sempre sem sinal,

Fez, firme e imperceptivelmente,

A volta toda do cristal.



A água fugiu calada e fria,

A seiva toda se esgotou;

Ninguém de nada desconfia,

Não toquem, não, que se quebrou.



Assim, a mão de alguém, roçando

Num coração, enche-o de dor,

E ele se vai, calmo, quebrando,

E morre a flor do seu amor;



Embora intacto ao olhar do mundo,

Sente, na sua solidão,

Crescer seu mal, fino e profundo,

Já se quebrou: não toquem, não.



(Stances et poèmes / Obras Primas da Poesia Universal)



(Ilustração: Carmen Tyrrell – sadness)




sábado, 8 de fevereiro de 2020

O MEDO (E UMA DAS SUAS VARIANTES, O TEMOR REVERENCIAL), de José Eduardo Agualusa



Durante muitos anos vivi sem Medo. Escrevo Medo assim, com maiúscula, porque não estou a falar dos sustos minúsculos com que as pessoas comuns convivem no dia a dia: o medo de ser assaltado, o medo de que a polícia nos faça parar exatamente naquela noite em que bebemos um copo a mais, o medo de não conseguir uma ereção perfeita, o medo de enfrentar uma plateia, o medo do escuro, e por aí fora. Tão-pouco me refiro aos grandes medos metafísicos que a humanidade enfrenta desde que nos deu a alma para a metafísica.

Quando escrevo Medo, estou a referir-me, em concreto, ao sentimento de permanente angústia e desamparo que aflige as pessoas com opiniões diferentes em países sujeitos a regimes totalitários. Durante muitos anos, confesso, nem sequer me dei conta de que vivia numa ditadura. O meu pai morreu em 1975, na Huíla, a combater as tropas sul-africanas. Em criança os adultos tratavam-me com a deferência que se reserva aos órfãos dos heróis. A minha mãe, Cuca, sempre pertenceu ao Partido. Cresci protegido. As pessoas só se dão conta de que vivem numa ditadura quando as suas opiniões colidem com as de quem está no poder. No meu caso aconteceu de forma abrupta, como um acidente de automóvel. Foi há uns dez anos.

Certo dia, entrevistado por um dos pequenos semanários que na altura se multiplicavam em Luanda, comentei distraído o vago aborrecimento que sempre me provocou a poesia de Agostinho Neto. E acrescentei: “Foi um estadista, não um poeta, a poesia era para ele uma outra forma de fazer política. Deixou-nos apenas meia dúzia de versos, quase todos medíocres”. Dois dias depois Malaquias da Palma Chambão publicou n’ O Impoluto um dos seus flamantes editoriais:

O presumível escritor e cineasta Bartolomeu Falcato—cujo nome já denuncia todo um projeto de vida: bar-tolo-meu —, vil flatulência retardada do colonial-fascismo, veio a público sujar a memória do poeta maior, do guia imortal da revolução angolana, do querido e saudoso pai que nos levou a todos a trilhar o caminho das estrelas. Anão miserável! O teu olhar não vai além da tampa da sanita! Gostaria de te arrancar a cabeça à catanada, mas infelizmente tu, vil excremento!, não tens cabeça! Gostaria de te arrancar a alma mas tu, ó dejeto impuro, nunca tiveste alma! Tudo em ti nasce da lixeira e rasteja de retorno à lixeira, à sarjeta, à materna latrina que um dia te gerou. Atenção, homens de bem: Bartolomeu Falcato é um leproso moral! Evitem-no!

O texto era longo e estava tão eriçado de pontos de exclamação que parecia um porco-espinho. Uma pessoa tinha de segurar no jornal com cuidado para não ferir os dedos.

O Jornal de Angola, órgão oficial do governo, exigiu em altos brados a minha prisão. Um professor de direito na Universidade Agostinho Neto deu-se mesmo ao trabalho de escrever um revolto ensaio capaz de justificar o meu encarceramento:

A escrita não pode servir para humilhar, banalizar, denegrir, diabolizar os ícones, os heróis, os mitos, as legiões de anjos, os deuses e divindades. Agostinho Neto nasceu quilamba, intérprete e condutor das entidades aquáticas. Criança dotada de poderes especiais, cuja natureza o impele a contrariar convenções, a liderar revoluções e xinguilamentos. Exige-se respeito e veneração aos heróis e às divindades. Impõe-se temor reverencial! Creio estarem reunidos todos os requisitos para processar Bartolomeu Falcato por traição à pátria, desrespeito pelos símbolos nacionais e vergonhoso ultraje à moral pública. Atentou de forma obscena contra a tradição cultural e intelectual dos angolanos, crime previsto e punido pelo Artigo 420º do Código Penal. Houvesse ainda pena de morte— que lamentavelmente foi abolida —, e o autor do horrendo crime deveria ser encostado ao paredão.

Muitos leitores escreveram a criticar-me. Lembro-me em particular de uma das cartas: “Não podemos aceitar as insolentes afirmações do escritor Bartolomeu Falcato, ele foi demasiado longe! Se tivesse dito que os versos do presidente Neto eram maus, tudo bem. São mesmo maus. Mas chamá-los de medíocres — assim mesmo, medíocres?! Isso eu já acho muita falta de respeito!”.

Foi assim que me transformei num dissidente poético. Provavelmente, no primeiro dissidente poético da história da humanidade. Comecei a receber chamadas anónimas. Eu atendia o telefone e do outro lado uma voz colérica insultava-me:

— Mulato, filho de cobra! Vou cumprir-te!

    (Cumprir-te é um curioso neologismo angolano. Um eufemismo elegante. Significa que tencionam assassinar-me, cumprindo depois a pena respectiva. Filho de cobra é um insulto antigo, contra os mestiços e brancos, que sempre me agradou. Um dia, daqui a muitos anos, vou escrever e publicar a minha autobiografia e dar-lhe-ei como título Filho de cobra.)

Por vezes não havia voz alguma, apenas uma respiração acintosa. Certa ocasião dispararam um tiro junto ao bocal do telefone. Não foi grande ideia, suponho, porque escutei a seguir o som de um vidro a estilhaçar-se, e logo depois um grito irado:

— Foda-se, tenente! Quantas vezes já lhe disse que é proibido disparar aqui dentro?

Os insultos e as ameaças podiam acontecer a qualquer hora. Muitas vezes a meio da noite.

Lembrei-me de uma conversa que tive com Benigno dos Anjos Negreiros em Budapeste, dois ou três dias depois de o ter encontrado com as filhas. Disse-lhe que também elas me pareciam um oxímoro orgânico. Concordou animadamente:

— Creio que você tem razão, jovem! As meninas contradizem-se, amam-se e odeiam-se, e quase sempre de forma harmoniosa.

Tínhamos levado um tabuleiro de xadrez para junto de uma das piscinas, imitando os húngaros, e jogávamos uma demorada partida, meio mergulhados, como lagostas, na água escaldante. Benigno contou-me então que houvera na vida das filhas um português suave (apreciei a redundância), o qual seduzira Clara Bruna, para depois a trocar pela irmã. O português engravidara Clara Bruna, marcara casamento, e depois deixara-a à espera, vestida de noiva, à porta da igreja. Não apareceu ele nem a madrinha da noiva — Bárbara Dulce. Seis meses mais tarde, Bárbara reapareceu em casa dos pais, também ela grávida, também ela humilhada, depois de, por sua vez, ter sido abandonada pelo português. Caía a tarde enquanto Benigno me ia revelando, com raiva contida, todos estes acontecimentos. A última luz do dia baixava grave e oblíqua, a partir de uma espécie de zimbório em vitral, lá muito em cima. Charcos de sombra alastravam pelos cantos. A água das piscinas (havia várias) era agora mais densa e mais escura.

— E depois? — perguntei.

O meu futuro sogro moveu um bispo, ameaçando-me a rainha. Um lance arriscado. Baixou a voz:

— O que sabe você sobre o Medo?

Olhei-o inquieto. Alguma coisa mudara nele, falava com entusiasmo, os olhos brilhantes:

— O Medo é a minha especialidade. Eu desenho ambientes propiciadores do Medo. Estudei durante anos a arquitetura do Medo. Formei-me em Moscovo, lá, na praça Lubianka. Conhece a praça Lubianka? Ah, as saudades que eu tenho da praça Lubianka! O Medo degrada as pessoas, meu caro jovem. Se você mantiver a pressão, semanas, meses a fio, o Medo acaba por funcionar como uma doença. Ao princípio é apenas um incómodo persistente, como uma dor de dentes, como uma dor de cabeça, uma dor que se instala no espírito, e vai corroendo tudo. Pouco a pouco a pessoa começa a alterar o seu comportamento, começa a imaginar situações de perigo. Torna-se paranoica, perde o gosto pela vida e entra em depressão. Eventualmente mata-se.

Dizia essas coisas docemente. Benigno é, quase sempre, muito simpático. Acho-o de uma simpatia assustadora. Distraí-me por um breve instante, levado por aquela voz de radialista, quente e bem timbrada, e quando voltei a prestar atenção ao tabuleiro compreendi que perdera o jogo.

— O que aconteceu?

O general encolheu os poderosos ombros:

— Você perdeu, escritor. Perdeu miseravelmente.

— Não, não! Quero saber o que aconteceu ao português.

— O português suave?! Ah! Não aguentou, coitado. Atirou-se do alto da Termiteira.

O Medo, portanto. O Medo é também personagem importante neste meu testemunho.



(Barroco Tropical)



(Ilustração: George Gittoes – fear)



quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

PERFEITO, de Eucanaã Ferraz



Me disse nos meus braços você parece

um menino eu disse nos seus braços

eu sou um menino eu podia ter dito



trago pela mão um girassol um livro

um violino eu devia ter dito eu não disse

sou um verso que teci com seus cabelos



sou o peixe vermelho no aquário

de Matisse eu diria ainda mas

deixei que só a respiração dissesse



que eu era a presença longínqua da maresia

por entre os pinheiros de Curitiba

um menino sim um grão de mostarda



um sobrado em Braga branco e branco

eu despertava e Amsterdã sob a neve

parecia mais pequenina uma sílaba



à espera de uma sílaba que a tarde

trazia entre dentes miúdos; tudo

sob o laço prestes a desatar e cair



à maneira de um copo que se parte;

mas por ora nada tinha peso nada

era grave e o tempo sem as horas



nunca soube de nós ali onde o mundo

permaneceria daquele modo suspenso

perfeito.




(Escuta)



(Ilustração: Heinrich Lossow)






domingo, 2 de fevereiro de 2020

O POETA!, DE John Sutherland





O poeta! 

O poeta. Que imagens essa pequena palavra evoca? Como acontece comigo, talvez apareça na sua imaginação um homem com olhos chamejantes, uma expressão longínqua, cabelo esvoaçante, trajando vestes folgadas. Ou uma mulher, de pé numa rocha ou em outro lugar elevado, contemplando a distância. O ar tem nuvens, mar, vento e tempestade. Ambas as figuras estão sozinhas. “Solitárias”, como define Wordsworth, “como uma nuvem.” 

Pode haver uma aura de loucura - os romanos chamavam isso de furor poeticus. Muitos dos nossos grandes poetas (John Clare e Ezra Pound, para pegar dois dos absolutamente maiores), com efeito, passaram períodos de suas vidas em instituições psiquiátricas. Vários escritores contemporâneos passam mais tempo no divã do psicanalista do que no escritório do agente literário. 

O crítico Edmund Wilson tomou emprestada uma imagem da antiguidade para descrever o poeta. Ele era, disse Wilson, como Filoctetes na Ilíada. Filoctetes era o maior arqueiro do mundo. Seu arco era capaz de vencer guerras. As coisas estavam indo mal para os gregos no cerco de Troia. Eles precisavam de Filoctetes. Mas o haviam banido para uma ilha. Por quê? Porque Filoctetes tinha uma ferida que fedia tanto que ninguém suportava ficar perto dele. Ulisses foi enviado para trazê-lo à Troia sitiada. Porém, se os gregos queriam o arco, eles também precisavam aguentar o fedor. Essa, no entender de Wilson, é a imagem do poeta — alguém necessário, mas com quem é impossível conviver. 

Tendemos a pensar no poeta como não apenas solitário, mas — em essência — como um forasteiro. Uma voz na imensidão deserta. O poeta, disse o filósofo John Stuart Mill (cuja vida tinha sido transformada por sua leitura da poesia de Wordsworth), não é “ouvido”, mas “entreouvido”. A relação mais importante do poeta não é conosco, leitores, mas com sua “musa”. A musa é uma empregadora cruel. Enche o poeta de inspiração (a palavra sugere “sopro sagrado”), mas não lhe dá dinheiro algum. Ninguém espera ficar pobre com tanta confiança quanto a pessoa que faz versos - daí a expressão “mansarda de poeta” (a mansarda é um sótão miserável). Quem já ouviu falar de uma “mansarda de médico” ou “mansarda de advogado”? 

O poeta Philip Larkin afirmou certa vez que o poeta canta com o máximo de doçura quando, como ocorre ao lendário tordo, o espinho se aperta com máxima força contra seu peito. Mas não é uma questão de dar mais dinheiro aos poetas, ou de remover os vários espinhos de seus peitos. Outra imagem, desta vez de George Orwell, ilustra o ponto graficamente. Orwell gostava de retratar a sociedade como uma baleia. Era da natureza desse monstro desejar engolir seres humanos — como, na Bíblia, a baleia engole Jonas vivo. Jonas não é mastigado e comido pelo leviatã, ele é aprisionado “na barriga da baleia”. Era dever do artista permanecer “fora da baleia”, na definição de Orwell: perto o bastante para vê-la (ou “arpoá-la” com sátiras como seu próprio A revolução dos bichos), mas não, como Jonas, para ser engolido por ela. O poeta é o artista para quem é mais necessário manter distância das coisas. 

A poesia antecede em muito qualquer literatura escrita ou impressa. Todas as sociedades que conhecemos — histórica e geograficamente — têm seus poetas. Seja lá como for que o chamemos — bardo, escaldo, menestrel, cantor, rimador —, o poeta sempre teve a mesma relação difícil de “forasteiro/integrante” com a sociedade. 

Na sociedade feudal, os nobres gostavam de ter seus menestréis particulares (junto com seus bobos da corte) para entretenimento deles e de seus convidados. Sir Walter Scott escreveu seu melhor poema, A balada do último menestrel (1805), sobre o tema. Desde o século XVII, a Inglaterra tem seu poeta laureado, um versejador nomeado pelo monarca e membro da casa real. Mais recentemente, os Estados Unidos também começaram a nomear seus poetas laureados. Antes de 1986, eram chamados, esquisitamente, de “Consultores de Poesia da Biblioteca do Congresso”. O termo “laureado” remonta à Grécia e à Roma antigas, e significa “coroado com folhas de louro”. O laureado (sempre um homem) ganhava sua coroa de folhas travando combates verbais, como um gladiador, com outros poetas. (Os rappers, bardos dos nossos dias, ainda disputam essas batalhas em estilo livre.) O primeiro poeta laureado oficial da Inglaterra foi John Dryden, que ocupou o cargo sob Carlos II, de 1668 a 1689, embora pareça não ter sido especialmente consciencioso quanto a suas responsabilidades. Dali em diante o poeta laureado foi, por séculos, uma espécie de piada. Um que ocupou o cargo, por exemplo, foi Henry Pye (laureado entre 1790 e 1813). O estudo da literatura é minha profissão há tantos anos que nem me preocupo mais em contá-los, mas não consigo trazer à memória um único verso de Henry James Pye. Não me envergonho. 

Com excessiva frequência, o escárnio era o que o poeta laureado podia esperar, junto com a honra duvidosa do título e o pagamento irrisório que o acompanhava (tradicionalmente, algumas moedas de ouro e uma “pipa”, ou barril, de vinho do porto). Quando Robert Southey (laureado entre 1813 e 1843) escreveu um poema sobre o recém-falecido rei Jorge III sendo saudado no céu por um São Pedro bajulador, chamado Uma visão do julgamento (1821), Byron o demoliu com A visão do julgamento (você vê a — ligeiríssima — diferença?), encarado como uma das maiores sátiras do idioma. Quando o escreveu, Byron estava exilado na Itália, tendo sido escorraçado da Inglaterra por suposta imoralidade. Qual dos dois poetas é lembrado hoje? O integrante ou o forasteiro? Sir Walter Scott (...) declinou da honra da laureação (em favor de Southey) porque, segundo afirmou, o cargo grudaria em seus dedos como uma fita adesiva, impedindo-o de escrever com liberdade. Scott queria sua liberdade poética. 

O poeta que teve êxito no cargo e no papel do “poeta institucional” — o poeta totalmente dentro da baleia de Orwell mas apesar disso escreveu grande poesia, foi Alfred Tennyson (1809-1892). Coisa incomum para sua época, Tennyson viveu além dos oitenta, duas décadas mais do que Dickens, cinco décadas mais do que Keats. O que poderiam eles ter feito com esses anos tennysonianos? 

Tennyson publicou seu primeiro volume de poesia quando tinha meros 22 anos. Apresentava vários poemas que ainda integram sua melhor produção lírica, como “Ivlariana”. Alfred se considerava, nesse período, um legítimo poeta romântico — o herdeiro de Keats. Pela década de 1830, porém, o Romantismo havia desvanecido enquanto movimento literário vital. Ninguém queria um Keats requentado. Seguiu-se um longo período estéril em sua carreira — a “década perdida”, como a chamam os críticos. Foi um período na imensidão deserta. Ele se libertou de sua paralisia e, em 1850, aos 41 anos, produziu o mais famoso poema do período vitoriano — In Memoriam A.H.H., inspirado pela morte de seu melhor amigo, Arthur Henry Hallam, com quem, especula-se, sua relação era tão intensa que poderia ter sido sexual. Provavelmente não, mas intensa, do modo “viril” aprovado pelos vitorianos, por certo foi. 

O poema é feito de versos curtos, narrando dezessete anos de luto. Os vitorianos pranteavam a morte de um ente querido por um ano inteiro — com roupas escuras e com papel de carta de margens escuras; as mulheres usavam véus e joias especialmente sombrias. Nesse poema de luto, Tennyson meditou sobre os problemas que mais atormentavam sua época. A dúvida religiosa afligia a segunda metade do século XIX como uma doença moral. Tennyson afligia-se ainda mais do que a maioria. Se havia um céu, por que motivo não nos regozijávamos quando uma pessoa querida morria e ia para lá? Elas estavam indo para um lugar melhor. Mas In Memoriam segue sendo, em essência, um poema sobre o pesar pessoal. E afinal, conclui o poema, apesar de toda a dor, “É melhor ter amado e perdido / Do que nunca ter amado em absoluto”. Quem, tendo perdido uma pessoa amada, desejaria que ela nunca tivesse existido? 

A rainha Vitória perdeu seu amado cônjuge, Alberto, para a febre tifoide em 1861. Ela usou “trajes de viúva” até o fim da vida, quarenta anos depois. Confidenciou ter encontrado grande consolo na elegia do sr. Tennyson para seu amigo morto, e, por força disso, os dois, poeta e rainha, tornaram-se admiradores mútuos. Tennyson não foi só um poeta vitoriano — foi o poeta de Vitória. Nomeado poeta laureado da monarca em 1850, ele ocuparia o cargo até morrer, 42 anos depois. 

O grande projeto de seus últimos anos foi um poema enorme sobre a natureza ideal da monarquia inglesa, Idílios do rei, uma crônica em verso do reinado de Arthur e dos Cavaleiros da Távola Redonda. Tratava-se, claramente, de um tributo indireto à monarquia inglesa. Tennyson escreveu, como todos os poetas laureados escrevem (até o dinâmico Ted Hughes, ao ocupar o cargo a partir de 1984), certos versos bem maçantes. Mas também escreveu, como poeta laureado, alguns dos melhores poemas públicos da literatura inglesa, dos quais o mais notável é “The Charge of the Light Brigade” (“A carga da brigada ligeira” — N.T. (1854)), comemorando um assalto sangrento e absolutamente desesperançado de cerca de seiscentos soldados da cavalaria britânica contra um grupo de artilharia russo durante a Guerra da Crimeia. As perdas foram tremendas. Um general francês, observando a carga, comentou: “É magnífico, mas não é guerra”. Tennyson, que leu o relato do combate no Times, saiu-se com um poema, escrito em grande velocidade, que capta os cascos trovejantes, o sangue e a “magnífica loucura” de tudo aquilo: 

Canhão à direita deles, 

Canhão à esquerda deles, 

Canhão atrás deles 

Troando no vento; 

Sob a fúria do imenso arsenal, 

Prostrados herói e animal, 

Eles, em luta sem igual, 

Romperam os dentes da Morte Saindo da Boca Infernal, 

Tudo que restava deles, 

Dos nossos seiscentos. 

Em seus últimos anos, Tennyson desempenhou o papel do poeta de modo majestoso, com cabelo esvoaçante, barba e bigode suntuosos e um conjunto espanhol de capa e chapéu. Por baixo do figurino e da pose, porém, Tennyson era o mais metódico dos autores, tão ávido por dinheiro e status quanto um homem comum. Ele subiu até o topo do mais escorregadio dos postes literários para morrer como Alfred, Lord Tennyson, e mais enriquecido por seus versos do que qualquer outro poeta nos anais da literatura inglesa. 

Ele se vendeu? Ou foi um ato de equilíbrio bem pensado? Muitos amantes da poesia enxergam um contemporâneo vitoriano, Gerard Manley Hopkins (1844-1889), como um tipo de poeta “mais verdadeiro”. Hopkins foi um padre jesuíta que escrevia poemas no pouco tempo livre de que dispunha. Já se disse que sua única ligação com a Inglaterra vitoriana foi o fato de que respirou seu ar. Hopkins admirava Tennyson, mas sentia que sua poesia era o que chamava de “parnasiana” (Parnaso sendo a montanha dos poetas na Grécia antiga). Com franqueza, sentia que Tennyson se rendera demais “indo a público”. O próprio Hopkins teria preferido morrer em vez de publicar um poema como In Memoriam para o luto de qualquer homem ou mulher do povo. 

Hopkins queimou vários de seus poemas altamente experimentais. Seus assim chamados “sonetos terríveis”, nos quais lutava com a dúvida religiosa, são privados ao extremo. Provavelmente, nunca foi sua intenção que outra pessoa os visse além de seu amigo mais íntimo, Robert Bridges. Bridges (ele mesmo destinado, por ironia, a virar poeta laureado em 1913) decidiu, quase trinta anos depois, publicar os poemas que Hopkins lhe confiara. Eles são considerados obras pioneiras daquilo que iria, alguns anos após sua morte, ser chamado de modernismo e mudar os rumos da poesia inglesa. 

Quem, então, foi o poeta mais verdadeiro, o “público” Tennyson ou o “privado” Hopkins? A poesia sempre foi capaz de achar espaço para os dois tipos. 



(Uma breve história da literatura, tradução de Rodrigo Breunig) 



(Ilustração: Hari Mitrushi - Alfred Tennyson)